Fen’Nó, uma guerreira: uma mulher, uma história, uma lenda
Dona Ana, em 2010. Foto: Clóvis Britghenti (Cimi Sul) |
Fen’Nó, nome Kaingang. Ana da Luz Fortes do Nascimento a chamaram os fóg (não indígena) quando foi lavrado seu registro de nascimento, já mocinha, em 18 de janeiro de 1917, na paróquia de Palmas/PR quando ainda o oeste catarinense pertencia a freguesia de Palmas. Nascida nos primórdios do século XX, quando o Toldo Chimbangue era habitado apenas pelos Kaingang; quando ainda tinha fartura de pinhão e o milho crescia sem adubo; quando as águas do rio Irani eram límpidas e os peixes eram fartos. Fen’Nó lembrava que no Toldo Chimbangue era um taquaral só, um erval, arrodiava aqui por baixo. Taquaral! Taquara dessa grossura! Agora não tem nem pra fazer a peneira. Liquidaram tudo. Nosso remédio, o remédio do índio lavraram tudo, plantaram. Dizia que os fóg eram iguais a inço, ervas daninha que destruíram toda mata.
Forte não era apenas um nome, era também sua qualidade, sua virtude. Jamais deixou sua terra de nascimento, nas margens do Irani, mesmo quando o SPI fez acordo com o governo do estado de Santa Catarina para “limpar” o Toldo Chimbangue e transferir as famílias para a Terra Indígena Xapecó, em 1954, Fen’Nó se recusou a sair. Ficou sem assistência e proteção do Estado, mas manteve a raiz na terra natal. Mais tarde, em 1972 quando a colonizadora Luce & Rosa e Cia Ltda vendeu os últimos 100 hectares em que se encontrava a comunidade Kaingang ela se recusou a abandonar o local. Foi nesse momento que iniciou a luta que resultou na recuperação de 988 hectares em 1985 e mais 975 hectares em 2006. Fiel à tradição Kaingang nunca abandonou o local onde está enterrado seu umbigo, agora não só seu umbigo, mas todo o corpo.
Foi o “tronco velho” na luta pela terra. Liderou a mais intensa batalha pela posse da terra em plena ditadura militar. A luta pelo Toldo Chimbangue transformou-se num conflito que dividiu o país entre os que apoiavam os Kaingang e os apoiavam os fóg. Marcou época e abriu caminhos. Foi a primeira terra no Brasil devolvida aos indígenas depois de ter sido toda ela escriturada em nome de terceiros. Pessoas com mentes iluminadas como Dona Ana defendiam também a indenização e reassentamento aos agricultores. O medo da elite brasileira não era com as 100 famílias de fóg que lá viviam, mas era abrir precedentes para que os povos indígenas recuperassem todas as terras roubadas, grande parte delas nas mãos do latifúndio, era o medo de ser desmentida pela história condenada pela memória. Fen’Nó não teve medo. Também não vacilou! Ficou meses em Brasília, ora acampada na Esplanada, ora nos Ministérios e na Funai. Percorreu o sul do Brasil em busca de apoio da sociedade regional e dos parentes indígenas. Manteve a comunidade unida e coesa. A ação em torno da recuperação do Toldo Chimbangue influenciou também a mudança na Constituição Federal de 1988, especialmente o Art. 231.
Na rodoviária de Brasília, em 1985: uma das inúmeras viagens a capital federal para cobrar a regularização da terra. Foto: Arquivo Cimi Sul. |
Contava com o apoio incondicional de Dom José Gomes, bispo de Chapecó, a quem recordava com muito carinho: Ele vinha aqui tomar chimarrão. Eu ia lá também tomar chimarrão com ele. Ele vinha nas nossas festas, participava de nossos ‘banquetes dos inocentes’, ele vinha almoça na mesa. Depois ele ficou doente…, sentimos muita falta dele!
Foi esteio na manutenção da tradição, cultura e língua Kaingang. Conhecia os desafios de transmitir os conhecimentos aos jovens, afinal foram longos anos de comunidade esfacelada, sem condições de viver as tradições. Lamentava que parte das novas gerações já não queriam escutá-la, não conseguiam compreender. Agora o que tem por ai é tudo novo. Tudo é novo! Não compreendem. Tá assim! Os novos não compreendem. Compreendem na aula, na escola. Meu sistema é outro, é! Meu sistema é outro!
No dia Internacional da Mulher de 1999, Fen’Nó foi homenageada na Câmara Municipal de Chapecó que reconheceu-a como pessoa que ajudou a construir a historia do município. Justamente reconheceram-na como multiplicadora de luta pela terra e raiz da esperança.
No ano 2000 Fen’Nó foi protagonista do filme homônimo produzido pelo cineasta Penna Filho. Féndô – um tributo a uma Guerreira foi premiado como Melhor Vídeo Educativo no I Festival da Terra, em Brasília (2000), promovido pela CONTAG, e Menção Honrosa no 7º CineEco (Serra da Estrela, Portugal).
Ao partir, dona Ana levou consigo seu genro, Angelin Gandão, 66 anos, outro incansável guerreiro na luta pela terra, falecido um dia após Fen’Nó (07 de março).
Nome e alma de pássaro, Fen’Nó, voou para outros ares para fazer novas lutas. O sentimento não é de perda, ao contrário, é de agradecimento e de gratidão. Ao conceber a morte como uma passagem, Ana da Luz Fortes do Nascimento se transformou numa lenda na história indígena do oeste catarinense. Depois de 110 anos intensamente vividos seu tempo na terra findou, mas seu legado ficará para sempre registrado na memória dos Kaingang.