O silêncio das autoridades públicas diante de afrontas aos direitos constitucionais
Realizou-se no dia 7 de dezembro,
Os propósitos das entidades ruralistas, de mobilizar "produtores rurais" contra os povos indígenas que lutam pela demarcação de suas terras, bem como seu potencial para incitar a violência direta contra estes povos, vinham sendo denunciados há mais de um mês por organizações da sociedade civil e por lideranças indígenas.
São tão suspeitas as razões para esta iniciativa que Kátia Abreu (presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil – CNA – e senadora pelo PMDB) apressou-se em afirmar que não serão criadas milícias e nem adquiridas armas com os recursos arrecadados pelo leilão. A defesa veemente e o uso destes termos indica que esta possibilidade existe, posto que foi pensada e ventilada e precisou ser rebatida. E os recorrentes eventos de violência contra os povos indígenas, envolvendo armas de fogo e jagunços encapuzados já são, por si só, um perigoso indício do que pode vir a ocorrer em nosso país depois destas iniciativas com caráter público, no entanto marcadamente criminosas.
Considerando ser uma ação que põe em risco a segurança e a vida dos povos indígenas e acolhendo uma ação impetrada pelo Conselho da Aty Guasu e Conselho do Povo Terena, em 4 de dezembro de
A 4ª Vara da Justiça Federal de Campo Grande (MS), depois de acionada pelos representantes dos ruralistas, liberou (no final da noite do dia 6) a realização do tal leilão da resistência. Os indígenas recorreram junto ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) e, em caráter liminar, o desembargador Lionel Ferreira manteve o leilão desde que as três condicionantes impostas pela Justiça Federal de Mato Grosso do Sul fossem adotadas: 1. O dinheiro arrecadado com o leilão será depositado numa conta judicial e controlado pela Justiça; 2. Os leiloeiros deverão discriminar os nomes dos arrematadores e os valores pagos;
O que mais chamou atenção, no caso desse leilão criminoso foi o silêncio absoluto do governo federal, especialmente do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, da presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Maria Augusta Assirati, da Ministra da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Maria do Rosário, e dos integrantes da Secretaria Geral da Presidência da República, onde estão empoleirados, além do ministro Gilberto Carvalho, o senhor Paulo Martins Maldos, que durante décadas acompanhou toda espécie de violações aos direitos indígenas e hoje, no governo, silencia diante de uma iniciativa que abertamente convoca setores da sociedade civil a unirem-se para angariar fundos específicos e com isso combater direitos indígenas resguardados pela Constituição Federal.
Esses representantes do governo federal são omissos quanto ao leilão criminoso e igualmente responsáveis por toda e qualquer prática de violência que vier a ocorrer contra as comunidades e lideranças indígenas. Lamentavelmente ações de violência passaram a acontecer de forma mais intensa nas últimas semanas
Este fato se soma a tantos outros e demonstra que no governo da presidente Dilma os “senhores do agronegócio” estão muito à vontade, dando as cartas em um perigoso jogo no qual se busca barganhar e violar as regras constitucionais. Ao silenciar, o governo compactua com as ofensivas dos ruralistas contra a vida dos povos indígenas, estes que historicamente são discriminados, perseguidos, ameaçados, vitimados por doenças e têm suas lideranças assassinadas em emboscadas, tocaias e em ações de setores que tomam nas mãos o que consideram ser a “justiça”.
O governo assume, neste caso, uma atitude omissa em relação aos povos indígenas, que mais uma vez encontram-se ameaçados. E, em relação às terras que estão sendo identificadas como de ocupação tradicional indígena, o governo federal tem se negado ao cumprimento de suas atribuições de proteger e fazer respeitar os bens da União. Vale ressaltar que o Art. 20, XI da Constituição Federal estabelece que "são bens da União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. Assim, além da grave omissão diante de um risco concreto de prática de crimes contra a vida dos indígenas, as autoridades (no exercício do poder) praticam crime de improbidade, já que é sua obrigação constitucional fazer a defesa dos bens públicos, que precisam ser zelados, respeitados e protegidos.
E se – nos jogos de interesses dos governantes e nos discursos desenvolvimentistas tão propagados na atualidade – a vida das pessoas, comunidades e povos indígenas não têm importância política, jurídica, econômica, as terras por eles ocupadas (ou a serem ocupadas) deveriam ser prioridade das autoridades federais uma vez que (elas – as terras) constituem-se em importantes fontes de riquezas para o país, especialmente pelo potencial energético, ambiental e mineral. O governo, ao permitir que grileiros, fazendeiros e empresários explorem, depredem e dilapidem os territórios indígenas, pactua com os crimes contra o patrimônio público, contra a sociedade, contra o país.
Chama igualmente atenção o fato de não ter havido, de outras instituições ou poderes do Estado, manifestações públicas e até jurídicas contrárias ao leilão criminoso dos ruralistas. E não se pode deixar de lembrar que os discursos difundidos pelos meios de comunicação e redes sociais foram proferidos pelos representantes dos setores do agronegócio e por parlamentares da Câmara dos Deputados e Senado, bem como por deputados e vereadores nos estados de Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
Apesar dos conteúdos agressivos e que instigavam a prática de violência contra os povos indígenas, quase não se ouviu de personalidades, inclusive eclesiais, como do arcebispo de Campo Grande (MS), e de representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), posicionamentos de repúdio ou contestação ao leilão e seus proponentes e incentivadores.
Foi necessário às organizações indígenas (Conselho da Aty Guasu e Conselho do Povo Terena) ingressarem com uma ação judicial solicitando o cancelamento do leilão e, com isso, impor que houvesse (contra ou a favor) uma manifestação de um dos poderes públicos, o Judiciário. Somente depois desta ação se conseguiu, ao menos em parte, evitar que as organizações dos ruralistas, com o aval de parlamentares e a omissão do governo federal, pudessem livremente angariar e utilizar dinheiro deste leilão para “segurança privada ou milícias” – o que resultaria na intensificação das ameaças, dos ataques e, consequentemente, dos assassinatos de indígenas
O que está em jogo, neste caso, não é o fato de liberar ou coibir um simples leilão promovido por corporações rurais. Está em jogo o estabelecimento de limites para ações individuais e coletivas que denotam uma vontade de fazer justiça com as próprias mãos. É uma luta em torno de limites tão caros a um regime democrático e diz respeito, também, às premissas da justiça e da dignidade humana, que não podem e não devem se dobrar ao capitalismo e aos ditames autoritários de quem detém o poder e o dinheiro.