22/07/2013

Aty Guasu, a grande assembleia dos povos Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul discutirá problemas fundiários e demais violações aos seus direitos

Nos dias 23 a 28 de julho as lideranças políticas e religiosas das comunidades Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul se reunirão na Aldeia Jaguapiru, em Dourados, em mais uma Aty Guasu. O objetivo é discutir os principais problemas que afetam a vida das comunidades e traçar estratégias para enfrentar o quadro de violências e o desrespeito aos seus direitos territoriais. Autoridades responsáveis pela condução da política indigenista do país foram convidadas e, destes, as lideranças esperam ouvir propostas concretas, em resposta às reivindicações apresentadas ao longo dos últimos anos, especialmente aquelas relativas às demarcações das terras e ao combate às violências.

 

Nos últimos anos, os povos indígenas em Mato Grosso do Sul sofrem com a omissão do governo federal no cumprimento das determinações constitucionais e com a morosidade nos procedimentos administrativos que lhes garantiriam a demarcação, posse e usufruto das terras. A postura negligente do governo gerou uma brutal ofensiva dos setores ligados ao agronegócio contra os povos indígenas. As violências contra a pessoa são uma constante em Mato Grosso do Sul e submetem as lideranças a uma condição de vulnerabilidade. Há, para além dos ataques contra a pessoa (que são muitos), um tipo de violência simbólica sustentada na discriminação e no preconceito, disseminada na sociedade e constantemente realimentada pelos meios de comunicação. O clima é de tensão porque os indígenas acabam sendo vistos como “inimigos de estado e do desenvolvimento”. De um modo geral, se entende que as formas de vida dos “índios” são signos de atraso e, por conseguinte, eles são discriminados por não aderirem aos princípios e regras pactuadas numa sociedade concorrencial, centrada no individualismo e no “progresso”. 

 

No final de 2012 a comunidade de Puelito Kue, do povo Guarani Kaiowá, causou comoção ao divulgar, através das redes sociais, uma carta-denúncia, na qual confronta princípios e  regras desta sociedade e afirma sua disposição em continuar lutando para resguardar suas formas tradicionais de viver. A carta manifestava a disposição das pessoas da comunidade de continuar lutando e, se necessário fosse, entregar a própria vida, caso o governo levasse a efeito uma decisão judicial injusta – de despejo. Um dos trechos da carta dizia: “Sabemos que seremos expulsas daqui da margem do rio pela justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo/indígena histórico, decidimos meramente em ser morto coletivamente aqui… Solicitamos para decreta r a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui”… 

 

A carta repercutiu internacionalmente e ecoou como um anúncio de suicídio coletivo. Contudo, a intenção era denunciar as injustiças praticadas contra o povo Guarani-Kaiowá e as ações que buscam inviabilizar o direito de viver na sua própria terra. E são estas atitudes e reações dos povos indígenas, na luta pela vida, que os diferencia da sociedade individualizada e regrada pelos princípios da propriedade privada e da acumulação de capital. 

 

É inegável que os pactos e regras da sociedade individualizada acabam por legitimar ataques contra os direitos humanos dos povos indígenas no Brasil, posto que a prioridade passa a ser a liberdade do mercado, dos investidores, dos que se orientam pelo produtivismo. Os dados de assassinatos ocorridos nos últimos 10 anos são indícios deste tipo de lógica perversa que domina o fazer político e econômico em nosso país. De acordo com dados reunidos pelo Cimi e apresentados em seus “Relatórios de Violência contra os Povos Indígenas”, em 10 anos, 563 pessoas perderam a vida, vítimas de homicídio em aldeias, acampamentos e reservas indígenas. Somente no estado de Mato Grosso do Sul 317 pessoas foram assassinadas. Anastácio Peralta, liderança indígena da área Panambizinho, afirmou que no MS "o boi vale mais do que uma criança Guarani". A procuradora da República Dra. Deborah Duprat, ao analisar a realidade indígena no país concluiu que no estado de Mato Grosso do Sul os Guarani-Kaiowá vivem "a maior tragédia indígena do mundo". Tonico Benites, liderança Guarani-Kaiowá e doutor em antropologia, afirma que “atualmente  10 mil pessoas vivem em acampamentos nas margens das rodovias” (próximos ou distantes dos centros urbanos) e sofrem com a falta de assistência, pois não há lugar para o plantio, não há saneamento básico, não há água para beber, tomar banho, lavar roupa. Nestes lugares, barracos são incendiados na beira das estradas, pessoas acabam sendo ameaçadas, agredidas, atropeladas e assassinadas. Ainda segundo o antropólogo, 35 mil Guarani-Kaiowá vivem em 11 reservas criadas ainda na época do SPI. 

 

As informações e os dados, inclusive dos órgãos de assistência, denunciam que tanto aqueles que vivem nas reservas como os que estão acampados nas margens das rodovias encontram-se sem o amparo dos órgãos públicos e estão submetidos às ameaças e perseguições dos fazendeiros que reagem contra a luta pela demarcação das terras. O procurador da República, Thiago dos Santos Luz, (quando atuava em Ponta Porã/MS) argumentou que “os conflitos se devem, sem dúvida nenhuma, à lentidão inconcebível na demarcação das terras indígenas”. Na avaliação do procurador, a ausência da demarcação traz outras consequências e uma delas é o confinamento indígena em pequenas reservas, cuja expectativa de vida é semelhante à dos países mais pobres do mundoestimada em apenas 45 anos de idade.

 

Causa grande preocupação as informações relativas aos atropelamentos de indígenas nas margens de rodovias federais e estaduais em Mato Grosso do Sul. Os depoimentos de lideranças indígenas que testemunharam casos de atropelamentos são contundentes e denunciam que estes ocorrem como práticas criminosas, e não podem ser caracterizados como acidentes de trânsito. Lideranças do Conselho da Aty Guasu, do povo Guarani-Kaiowá, afirmam que indígenas têm sido vítimas de “assassinatos disfarçados de atropelamentos”. Ou seja, homicídios vêm sendo praticados com uso de veículos automotores (motocicletas ou automóveis) como arma letal. Matam e fogem do local do crime, cabendo, horas d epois à Polícia Rodoviária Federal informar que se trata “apenas” de mais um caso de atropelamento. Nos últimos dez anos, de acordo com relatos de lideranças, ocorreram dezenas de atropelamentos, muitos deles ceifaram a vida de crianças, jovens, adultos e idosos. Os casos justificam as denúncias do Conselho da Aty Guasu de que muitos atropelamentos são premeditados, com o intuito de intimidar ou assassinar pessoas que vivem nas comunidades indígenas em luta pela terra. 

 

Os conflitos e as mais variadas formas de violências que são praticadas contra os povos indígenas estão direta ou indiretamente vinculados à realidade fundiária. E as agressões atingem tanto as comunidades que vivem nas reservas criadas pelo SPI – Serviço de Proteção ao Índio, quanto aquelas que estão vivendo fora de suas áreas de ocupação tradicional, nos acampamentos na beira de estradas, nas faixas de domínio ou matas ciliares próximos das terras reivindicadas (que estão em processo de demarcação ou em litígios judiciais e ocupadas por fazendeiros). 

 

Portanto, a base dos conflitos e das múltiplas formas de violências praticadas contra os povos indígenas tem como eixo os problemas fundiários. No entanto, esses conflitos remontam questões mais graves e profundas. As violações aos direitos indígenas não ocorrem apenas em função de uma disputa de base econômica, que tem na terra seu valor de uso e sua fonte de lucro, mas também de uma disputa por projetos de futuro – os povos indígenas vinculam-se a uma visão mais holística da vida na terra e a sociedade de consumidores vislumbra os espaços territoriais como lugares de produção de bens a serem consumidos. A terra é vista como mercadoria, e as pessoas também.   

 

Somente a partir de uma perspectiva ingênua se poderia conceber que as violências contra os povos indígenas, que se renovam a cada ano, são fatos isolados, ou como sintomas de desvio na conduta de indivíduos. As violências estão inegavelmente relacionadas às instituições sociais e às práticas contemporâneas de discriminação e segregação social protagonizadas, em grande medida, pelos próprios órgãos públicos – quando participam diretamente de ações de despejo, quando facilitam ou incitam invasões de áreas indígenas, quando discriminam indígenas através e nas políticas assistenciais. 

 

Diante deste quadro de violações de direitos humanos, se chega também à conclusão de que há uma luta desigual sendo travada: de um lado estão os povos indígenas, que têm ao seu favor prerrogativas constitucionais, mas para quem o estado recusa o direito efetivo sobre as terras. Do outro lado está o agronegócio, beneficiado por incentivos oficiais, financiamentos e com forte aparato judicial à sua disposição, que conta com ampla base de apoio no Congresso e no governo. 

 

Estas questões, entre outras, estarão presentes nos debates e reflexões da Aty Guasu. As lideranças esperam efetivamente que o governo federal, através de seus representantes, sinalize pela continuidade dos procedimentos de demarcações de terras, atualmente paralisados. Caso contrário, o processo de genocídio, iniciado ao longo dos últimos anos tende a se acentuar sob os olhares complacentes dos que governam o Brasil, bem como de juízes, desembargadores e ministros do Poder Judiciário. 

 

Fonte: Roberto Antonio Liebgott, missionário do Cimi
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