02/05/2012

Do amor e do ódio e do índio, por Dora Martins, Juíza

Entre os dias 27 e 30 de abril uma comissão de Juízes da Associação de Juízes para a Democracia – AJD visitou as comunidades indígenas Kaiowá e Guarani no sul de Mato Grosso do Sul. Quatro juízes e uma desembargadora puderam conhecer e conviver com comunidades indígenas confinadas, espoliadas, acampadas, refugiadas, resistentes e esperançosas.

 

Abaixo, a partilha desta vivência nas palavras de Dora Martins.


 

Do amor e do ódio e do índio.

Mba’éichapa!

 

Foi uma experiência de amor; amor que nos remete a nós mesmos, e que nos alimenta com a possível esperança de um mundo de diferentes que se mirem sem medo ou ódio.

 

Voltamos, hoje, da viagem aos diferentes e humanos Guaranis Kaiowá, em Mato Grosso do Sul. Viagem de fundo amoroso, sem dúvida, em que pese o amor doer com a dor do outro e que isso nos remeta à nossa humanidade, tão singela, tão impotente por vezes.

 

O ódio aos Guaranis está em todo canto por aquele Estado tão cheio de verde da cana e da soja e do dinheiro. E, com o encanto dos que lutam junto dos Guaranis seguem a ameaça, a interdição, o assombro.

 

Emocionante ver os indígenas nos receberem com rituais e danças e celebrações. Que se espantem todos os espíritos do mal! Dançamos, pisamos na terra deles, com eles. Ouvimos e fomos ouvidos. Foi emoção enrolada em emoção. Fizemos um minuto de silêncio, em meio à mata verde, em círculo, no centro o local onde o Nisio Gomes sangrou e sangrou.

 

Crianças tão pequenas e nada temerosas, com abraços e risos e danças também. Muitos líderes falaram, e "porque a justiça não se concretiza se nós, indígenas, aceitamos a lei do branco"? E nós, juízes, ali, "veneno e antídoto" a engolir em seco lágrimas insuspeitas. Conseguimos, estou certa, nos fazer ver além e através da toga. E foi bom. 

 

E o líder Jorge bradou justiça com a Constituição na mão, e as mulheres fizeram, na história, sua segunda ATY GUASU (assembleia) para discutir o medo de não terem terra, alimento, saúde e identidade. Mulheres indígenas com voz. Homens indígenas que querem voltar a ocupar seu território sagrado e tão vilipendiado. E as atrocidades se repetem compassadamente.

 

Nos agradeceram os companheiros brancos, que lá nos receberam, e nos presentearam com a fala de que, com toda certeza, nós, juízes brancos, ao irmos até lá "fizemos história na história deles". Mais lágrimas e legítimas. E foi tocante saber que eles acharam honroso e importante que juízas e um juiz que lá estiveram se fizeram acompanhar por familiares, crianças e filhos. E tudo ficou tão familiar, tão igual, tão brasil profundo de brancos e índios… Um alento, para todos, e em especial para aqueles que lá, guerreiros bravios, lutam em prol da causa Guarani; lá, em Mato Grosso do Sul, onde juízes decidem os processos de uma perspectiva tão divorciada da terra e dos humanos valores indígenas, a ponto de entenderem que quando a prova é apenas a "fala do índio", ainda que sejam dezenas deles, alega-se "falta de prova" para por fim ao caso… Afinal, para esse cego olhar da justiça de branco, palavra de índio não vale!

 

Dora Martins, Juíza.

 

Fonte: Cimi - Regional Mato Grosso do Sul
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