Informe nº1001: “Aqui só resolvem quando morremos então nós não vamos sair”, diz liderança Guarani Kaiowá
Renato Santana
de Campo Grande (MS)
Cada palmo de terra é um potencial latifúndio para a plantação de soja no Mato Grosso do Sul. O pasto perde espaço dia a dia; no pedaço mais improvável de chão, a soja cresce. Agora, além do boi, uma saca do grão vale mais do que qualquer Guarani Kaiowá. Para os fazendeiros, os benefícios da terra servem apenas para a soja e para o boi. Terra serve para produzir e gerar lucro.
Nas imediações do município de Rio Brilhante, região sul do estado, Laranjeira e Nhanderu eram dois irmãos que viviam sob outra lógica no final do século XIX e início do XX. Tal como seus antepassados, produção não era sinônimo de lucro, competitividade e trabalho exaustivo. O modo de vida Guarani Kaiowá era preservado, apesar do avanço cada vez maior das frentes de colonização – sobretudo os gaúchos plantadores de mate.
Ainda assim se vivia na aldeia, lugar onde os mortos eram enterrados, a caça e a pesca eram férteis, podia-se olhar para o céu à noite, praticar os rituais e retirar o mel e os remédios da natureza. O tekoha estava preservado. Laranjeira e Nhanderu morreram lutando para permanecer no chão sagrado. Com os filhos deles, o destino não foi diferente.
“Meu avô (filho de Laranjeira) morreu assim e meu pai também. Querem nos tirar daqui novamente. Querem matar mais? Se é para morrer atropelado, de suicídio, morremos resistindo, morremos dentro do nosso tekoha”, declara o cacique Faride Guarani Kaiowá, do tekoha Laranjeira Nhanderu.
A história do tekoha passa pela chegada da frente de colonização das plantações de mate, na primeira metade do século XX, segue com expulsões e assassinatos promovidos pelos latifundiários criadores de gado, perpassa a cana-de-açúcar e agora com a soja, além de cultivos paralelos, caso do arroz.
Depois de feita uma primeira retomada, os Kaiowá foram expulsos de Laranjeira Nhanderu em setembro de 2009. Seguiram direto para a beira da estrada, bem ao lado da entrada de uma das fazendas que incidem sobre o território de ocupação tradicional. Os indígenas permaneceram acampados até maio do ano passado, quando novamente retomaram pouco mais de
Para os indígenas chegarem ao local da aldeia, percorrem cerca de
Ordem de despejo
No último dia 27 de janeiro, a Polícia Federal (PF) chegou ao tekoha Laranjeira Nhanderu. Os agentes levavam uma ordem de despejo da Justiça Federal do MS, com a recomendação de que os indígenas fossem informados de que ela seria cumprida dali 15 dias. “Os policiais disseram que voltariam com helicópteros, muitos homens e armas para nos tirar. A gente dizia que não ia sair e eles se irritaram”, relata Roselino Guarani Kaiowá.
A ligação dos Guarani com a terra é especial como com os demais povos indígenas. No entanto, guarda suas peculiaridades. Longe dela, muitos Kaiowá já se suicidaram ou arrefeceram ao alcoolismo. Durante o período em que estiveram acampados, cacique Faride afirma que dois jovens se suicidaram e outros três indígenas foram atropelados.
“Nós queremos nosso tekoha. Por isso nós resistimos firmemente. Temos que nos fortalecer e criar coragem; esperar até que venha a decisão do antropólogo. E vamos esperar no tekoha mesmo, porque ali é o nosso lugar e não outro. Agora nós não vamos sair dali não. Vamos resistir ali. É assim que é o guerreiro”, resume a liderança Zezinho Guarani Kaiowá.
O Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT) ofereceu um terreno aos indígenas até que o trabalho de demarcação das terras seja concluído pela Fundação Nacional do Índio (Funai) – razão pela qual o juiz despachou a reintegração de posse da área ocupada pela comunidade de Laranjeira.
“Aqui está a história dos nossos antepassados. A comunidade sabe a história mais antiga e em outro lugar isso não tem. Sem contar que lá não temos caça, água, mel e remédios naturais. Perto da cidade, os índios ficam expostos ao álcool”, diz Zezinho.
Despejo suspenso e desembargador questionado
"Não é possível fazer um juízo de certeza sobre a legal ocupação tradicional da terra pelos indígenas. Porém, é certo que há indícios de que se trata de área tradicionalmente ocupada pelos índios, tendo em vista relatos históricos juntados pelo Ministério Público Federal e pela Funai”, avaliou a juíza Louise Filgueiras, relatora do agravo de instrumento que pede a suspensão do despejo.
O processo tramita no Tribunal Regional Federal da 3ª Região,
Os dois votos restantes permaneceram indefinidos. O desembargador federal Luiz Stefanini, que presidia a sessão, pediu “vista dos autos” e adiou o julgamento, sem prazo para o processo voltar. Stefanini, no entanto, sofre questionamentos sobre se pode ou não votar o agravo.
A procuradoria da Funai entrou com recurso no TRF-3 alegando que a esposa do desembargador possui processo no órgão indigenista de indenização por benfeitorias em propriedade no Mato Grosso do Sul, ou seja, ela possui terras em área indígena demarcada.
O tribunal rejeitou o pedido dos procuradores da Funai, que recorreram. “Mesmo com o recurso, nada impede o desembargador de votar. Vamos aguardar”, explica o procurador Alexandre Silva Soares.
Futuro
“Estou muito preocupado com a minha comunidade. Com o suicídio na minha comunidade. Já tinham se suicidado duas pessoas, ano passado. Ninguém quer ver despejo. Não é medo, mas o Kaiowá prefere morrer a ficar longe do seu tekoha”, destaca cacique Faride.
Ele aponta ainda a vulnerabilidade da população de Laranjeira, sobretudo com relação a indígenas cegos, deficientes, além de idosos e crianças. “Como dá para viver na beira de estrada assim? Nós vamos ficar lá dentro”, sentencia.
Cacique Faride afirma que o destino dele será o mesmo do líder espiritual Nísio Gomes, do tekoha Guaiviry, atacado por pistoleiros e depois levado pelos assassinos, caso nada seja feito para se assegurar a permanência dos indígenas no local. “Aqui só resolvem quando morremos então nós não vamos sair. Ficamos aqui de todo jeito”.
Visita da CNBB
A realidade vivida pelos indígenas Guarani Kaiowá, incluída a de Laranjeira Nhanderu, foi vista de perto pelo Secretário Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Leonardo Ulrich Steiner. Leia a cobertura completa da visita na edição de janeiro-fevereiro do jornal Porantim e no site do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).