Belo Monte e as muitas questões em debate. Entrevista especial com Ubiratan Cazetta
“Belo Monte compromete, de maneira irreversível, a possibilidade das gerações presentes e futuras de atenderem suas próprias necessidades. Apesar de ser um debate novo no judiciário brasileiro, o direito da natureza e das gerações futuras é objeto de pelo menos 14 convenções e tratados internacionais, todos ratificados pelo Brasil, além de estar presente na Constituição Federal", afirma o procurador da República do Estado do Pará.
Confira a entrevista.
Apesar de as condicionantes fixadas na licença prévia ambiental não terem sido cumpridas, as obras da usina hidrelétrica de Belo Monte iniciaram e trazem à tona velhos e novos questionamentos. Seis meses após o início de instalação dos canteiros de obras, ainda há “imprecisão quanto à dimensão da área a ser desapropriada e da quantidade de pessoas que serão atingidas, removidas ou indenizadas”, diz o procurador da República Ubiratan Cazetta à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele informa que o Ministério Público Federal – MPF ainda está analisando “o decreto de utilidade pública editado recentemente, que abrange uma imensa área, coincide com os dados que constavam da licença prévia ou se houve, de fato, ampliação ou mudança de limites e quais os impactos de tais alterações”. Muitos moradores de Altamira estão apreensivos, pois temem que suas terras sejam desapropriadas para dar espaço à construção de Belo Monte.
De acordo com Cazetta, as obras da usina hidrelétrica ainda podem ser paralisadas se as ações públicas que apontam falhas distintas no processo de licenciamento e construção da usina forem julgadas. “Esta é uma hipótese, entretanto, que vai ficando cada vez mais delicada, ante a demora no julgamento dos processos, pois as sentenças podem vir em momento em que os danos sejam ainda maiores. É essencial que os processos que discutem Belo Monte sejam tratados como prioritários e julgados. Não é admissível que passem meses esperando a definição quanto ao juízo competente, que fiquem os autos transitando entre Belém, Altamira e Brasília apenas para definir o juiz encarregado do julgamento e que as sentenças não sejam proferidas”, assinala.
De acordo com o procurador, para o MPF, Belo Monte “viola o direito da natureza”, tema que está sendo discutido recentemente entre os juízes. “Apesar de ser um debate novo no judiciário brasileiro, o direito da natureza e das gerações futuras é objeto de pelo menos 14 convenções e tratados internacionais, todos ratificados pelo Brasil, além de estar presente na Constituição Federal”, esclarece. E reitera: “Neste século, a humanidade caminha para o reconhecimento da natureza como sujeito de direitos. A visão antropocêntrica utilitária está superada. Significa que os humanos não podem mais submeter a natureza à exploração ilimitada”.
Ubiratan Cazetta é procurador da República no Estado do Pará e vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o andamento das obras de Belo Monte, seis meses após o início da construção? O que mudou em Altamira neste período?
Ubiratan Cazetta – Foram efetivamente iniciadas as obras. A primeira fase foi dedicada à construção de canteiros e locais para os trabalhadores e outras obras preparatórias para a construção
A cidade de Altamira já sofre todos os impactos negativos que se esperava, sem que os positivos estejam visíveis. O fluxo migratório aumentou e, embora sem dados oficiais, fala-se em mais de 10 mil pessoas. Isto já causou alteração nos índices de violência, com destaque para os crimes de violência sexual contra menores.
Os dados quanto ao impacto na área de saúde e educação ainda estão sendo levantados, para que se tenha uma dimensão correta. A especulação imobiliária e o custo dos produtos também podem ser elencados como mudanças concretas
IHU On-Line – Quais são as principais denúncias feitas ao Ministério Público Federal em relação à construção de Belo Monte?
Ubiratan Cazetta – Não é simples enumerar os diversos tipos de conflitos que Belo Monte suscita desde o início desta discussão. Podemos, esquematicamente, dividir os problemas em tópicos, que não pretendem ser exaustivos, mas apenas exemplificativos:
1 – Descumprimento da Constituição Federal, diante da falta de oitiva das populações indígenas sobre o aproveitamento de seus recursos hídricos e, ainda, da falta de lei específica que regulamente tal exploração, com a definição quanto ao pagamento de royalties e outras compensações, se aprovado o uso do recurso hídrico;
2 – Estudos prévios insuficientes, especialmente na questão socioambiental, audiências públicas que não contemplaram todas as localidades atingidas e que não serviram para informar e debater com a população empreendimento deste porte;
3 – Insuficiência dos dados quanto à viabilidade econômica de uma obra que iniciou orçada em 9,6 bilhões de reais e, sucessivamente, teve seu valor alterado para 19,2 bilhões, 25 bilhões e que estaria, atualmente, em, no mínimo, 28 bilhões de reais;
4 – Descumprimento das condições impostas na licença prévia como requisitos para início das obras, o que gera impacto direto em vários setores, mas são cruciais na saúde, educação, saneamento e segurança pública;
5 – Imprecisão quanto à dimensão da área a ser desapropriada e da quantidade de pessoas que serão atingidas, removidas ou indenizadas;
6 – Dúvida quanto ao impacto na área urbana de Altamira e indefinição quanto ao local de realocação da população atingida.
IHU On-Line – Como está sendo feita a desapropriação de terras que serão utilizadas para a construção da usina? Os ambientalistas dizem que áreas que não estavam descritas no projeto original estão sendo desapropriadas. Como a Norte Energia se posiciona diante destas denúncias? Trata-se de uma irregularidade?
Ubiratan Cazetta – Este é um dos pontos que ainda estão sendo analisados e sobre os quais não se tem um juízo de valor definitivo por parte do Ministério Público Federal – MPF. Estamos checando se o decreto de utilidade pública editado recentemente, que abrange uma imensa área, coincide com os dados que constavam da licença prévia ou se houve, de fato, ampliação ou mudança de limites e quais os impactos de tais alterações.
Declarar uma área de utilidade pública não significa, imediatamente, sua desapropriação, mas o anúncio de que pode vir a ser desapropriada, se necessário para a realização da obra. Esta indefinição ou falta de clareza quanto ao que efetivamente será desapropriado também gera um ponto de tensão crescente, pois deixa a população insegura.
De outro lado, não foram concluídos e apresentados os dados do Cadastro Socioambiental, que permitirá, finalmente, conhecer os números de pessoas atingidas, se será necessário o seu deslocamento e, mais importante, qual a política de atendimento a tais atingidos, evitando que não sejam indenizados ou que sejam marginalizados na periferia das cidades ou dos canteiros de obra. A fixação dos critérios de indenização não pode ser apenas patrimonialista, com o uso dos critérios formais de propriedade, pois sabe-se que a grande maioria dos atingidos não tem título de propriedade formal, embora viva nas áreas atingidas há gerações, especialmente quando se observa a situação das comunidades tradicionais. Necessário, então, que estas desapropriações sejam feitas com critério, com políticas públicas de inclusão, de realocação e qualificação dos atingidos.
IHU On-Line – Para que locais as famílias que têm suas terras desapropriadas estão sendo realocadas? Como elas se manifestam e que tipo de acompanhamento e assistência elas recebem?
Ubiratan Cazetta – Todos estes critérios são ainda muito opacos, sem uma definição precisa de como serão tratadas as famílias. Sabe-se que algumas simplesmente foram indenizadas em dinheiro e tentarão se mudar para locais próximos. Todavia, seja pelo valor da indenização, seja pela especulação imobiliária, há uma forte tendência de que tais pessoas acabem inchando a periferia de Altamira e cidades vizinhas, sem opções de renda e emprego, o que deve ter impacto bastante negativo na realidade social local. Outros, buscam ser realocados, mas não se tem certeza quanto ao processo de escolha da nova destinação de tais famílias e se serão observados as suas aptidões, seu meio de vida tradicional ou se, uma vez mais, serão apenas realocadas, sem critérios, sem preparação e sem capacitação.
Para tentar garantir um atendimento adequado a tais famílias, garantindo-lhes assessoria jurídica para defesa dos seus interesses individuais – que não podem, por isto mesmo, serem defendidos pelo MPF -, temos lutado pela instalação e funcionamento, em Altamira, da Defensoria Pública da União, o que gerou mais uma ação civil pública, para forçar a União a cumprir sua obrigação. Hoje, entretanto, tais famílias não contam com assessoria adequada, o que as torna ainda mais vulneráveis.
IHU On-Line – Como o senhor avalia o debate acerca do impedimento de consulta prévia dos povos indígenas em relação a Belo Monte, no ano passado?
Ubiratan Cazetta – Com muita preocupação, pois estamos perdendo uma excelente oportunidade
para demonstrar que a Constituição Federal não é um mero enfeite, mas, sim, base das atuações do Estado brasileiro. Neste processo de discussão de Belo Monte, partimos de afirmações de
que os índios seriam ouvidos no licenciamento, depois, já no licenciamento, a manifestação passou a ser uma função da Funai e, finalmente, desaguamos em um momento em que o governo brasileiro simplesmente nega que exista aproveitamento de recursos hídricos de áreas indígenas, argumentando que as áreas não serão alagadas. De fato, não serão alagadas, mas, sim, esvaziadas, com a redução drástica do volume de água, com o impedimento do uso do rio como meio de locomoção, com a extinção de espécies de peixes e assim por diante e a água que foi retirada das áreas indígenas irá exatamente para formar o reservatório da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Se isto não é aproveitamento de recursos hídricos, tenho dificuldade de imaginar o que seja.
Para piorar, tem-se manifestação do Tribunal Regional Federal – TRF 1ª Região chamando um preceito constitucional de privilégio e, embora o reconhecendo, negando seus efeitos. Concretamente, o que temos é o desprezo ao debate com as comunidades indígenas, o descumprimento direto da Constituição Federal e das obrigações internacionais assumidas pelo Brasil.
IHU On-Line – Como ficou a questão do cumprimento das condicionantes ambientais? Todas as condicionantes foram cumpridas ou a construção da usina foi liberada sem o cumprimento da legislação?
Ubiratan Cazetta – As condicionantes fixadas na licença prévia não foram integralmente cumpridas e, mesmo assim, a licença de instalação foi liberada e as obras iniciaram. Os impactos de tal decisão estão visíveis nas dificuldades enfrentadas pelos municípios diretamente atingidos, como Altamira e Vitória do Xingu, que não viram ainda entregues as escolas, não tem os hospitais em funcionamento, não tiveram número suficiente de trabalhadores capacitados para serem aproveitados, mas já tem o fluxo migratório crescente, o aumento da demanda por serviços públicos, sem que haja recursos e políticas públicas definidas para enfrentar tais desafios. Este tema é objeto de uma das muitas ações civis públicas que ainda não foram decididas.
IHU On-Line – Há a possibilidade de paralisar as obras de Belo Monte em função de alguma ação civil pública?
Ubiratan Cazetta – Sim. Diversas ações civis públicas apontam falhas distintas, em momentos distintos de todo este processo de licenciamento e início de construção da Usina de Belo Monte e podem, se forem julgadas, vir a determinar a paralisação das obras. Esta é uma hipótese, entretanto, que vai ficando cada vez mais delicada, ante a demora no julgamento dos processos, pois as sentenças podem vir em momento em que os danos sejam ainda maiores. É essencial que os processos que discutem Belo Monte sejam tratados como prioritários e julgados. Não é admissível que passem meses esperando a definição quanto ao juízo competente, que fiquem os autos transitando entre Belém, Altamira e Brasília apenas para definir o juiz encarregado do julgamento e que as sentenças não sejam proferidas. Também não é razoável que o TRF 1ª Região gaste anos para julgar um recurso. É o momento de todos os que atuam nestes processos, no que se inclui o MPF, a Advocacia-Geral da União – AGU, Norte Energia S.A. – NESA, Ibama e o Judiciário, tomem medidas efetivas para acelerar o andamento, não adotando medidas que apenas busquem evitar uma decisão, favorável ou contrária. A indefinição ou a decisão tardia é o pior desfecho para este debate.
IHU On-Line – Em função de Belo Monte, o direito da natureza está sendo discutido no judiciário. Como, juridicamente, está questão é abordada?
Ubiratan Cazetta – Belo Monte encerra vários confrontos: entre a geração de energia hidrelétrica e os direitos indígenas; entre o interesse de empreiteiras e o direito da natureza; entre o direito ao crescimento econômico e os princípios do direito ambiental.
A usina, de acordo com todos os documentos técnicos produzidos, seja pelo Ibama, pelas empreiteiras responsáveis pelos Estudos, seja pela Funai, o MPF ou os cientistas que se debruçaram sobre o projeto, vai causar a morte de parte considerável da biodiversidade na região da Volta Grande do Xingu – trecho de 100km do rio que terá a vazão drasticamente reduzida para alimentar as turbinas da hidrelétrica. Esse trecho do Xingu é considerado, por decreto do Ministério do Meio Ambiente (Portaria MMA n° 9/2007), como de importância biológica extremamente alta, pela presença de populações animais que só existem nessa área, essenciais para a segurança alimentar e para a economia dos povos da região. A vazão reduzida vai provocar diminuição de lençóis freáticos, extinção de espécies de peixes, aves e quelônios, a provável destruição da floresta aluvial e a explosão do número de insetos vetores de doenças.
Quando os primeiros abolicionistas brasileiros proclamaram os escravos como sujeitos de direitos foram ridicularizados. No mesmo sentido foram os defensores do sufrágio universal, já no século XX. Em ambos os casos, a sociedade obteve incalculáveis ganhos. Neste século, a humanidade caminha para o reconhecimento da natureza como sujeito de direitos. A visão antropocêntrica utilitária está superada. Significa que os humanos não podem mais submeter a natureza à exploração ilimitada.
Para o MPF, Belo Monte representa a violação não só dos direitos dos índios, ribeirinhos e agricultores que hoje vivem no Xingu, mas viola o direito da natureza e o direito das gerações futuras ao desenvolvimento sustentável. Belo Monte expõe o confronto entre o desenvolvimento a qualquer custo e os princípios do direito ambiental. A solução deve ser sempre em favor do último, diante do bem maior a ser preservado, que é a vida em sentido holístico. Belo Monte compromete, de maneira irreversível, a possibilidade das gerações presentes e futuras de atenderem suas próprias necessidades. Apesar de ser um debate novo no judiciário brasileiro, o direito da natureza e das gerações futuras é objeto de pelo menos 14 convenções e tratados internacionais, todos ratificados pelo Brasil, além de estar presente na Constituição Federal.
IHU On-Line – Como explicar a posição do Brasil de dar prosseguimento à construção de Belo Monte depois da audiência que determinou a suspensão da obra de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA)?
Ubiratan Cazetta – A discussão sobre a construção de Belo Monte poderia ser vista como um momento de amadurecimento das instituições brasileiras, que ganhariam muito se o tema fosse tratado com transparência. O que se viu, entretanto, foi um retrocesso evidente na postura brasileira, o que é muito preocupante no momento em que se pretende firmar o Brasil como uma das potências mundiais. Agimos, no caso da CIDH, com a mesma prepotência que sempre criticamos em outros países.
O mais grave, entretanto, é a mensagem subliminar que esta forma de agir transmite e que fortaleceu críticas que colocam em risco a própria noção do sistema interamericano de direitos humanos. O Brasil, rompendo com sinais anteriores, acabou demonstrando não ter uma posição clara quanto ao modelo de cobrança de responsabilidade internacionais que assumiu. Nos casos anteriores de condenação pela Corte Interamericana (caso Ximenes Lopes, por exemplo) ou de intervenção pela Comissão Interamericana (caso Urso Branco ou Febem), como envolviam atos de governos estaduais, parecia ser mais fácil ao Estado brasileiro se posicionar. Entretanto, quando as críticas atingem um fato que deve ser diretamente imputado ao governo federal, como é a questão do direito à verdade no período militar ou o caso Belo Monte, a capacidade de autocrítica fica muito reduzida e toda ressalva se transforma em resposta passional, como o não pagamento das contribuições à OEA ou medidas equivalentes.
Tenho expectativa que a política externa brasileira assume os ônus de seu papel de liderança, mas tenha os olhos voltados para um passado em que proclamava o respeito aos direitos humanos e o fortalecimento do contencioso internacional de direitos humanos como uma meta a ser atingida o quanto antes e não como algo que deva ser combatido ou tolhido.
IHU On-Line – Quais os desafios de discutir, juridicamente, os impactos ambientais gerados por grandes empreendimentos como Belo Monte?
Ubiratan Cazetta – São vários os problemas, que envolvem as pressões naturais geradas por uma obra de infraestrutura, com orçamento gigantesco de, ao menos, 30 bilhões de reais ou a dificuldade de discussão de uma política energética que contemple, com seriedade, fontes alternativas (eólica, por exemplo) e a requalficação do parque elétrico atual (diminuição significativa das perdas no processo de transmissão/distribuição de energia ou repotenciação e modernização das usinas mais antigas).
Outro desafio é debater estes temas quando o Brasil não definiu, até hoje, um modelo de desenvolvimento sustentável que considere as aptidões evidentes da Amazônia na exploração da sua biodiversidade e prioriza projetos como Belo Monte, que tendem a forçar a repetição de modelos de desenvolvimento que já causaram o esgotamento de outros ecossistemas. O mais delicado, entretanto, talvez seja como utilizar o processo civil para discutir temas áridos, que fogem ao cotidiano do sistema judiciário e que tentam acabar com a invisibilidade social das minorias, buscam garantir o respeito a populações tradicionais ou, no caso das populações urbanas, a efetiva implementação de políticas públicas de saúde, educação, saneamento, segurança pública, geração de emprego e renda.
O espaço democrático para debate destes temas, quer no licenciamento ambiental, quer no processo judicial precisa ser desenhado, precisa viabilizar o acesso da sociedade civil, tanto à informação qualificada, quanto ao meios de se manifestar, rompendo com meras peças publicitárias e atingindo o conteúdo do debate. Transformar estes assuntos em teses jurídicas ou mediar os conflitos e tentar um debate extrajudicial talvez seja o mais delicado, até mesmo por gerar incompreensões ou, pior ainda, reações que, ao invés de abrirem o Estado brasileiro ao debate, apenas fortalecem focos de tensão ou fragilizam as instituições.