Informe nº 988: Construtoras voltam a atacar Santuário dos Pajés; 14 pessoas foram presas
Renato Santana
De Brasília
As construtoras Brasal, João Fortes e Emplavi retomaram na manhã desta quinta-feira (3) as obras de um condomínio de luxo na Terra Indígena Bananal – Santuários dos Pajés, Setor Noroeste, Brasília (DF). Amparadas por forte aparato da Polícia Militar, que utilizou inclusive um helicóptero e Tropa de Choque, as empresas devastaram novas áreas e 14 pessoas acabaram presas.
Conforme mapeamento do laudo antropológico, feito pela Fundação Nacional do Índio (Funai) por força de decisão Judicial, mais provas da ocupação tradicional estão em risco – ou já foram destruídas. Nada disso, além das terras estarem sob ação judicial e, portanto, ainda em disputa, impediu que o fato consumado da especulação imobiliária fosse mais uma vez tatuado nas terras sagradas.
Com base numa decisão do Tribunal Regional Federal, proferida pela desembargadora federal Serene Maria de Almeida – que permitiu os trabalhos apenas no lote reivindicado pela Emplavi – as empresas, de forma orquestrada, ligaram suas máquinas e seguiram com as obras em todos os lotes invadidos há um mês – ampliando para outras áreas de cerrado.
Indígenas e apoiadores resistiram. Sentados entre os lotes reivindicados pela Brasal e João Fortes – ou seja, fora da área de decisão da desembargadora Selene – o grupo impedia a passagem dos tratores para devastação de nova área. Não depredavam os maquinários ou agrediam alguém. Mesmo assim, policiais prenderam 12 não-indígenas com a virulência de um conflito deflagrado.
Algemados, todos foram encaminhados ao 2º Distrito Policial da Asa Norte, próximo ao Santuário. Agressões e uso de spray de pimenta após as prisões foram relatados pelos resistentes detidos. Cledi Pereira foi um deles. O jovem aponta truculência, sendo ele mesmo imobilizado por quatro policiais.
“Na delegacia fomos acusados de desacatar a ordem da juíza. Na verdade a gente estava impedindo que eles desmatassem uma nova área. A decisão diz que a Emplavi pode atuar onde ela já está”, diz. Mesmo com a Polícia Civil em greve, o 2º DP abriu suas portas para receber os apoiadores presos. O cidadão que chegasse com qualquer outra ocorrência não era atendido.
Segundo o apurado, a delegacia abriu por um pedido do secretário de Segurança do Governo do Distrito Federal. “Isso é terrível porque mostra o quanto o Poder Público está a serviço de particulares, no caso as construtoras. É a ditadura do capital, do poder econômico sobre a vida da sociedade”, diz o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cleber Buzatto.
Os policiais militares diziam, na porta do distrito, que os jovens foram presos por desacato e resistência, versão mudada e esquecida posteriormente. “Não sei a razão das prisões. Eu não estava na hora. Isso será apurado no inquérito da Polícia Civil”, afirma o major Antunes, da PM, principal interlocutor da repressão com o movimento de resistência e comandante da operação.
Polícia: a serviço de quem?
“Estou indignada porque os jovens presos hoje pela manhã estavam reunidos numa área pública, sob juízo. Esse tipo de ação policial indigna. Lutamos muito contra o regime militar para termos direito de reunião, protesto. Tudo isso está sendo demolido pela ação conjunta da Polícia Militar e Civil”, afirma Simone Lima, professora da Universidade de Brasília (UNB) e mãe de uma e tia de duas das apoiadoras presas.
As famílias que chegaram para acompanhar filhos e parentes presos foram pressionadas a se retirarem da delegacia. “Houve uma coação por parte do delegado e um contingente da PM tentou nos tirar do distrito. A minha sobrinha foi algemada e depois jogaram gás de pimenta no rosto dela, já imobilizada”, diz Simone.
Os pais e familiares estavam surpresos com a postura dos policiais. Desse modo, diziam não confiar no que pudesse acontecer aos seus filhos e parentes. “Por isso dizemos que íamos ficar porque sabemos dos direitos conquistados e que todos os presos os estavam exercendo”, pontua.
Razões para se questionar e denunciar a ação policial não faltam. Enquanto os 12 primeiros detidos prestavam depoimento, chegou ao distrito mais uma viatura policial trazendo dois outros jovens apoiadores da luta indígena no Santuário dos Pajés. Conforme testemunhou uma jornalista de um dos veículos de imprensa presentes no Santuário, os jovens estavam filmando e fotografando uma área devastada quando policiais os imobilizaram, os jogaram no chão e algemaram. Todos foram liberados horas depois.
De acordo com o advogado e assessor jurídico do Cimi, Adelar Cupsinski, que esteve no Distrito Policial, as prisões foram ilegais e sem justificativa porque os detidos não apresentaram resistência e tampouco desrespeitaram a decisão da Justiça. “Inclusive porque ficaram e estavam à margem do terreno onde incide a decisão da desembargadora”, afirma Adelar.
“Agora o que espanta é que a ação (das empresas e policial) acontece no dia útil seguinte à diligência que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal fez aqui. Tivemos como resposta a isso uma intervenção policial dessa magnitude”, disse a deputada distrital Erika Kokay (PT/DF).
Para ela, a decisão da desembargadora que aponta para apenas quatro hectares como de ocupação tradicional a ser preservada, não têm sua poligonal definida, ou seja, seu espaço e localização determinados. “É inadmissível helicóptero sobrevoando, jovens presos, agressões. Falei com o Secretário de Segurança e ele me disse que não tem o comando da operação aqui no Santuário”, diz a deputada.
A participação da Funai é absolutamente fundamental, segundo ela. O processo de demarcação, segue a deputada, foi iniciado e precisa ser concluído com a construção de um Grupo de Trabalho. Por outro lado, aponta “como absurdo” o fato de que o atual advogado da Emplavi foi o presidente da Terracap (Companhia Habitacional de Brasília) que vendeu lotes dentro da Terra Indígena para as construtoras que hoje tentam tocar as obras nelas.
Derrubando cercas e parando máquinas
À tarde o quadro não mudou. A polícia passou a negociar com o movimento de resistência o que ele próprio poderia fazer. Enquanto isso, as máquinas da Emplavi continuavam trabalhando e foram paradas pelos indígenas. Operários da Brasal e João Fortes devastavam novas áreas e levantavam cercas, fora da área da Emplavi, prontamente derrubadas pelos indígenas e apoiadores.
“O branco vive disso, desmatando tudo. Polui e toma as terras dos índios. É assim no Brasil inteiro, mas não vamos sair daqui não. Vamos resistir ao lado dos nossos parentes Fulni-ô”, disse o cacique João Machado Gujajara que vive com usa comunidade numa área dentro dos
O acesso ao Santuário foi fechado pelos indígenas, indignados com a violência desferida pela polícia durante a manhã. O major Antunes alegava cumprir decisão do TRF, mas não explicava a ninguém onde estavam os quatro hectares que a desembargadora, com base em dados cedidos pela Funai, dizia que era área indígena e, portanto, a ser preservada. Durante a tarde, o major prometeu trazer documentos para corroborar com a tese de defesa dós lotes ditos particulares. Nunca trouxe.
“Mas quem determinou esses quatro hectares? Onde está o estudo? Ninguém foi até o Santuário e junto conosco apontou os marcos desses quatro hectares. Agora como a desembargadora, que não é antropóloga, pode determinar o que é Terra Indígena e com base em que estudo?”, ataca Awá-Mirim Fulni-ô.
Enquanto protestavam na área da Brasal, indígenas e apoiadores foram cercados por um contingente com cerca de 100 policiais. Armados com sprays de pimenta, cassetetes e armas de fogo, assediavam o grupo com cerca de 70 pessoas – sentadas, entoavam gritos de resistência e permaneceram ladeadas pelos indígenas.
Depois de muita negociação, major Antunes liberou a saída do grupo do círculo formado pelos policiais – prostrados, pareciam prontos para iniciar uma ciranda, mas logo se dispersaram para o barracão da construtora Brasal atrás de sombra e água fresca. Mais um dia de lutas caminhava para o fim sob o sol do cerrado.