Chão encharcado com sangue Kaiowá Guarani
Por Egon Heck
“Queremos honrar a memória de nossos amigos e irmãos professores, Jenivaldo e Rolindo, que deram suas vidas pela nossa terra, tekoha Ypo’y. Exigimos justiça, suas mortes não podem ser em vão. Indignados estranhamos que passados mais de dois anos, seus assassinos não tenham sido julgados e condenados. O que faz o Ministério Público Federal que já possui o resultado das investigações e ainda não indiciou ninguém a ponto de levá-los a julgamento? Exigimos respostas!”, indagavam os indígenas participantes do 17º Encontro de Professores e Lideranças Indígenas Kaiowá Guarani, em visita ao Ministério Público Federal em Ponta Porã.
"Feliz coincidência”, disse o pocurador Federal em Ponta Porã, Dr. Thiago dos Santos Luz. De fato a delegação de Kaiowá Guarani que concluiu as atividades do 17º Encontro de Professores e Lideranças Indígenas Kaiowá Guarani, levando um documento ao procurador, não imaginavam tão importante coincidência. Ou seja, estarem indo à Justiça Federal e à Polícia Federal em Ponta Porã juntamente com o procurador.
Durante mais de meia hora as lideranças ficaram realizando ritual em frente ao Ministério Público Federal. Ao chegar, o procurador ouviu das lideranças sua disposição de virem até ali cobrar respostas quanto à impunidade dos assassinos de suas lideranças, especialmente os assassinatos covardes e brutais dos professores Rolindo e Jenivaldo. Já vai fazer dois anos do assassinato e os executores e mandantes continuam soltos, apesar de se saber quem são e onde andam.
“É um momento de alegria e tristeza. Alegria por ver tão importante delegação indígena, em ritual de vida e indignação, num momento histórico em que estamos buscando fazer avançar o processo relacionado às mortes de Jenivaldo e Rolindo. Tristeza pelo fato da justiça ainda não ter acontecido”. Nestes termos o procurador se dirigiu à delegação presente e solicitou uma conversa reservada com algumas lideranças presentes. Enquanto isso, os demais indígenas permaneceram em constante ritual do lado de fora do prédio com seus mbaraká e takuará.
Os indígenas levavam mais de trinta estandartes com os nomes de lideranças de seu povo mortas nos últimos anos. Além disso, uma faixa não deixava dúvidas quanto às exigências da manifestação: “O chão do Mato Grosso do Sul está encharcado com sangue dos Kaiowá Guarani. Chega de impunidade! Prendam os assassinos. Lei é para todos”.
No coração e mente de cada liderança presente estava a firme convicção de que terão pela frente uma árdua, longa e permanente luta contra a violência e impunidade. A luta pelos direitos, especialmente à terra. “Por essa impunidade, Teodoro Ricarte, nosso patrício de Ypo’y, foi barbaramente espancado até a morte. Outro ainda sofreu tentativa de assassinato. Até quando vamos ver outros “Marçais” sendo assassinados e seus assassinos serem beneficiados pela prescrição? Basta de assassinatos motivados pela impunidade!”
O Mato Grosso do Sul tem uma economia amplamente voltada para a exportação. A soja, carne, etanol, milho vem em grande parte, desse chão encharcado com sangue Kaiowá Guarani.
À sombra de imensos cedros
O 17º Encontro dos Professores e Lideranças Indígenas Kaiowá Guarani foi realizado em um lugar muito especial, na aldeia Pirakua, vitoriosa e emblemática aldeia das lutas pela terra indígena em Mato Grosso do Sul. Por essa luta, foi assassinada a liderança Marçal de Souza, em 1983, quando retomam a área que hoje recebe este encontro. Foi também aqui que começaram as retomadas de terra e da realização das Aty Guasu, grandes assembleias do povo Kaiowá Guarani. Essa é a terra indígena que tem maior área de mata, sendo quase a metade dos 2.384 hectares, constituindo-se em fonte de sementes de árvores nativas, espaço de vida e futuro do povo Guarani.
Ali puderam ter aulas práticas sobre inúmeras ervas e plantas medicinais. Foi só dar uma volta ao redor do local e identificar centenas de plantas que secularmente ajudaram a manter a saúde de seu povo. Alguns foram para lugares mais distantes, para um chavascal, brejo, onde igualmente identificaram, desde o anticoncepcional e o viagra natural, até as ervas que curam as mais diversas doenças. Num clima de muita animação e alegria, não faltou identificar as plantas que atraem muitos amigos, as que deixam a pele sem espinhas, dentre outras.
Nesta visita à “farmácia do índio”, farmácia natural, os nhanderu e nhandesi sentiam-se muito orgulhosos e alegres ao poder transmitir seus conhecimentos aos demais professores. Foram às aulas práticas. Não apenas sobre plantas medicinais, mas também sobre os rituais. Esse foi um dos aspectos mais importantes desse 17º Encontro de Professores e Lideranças Indígenas Kaiowá Guarani.
Ao analisarem o momento historicamente difícil por que passa seu povo, denunciaram as violências e interferências nocivas. Assim, reassumem o compromisso de continuarem a luta pelos direitos de seu povo. “Finalmente queremos denunciar a interferência em nossas escolas com a demissão, substituição de diretores e professores indígenas por não índios, bem como a redução de vagas nos cursos de formação de professores indígenas sem nenhuma consulta feita à comunidade, visto que isto é garantido na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), afirmaram ao final do encontro.
“Diante disso, reafirmamos nosso compromisso com a vida, a partir de uma escola formadora de guerreiros e defensores de nossa cultura e direitos. Por nossas crianças, presente e futuro de nosso povo, não nos intimidaremos diante dos interesses econômicos e políticos contrários, especialmente à demarcação de nossas terras e de uma educação diferenciada e autônoma”, concluíram.