Informe nº 976: Justiça garante permanência dos Guarani Kaiowá em Kurussu Ambá
Decisão unânime foi tomada pela 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo
Por Cleymenne Cerqueira
de Brasília
A 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), em São Paulo, garantiu, em decisão unânime, a permanência dos indígenas Guarani Kaiowá de Kurusu Ambá em um pequeno pedaço de sua terra tradicional, retomado em 24 novembro de 2009. O território de Kurusu Ambá tem cerca de 2,2 mil hectares e está em estudo pela Funai. Localiza-se no município de Coronel Sapucaia, na divisa de Mato Grosso do Sul com Capitão Bado, no Paraguai, a 383 km de Campo Grande.
No local, também conhecido como aldeia Cruz Sagrada, vivem 70 famílias – cerca de 200 pessoas -, inclusive crianças com idades entre zero a oito anos. A comunidade foi incluída no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República no início deste ano.
Para Eliseu Lopes, professor e liderança da comunidade, a decisão significa uma vitória. É favorável não só à comunidade de Kurussu Ambá, mas aos Guarani e demais indígenas do MS, bem como para o movimento indígena em nível nacional. “Estávamos preocupados com o que poderia acontecer, pois não temos para onde ir, mas agora nossa comunidade está em festa, comemorando a permanência em nossa terra. A gente espera que a decisão favoreça outras comunidades e acelere a demarcação das terras Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul”, disse.
Michael Mary Nolan, assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), endossa as palavras de Eliseu. De acordo com ela, o posicionamento é muito importante, pois começa uma jurisprudência diferente dizendo que os indígenas podem continuar na área. “A decisão é favorável ao movimento indígena como um todo porque reconhece o direito à terra tradicional e avaliza a luta dos indígenas pela recuperação de seus territórios tradicionais”, declarou Nolan.
A decisão, de acordo com Eliseu, vem na contramão das que geralmente são tomadas em relação aos indígenas do estado, quando na maioria das vezes estes são despejados de seus tekohás (territórios sagrados). “Agora queremos que essa decisão também seja tomada para outras comunidades, como as de Laranjeira Ñanderu e Ita’í, que estão sob ameaça de despejo”, afirmou. Atualmente, mais de 30 comunidades indígenas do MS aguardam decisões semelhantes. No próximo dia 16 de agosto, o TRF3 julgará dez Agravos de Instrumento referentes a várias terras indígenas do estado.
Os Guarani Kaiowá lutam há mais de 30 anos pela posse de suas terras tradicionais. Nesse tempo têm sido vítimas constantes de violência e de diversas violações de direitos. Muitas comunidades – como as de Kurussu Ambá e Laranjeira Ñanderu – vivem acampadas na beira de rodovias estaduais. Não têm acesso a água potável, alimentação, escolas e atendimento médico. Diversas lideranças já foram ameaçadas, seqüestradas, torturadas e assassinadas.
Pelo terceiro ano consecutivo, o estado do Mato Grosso do Sul lidera a lista de assassinatos de indígenas no país. Somente em 2010, de acordo com o Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), foram 34 ocorrências das 60 registradas em todo o país. “Estamos sofrendo muita violência aqui, principalmente pela questão da terra, não temos lugar, espaço para viver. Muita matança, principalmente de lideranças e professores por causa dessa luta”, denunciou Eliseu.
O mecanismo de retomar seus territórios tradicionais é o único meio encontrado pelos indígenas para sair das beiras de estrada ou sair do confinamento das poucas e minúsculas terras já demarcadas para acelerar o processo de identificação e demarcação das áreas. “A retomada sempre é feita pelos Guarani Kaiowá porque há muitos anos esperamos que algo aconteça e venhamos a ter nossas terras. Como está demorando e a demarcação das terras não acontece, a comunidade está se organizando e lutando pelo seu tekohá”, disse a liderança.
Na luta pela demarcação de suas terras, mais de 40 lideranças do povo Guarani Kaiowá já foram assassinadas, e a lista não pára de aumentar. Os indígenas reivindicam a demarcação de suas terras, pois acreditam que só quando tiverem acesso a elas e, consequentemente, a melhores condições de vida, será possível viver em paz. “Queremos que nossas terras sejam demarcadas para não perdermos mais ninguém nessa luta. Nós não queremos mais isso, chega de violência e mortes. Pacificamente nós queremos a demarcação”, concluiu Eliseu.
Nolan acredita que a decisão ainda favoreça o desenrolar de vários processos criminais que estão parados. “Sabendo que eles estão na terra, o próximo passo é fazer andar os inquéritos e fazer parar a violência contra os indígenas”. Ela chama ainda a atenção das autoridades. “O que esperamos agora é que, vendo a ação do TRF3, as autoridades dêem prosseguimento a esses inquéritos policiais, bem como agilize os processos de demarcação das terras indígenas no Mato Grosso do Sul”, finalizou.
Entenda o caso
A terra indígena, reconhecida pelos Guarani Kaiowá como Kurussu Ambá, é reivindicada desde 2007, quando em 5 de janeiro deste ano realizaram a primeira tentativa de retomada da área. Na ocasião, durante ação violenta de ocupantes e pistoleiros fortemente armados, foram expulsos do local. Durante a ação, disparos de arma de fogo foram deflagrados contra os indígenas. Diversos foram espancados. A indígena Xurite Lopes, 70 anos, nhandesi (rezadora) e liderança histórica da comunidade, foi assassinada. Meses depois, durante a segunda tentativa de voltar à sua terra, outra liderança foi morta por pistoleiros, dessa vez Ortiz Lopes. Em maio de 2009, Osvaldo Lopes foi assassinado, quando a comunidade fazia a terceira retomada.
Entre idas e vindas da área, a comunidade viveu acampada em barracos de lona, às margens da Rodovia MS 284, na altura do km 18, entre a cidade de Coronel Sapucaia e Amambaí. Ali, largados a toda sorte de necessidades, viveram em condições precárias – isolamento, fome, frio, falta de atendimento médico, ameaças e violências. Sequer acesso a água potável tiveram. Crianças morreram vítimas de desnutrição e doenças facilmente tratáveis, o que seria evitado caso ocupassem sua terra tradicional e tivessem acesso à água, remédios e alimentos.
Em novembro de 2009, sob a liderança de Eliseu Lopes, os indígenas retornaram pela 4ª vez ao pequeno pedaço de sua terra tradicional, ocupando uma área localizada nos limites da reserva legal onde incide a fazenda Maria Auxiliadora. Lá, onde estão até hoje, é que lhes foi garantida a permanência pela decisão do TRF3.
Reintegrações de posse
A senhora Delza do Amaral Vargas ingressou com pedido de Reintegração de Posse contra os índios. No dia 10 de março de 2010, a juíza responsável pelo processo, doutora Lisa Taubemblatt, concedeu liminar de reintegração de posse e determinou a saída imediata dos Guarani Kaiowá da área ocupada. Decisão esta que foi suspensa pelo desembargador Silvio Gemaque – autor do Agravo ora julgado favoravelmente aos Guarani Kaiowá -, em 30 de abril de 2010. O despacho de Gemaque permitiu aos indígenas a permanência na área por mais 90 dias, prazo prorrogado por mais 90 dias.
Após esse prazo o Recurso de Agravo foi encaminhado para apreciação pela 1ª Turma do TRF3, a cargo da desembargadora Silvia Rocha. Essa semana o Agravo foi julgado, resultando na decisão unânime favorável à permanência dos indígenas na área.