29/03/2011

Conjuntura da Semana. A rebelião de Jirau

A análise da conjuntura da semana é uma (re)leitura das ‘Notícias do Dia’ publicadas, diariamente, no sítio do IHU.  A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT – com sede em Curitiba, PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

 

Índice:

 

A rebelião de Jirau


– A questão social

– A luta por respeito e dignidade

– O caos social

– Reação tardia

– Pacto pelo PAC

– Jirau explica o modelo

– A questão ambiental

– Revolta de Jirau não sensibiliza esquerda e ambientalistas

 

Conjuntura da Semana em frases

 

Eis a análise.

 

A rebelião de Jirau

 

O maior canteiro de obras do Brasil, localizado no sítio do Jirau, cidade de Porto Velho em Rondônia, ardeu em chamas no dia 15 de março e em poucas horas virou cinzas. Alojamentos e ônibus foram queimados ou destruídos, além do posto de saúde, de escritórios e do almoxarifado. A destruição do canteiro de obras foi resultado de um levante operário. 22 mil trabalhadores estavam envolvidos na construção da usina que forma o complexo hidrelétrico do Madeira junto com a usina de Santo Antônio.

 

Os acontecimentos em Jirau são significativos porque é a maior obra em andamento do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e síntese do modelo desenvolvimentista que reedita o projeto de um Brasil grandioso como à epoca de Vargas, JK e o período militar. Um modelo baseado em grandes obras, sobretudo de exploração energética com vistas a suprir o gigantismo consumista de energia de uma nação emergente exportadora de commodities.

 

Jirau é significativo por outro aspecto, situa-se na Amazônia legal, região em que se desbrava a última fronteira do capitalismo brasileiro. É na Amazônia legal que se trava a luta para amansar os grandes rios – Madeira, XinguTapajósTeles Pires –  e sujeitá-los ao projeto desenvolvimentista. Jirau, nessa perspectiva, também é importante porque é revelador de uma concepção de desenvolvimento que dá as costas para a questão ambiental. Jirau é um filme já visto – ItaipuBalbinaTucuruí  – e antecipa Belo Monte.

 

A questão, porém, mais impressionante de Jirau é a questão social. A explosão da revolta operária contesta o modelo do Brasil moderno. Direitos desrespeitados, truculência e autoritarismo das empreiteiras, sofrimento imposto aos trabalhadores é o outro lado da história que ninguém viu e percebeu. Empreiteiras, sindicatos e governo ficaram surpresos com a revolta que truncou o acelerado andamento do projeto.

 

Jirau se insere na lógica da modernização conservadora e manifesta todas as contradições do país, ou seja, por um lado revela a pujança e o vigor do crescimento econômico, por outro, produz no seu entorno exploração e miséria. Jirau diz respeito ao Brasil potência – 8º PIB da economia mundial e o 73º IDH  –  incapaz de mitigar os efeitos do seu gigantismo.

 

Em Jirau a questão social e a questão ambiental estão relegadas em segundo plano. Jirau coloca em xeque o modelo desenvolvimentista e também o governo de esquerda de Dilma. Jirau reproduz os mesmos erros dos militares onde o social não entra e menos ainda o ambiental. A diferença agora é que no lugar das tropas militares, ocupam o canteiro de obras a Força Nacional – agrupamento policial especializado em combater motins.

 

Jirau interpela também o movimento social, a esquerda militante, as pastorais, os sindicatos, os ambientalistas. A repercussão dos acontecimentos de Jirau foram poucas e esparsas. Os sites de organizações sociais, dos movimentos, das ongs pouco falaram de Jirau. Encontra-se mais e farto material dos acontecimentos do Japão e da Líbia do que aconteceu no norte do Brasil.  Como destacou o jornalista Jânio de Freitas, “a violência assumida pela revolta em Jirau (RO) e pela dos árabes tem semelhança, mas as recepções aqui, aos dois casos, foram opostas”.

 

A revolta operária em Jirau também pouco sensibilizou os ambientalistas e suas organizações. Céleres em denunciar, organizar manifestos e repercutir agressões ao meio ambiente, as organizações ambientalistas pouco falaram da questão social de Jirau. Percebe-se uma grande dificuldade do movimento ambientalista em conectar os temas sociais aos ambientais. A abordagem faz-se geralmente de forma isolada.

 

Compreender, portanto, o que acontece em Jirau auxilia na compreensão do que vem se transformando o Brasil e contribui para uma análise autocrítica da esquerda.

 

A questão social. Jirau vivia sob tensão reprimida

 

A revolta dos milhares de operários no canteiro de obra em Jirau transformando tudo em terra arrasada  pegou todos de surpresa, empreiteiras, sindicatos e governo. O consórcio Energia Sustentável do Brasil – ESBR formado pelas empresas Suez Energy, Eletrosul, Chesf e Camargo Corrêa – responsável pela obra se disse surpresa com a insurreição que qualificou como ação de vândalos. Segundo o consórcio "tudo estava tranquilo". “Não havia descontentamento”, disse Victor Paranhos, presidente do Energia Sustentável do Brasil. "É preocupante porque não sabemos qual é a motivação. Não há sequer uma liderança", afirmou perplexo.

 

Na realidade não “estava tudo tranquilo” como diz o Consórcio. “Jirau vivia sob tensão reprimida”, afirmou o Ministério Público do Trabalho de Rondônia após os acontecimentos. Segundo o Ministério, a quebradeira nos canteiros de obras foi resultado de uma "tensão longa e reprimida" nos alojamentos isolados na floresta amazônica.

 

É importante destacar que conflitos anteriores já tinham acontecido. Em julho de 2010, o canteiro de obras da usina de Santo Antônio virou um campo de batalha. As péssimas condições de trabalho e a super-exploração da mão-de-obra levaram a ações similares as que aconteceram nos últimos dias em Jirau com ônibus apedrejados e queimados e parte do alojamento depredado.

 

A tragédia em Jirau foi anunciada. Dias antes de eclodir o conflito, Maria Ozânia da Silva da Pastoral do Migrante de Rondônia concedeu entrevista à IHU On-Line onde relatava desrespeito aos direitos dos trabalhadores. A entrevista foi publicada um dia antes dos acontecimentos como que prenunciando os fatos. O relato de Maria Ozânia é importante porque revela que muitos trabalhadores já haviam sido enganados por “gatos” antes de chegar ao canteiro de obras.

 

Milhares de vagas do canteiro de obra da usina hidrelétrica de Jirau foram preenchidas por migrantes que receberam promessas de "gatos" – agentes que intermediam mão-de-obra.  As construtoras recorrem às mesmas práticas de recrutamento de trabalhadores dos tempos do "Brasil Grande", nos anos 70, quando o País viveu um surto de desenvolvimento econômico no período do regime militar.

 

Porém, os “gatos” dos anos 2000 sofisticaram os mecanismos de exploração envolvendo o Sistema Nacional de Emprego – Sine, cobrando taxa para garantir o emprego – utilizando-se de boleto bancário – e responsabilizando os próprios trabalhadores  pelo pagamento do seu deslocamento e alojamento até a contratação definitiva. Milhares começaram trabalhando sentindo-se enganados. O ganho médio de um trabalhador de Jirau gira em torno de R$ 1.000,00.

 

No canteiro de obra surgiram outros problemas: não pagamento de horas extras; falta de pagamento de benefícios e participação dos lucros; diferenciação de salários entre as empreiteiras; truculência dos seguranças; falta de pagamento da "hora itínere" – tempo gasto pelo trabalhador sem alojamento para chegar a um local de trabalho distante; custos alto de medicamentos; desrespeito ao cumprimento da "embaixada" – período em que o trabalhador visita a família, entre outros.

 

"Fui descobrir aqui que a Camargo Corrêa não paga hora extra. Você acha que eu iria vir para trabalhar só oito horas? Ficar fazendo nada o resto do dia?", questionou José Benedito Cotrin,  de Abaetetuba (PA).  Outro trabalhador, disse que a empresa se recusava a pagar a viagem de volta dos que pediam demissão e que o local é um "presídio em que o trabalhador controla o horário do banho de sol".

 

A queixa, aliás, da truculência dos seguranças do canteiro é uma das que mais ficou latente: "Os seguranças não sabiam conversar. Nos finais de semana, quando o pessoal passava um pouquinho da conta na bebida, eles tratavam os bêbados na pancada, como vagabundos", relata  Antônio César Souza da Silva de Belém (PA). Muitos trabalhadores de Jirau dizem ter sofrido ”violência física” por parte de funcionários da Camargo Corrêa e que eram obrigados a comprar produtos a preços exorbitantes no canteiro da obra.

 

Uma disputa entre sindicatos ligados à CUT e à Força Sindical também teria contribuído na deflagração dos conflitos. O Sticcero (Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção Civil de Rondônia) criado em 1986 é filiado à Central Única dos Trabalhadores – CUT e o Sintrapav-RO (Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada de Porto Velho) criando em 2008 é ligado à Força Sindical. Ambos disputam a representatividade da categoria. O Sticcero acusa o sindicato adversário de incentivar o quebra-quebra. "O clima entre os sindicatos não está bom. Eles estão brigando na Justiça para saber quem tem representatividade", afirmou o procurador regional do Trabalho de Rondônia Francisco Cruz. Reduzir, entretanto, como setores da imprensa propagam os conflitos em Jirau à briga de sindicatos é simplificar o problema que como se viu tem razões sociais.

 

Sobre as condições de alojamento há controvérsias. Não chegou a ser apontado como um dos principais problemas. Muitos deles eram climatizados, algo anunciado por Lula num discurso para os operários de Jirau, em agosto do ano passado: "Isso [ar condicionado nos alojamentos] demonstra que os trabalhadores vão aprendendo a conquistar seus direitos, os empresários vão aprendendo que é importante que, quanto mais conforto, mais os trabalhadores produzem e assim a gente vai mudando a cara do nosso País", afirmou Lula na época. Destaque-se, porém, que o tratamento não era o mesmo dispensado a todos os trabalhadores. Assim como havia diferenciações salariais dentro do mesmo canteiro em função de várias empresas terceirizadas, as condições de alojamento não eram necessariamente a mesma para todas.

 

A tentativa de desqualificação – “coisa de vândalos” – do levante operário por parte das empreiteiras e o discurso similar do governo não se sustentam. A revolta operária em Jirau é uma questão social. “Uma coisa dessa magnitude não acontece sem um motivo forte. Ninguém se mobiliza dessa forma apenas em função de uma briga entre dois funcionários”, diz Elias Dobrovolski do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, em Rondônia.

 

O jornalista Leonardo Sakamoto,  lembra que uma fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, no ano passado, produziu 330 autos de infração e a interditou equipamentos que estavam colocando em risco os trabalhadores da obra. Destaca ainda que um grupo de 38 pessoas foi libertado de trabalho análogo à escravidão pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Rondônia. As vítimas estavam trabalhando para a Construtora BS, que prestava serviço ao consórcio responsável pela construção de Jirau.

 

A luta por respeito e dignidade

 

A revolta de Jirau, entretanto, não se deu apenas por melhores condições de trabalho e salários. Relatos colhidos pelo Ministério Público do Trabalho de Rondônia dão conta de que parte importante das reivindicações dos trabalhadores é por respeito e dignidade. Entre as reclamações ouvidas pelo Ministério do Trabalho encontram-se:

 

1 – Fim da truculência de seguranças e encarregados – xingamentos, empurrões, cárcere privado temporário e piadas;

2 – Tratamento respeitoso aos trabalhadores que chegarem aos alojamentos alcoolizados. A dependência de álcool é vista como uma doença;

3 – Respeito na relação entre o "sala fria" e o ”peão", sem assédio moral. Em Jirau, "sala fria" é o funcionário que trabalha em salas com ar-condicionado;

4 – Pagamento por "hora itínere" – o tempo de viagem para canteiros de obras fora do perímetro urbano (só para quem não mora em alojamentos). Flexibilidade no transporte de áreas de trabalho isoladas para centros urbanos nas horas de folga;

5 – Serviços eficientes nos refeitórios, para evitar que o tempo da fila do bandejão não consuma boa parte do período do almoço. Refeições adequadas e alojamentos higiênicos;

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - IHU

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