Sexto aniversário do assassinato de Irmã Dorothy Mae Stang, NDdN
Irmãs e irmãos em Jesus Cristo,
querido povo de Deus de Anapu e da Transamazônica,
No dia 12 de fevereiro de 2005 o batismo na água e no Espírito Santo (cfr. At 1,5) de Irmã Dorothy Mae Stang e sua consagração a Deus como religiosa culminaram em seu batismo de fogo e de sangue. As fotos da irmã estendida na estrada nos mostram como o sangue que se esvaiu das perfurações mortíferas impregnou a terra do PDS "Esperança". Irmã Dorothy completou sua vida dedicada aos pobres e à Amazônia numa última e total doação. A vida lhe foi tirada pelos adversários dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS). Completou na sua carne "o que falta às tribulações de Cristo" (Col 1,24). Associou-se ao Sangue do Senhor, símbolo e realidade de seu amor levado até ao extremo.
"Fogo eu vim lançar sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso! Um batismo eu devo receber, e como estou ansioso até que isto se cumpra" (Lc 12,49-50).
Ao celebrarmos hoje o aniversário do assassinato, creio que não haja melhor referência bíblica para compreendermos a missão e o martírio de nossa Irmã. Os dois versículos do Evangelho de São Lucas nos remetem à VI Assembléia do Povo de Deus no Xingu realizada em novembro de 2009. Foi o lema daquele grande encontro que reuniu representantes de toda a Prelazia para elaborarmos as linhas e diretrizes que orientam nossa ação evangelizadora e pastoral até 2014. Irmã Dorothy, sempre participou de nossas assembléias. Assim a carta dirigida a todos os irmãos e irmãs que caminham conosco no Xingu não deixa de ser um reflexo de sua convicção: "Queremos ser uma Igreja engajada na construção do Reino de Deus, uma Igreja samaritana que abre seu coração aos que sofrem, mas também uma Igreja profética que denuncia com vigor as agressões e o desrespeito à dignidade e aos direitos humanos e se opõe a projetos e programas que destroem o lar que Deus criou para todos os povos."
A preocupação com a dignidade e os direitos humanos sempre norteou nosso engajamento em nome do Evangelho. Entendemos que a luta em favor da vida dos povos desta região nunca poderá ser separada da defesa da Amazônia como um todo: suas florestas, suas águas, sua maravilhosa biodiversidade, pois essa Amazônia é a garantia da sobrevivência física e cultural dos povos que nela habitam. Temos certeza de que o cuidado, o zelo com a dádiva divina da Criação faz parte do anúncio e do testemunho do Evangelho. Já em 1990 os bispos do Pará e Amapá deploraram "a sangria da Amazônia" que "já chega ao extremo e a criação de Deus geme no estertor da morte“. Alertaram que os males que afligem a região podem redundar em um irremediável desastre ecológico com conseqüências que se tornam "catastróficas para todo o ecossistema e ultrapassam, sem dúvida, as fronteiras do Brasil e do Continente”[1].
Em setembro de 2007 os bispos de toda a Amazônia Brasileira se reuniram em Manaus e mais uma vez vieram a público com um documento que se baseia na primeira leitura desta celebração: "A criação espera ser libertada da escravidão da corrupção, em vista da liberdade que é a glória dos filhos e das filhas de Deus. Com efeito, sabemos que toda a criação geme até o presente" (Ro 8,21-22). Os pastores da Amazônia lamentam que "um suposto ‘desenvolvimento para a Amazônia’ têm gerado devastação das florestas, exploração dos seus recursos naturais, sem avaliar as consequências. É um processo de desenvolvimento que oprime a natureza e os seres humanos, pois está fundado sobre a perspectiva economicista, ligada ao lucro acima de tudo, sem responsabilidade social e ecológica. (…) A salvação da humanidade inclui a salvação do mundo criado. Isso significa pensar e agir por um desenvolvimento adequado e participativo de todos"[2].
Estamos hoje congregados aqui, não apenas para recordar a Irmã que barbaramente foi tirada de nosso convívio e agradecer-lhe a coragem com que sempre defendeu a Amazônia e seus povos. O principal motivo de estarmos celebrando o Sexto Aniversário de sua morte é pedir as graças de Deus para continuarmos firmes e corajosos na luta por um mundo em que reinam a justiça e a paz e se respeite o meio-ambiente. Queremos também avaliar o presente momento e nos perguntar como ficou o legado que Irmã Dorothy deixou para todos nós. Guardo comigo a última entrevista que ela concedeu a um jornalista em 2 de fevereiro de 2005, exatos 10 dias antes de ser assassinada. Dorothy confessou naquele último colóquio com a mídia: "O nosso povo anda muito angustiado (…). Os fazendeiros e os madeireiros estão com vários pistoleiros espalhados pelo PDS. Eles invadem os lotes, apontam armas e ameaçam matar o nosso povo (…) É um sofrimento muito grande. Eu acredito muito em Deus e sei que ele está comigo. Mas prefiro falar de vida e não de morte. O nosso povo tem um projeto de uma vida melhor com o PDS. Não tenho tempo de pensar em coisa ruim. Mas, se eles me matarem, eu gostaria de ser enterrada em Anapu, junto daquele povo humilde. O Pará é a minha terra".
Seis anos se passaram desde que Irmã Dorothy, através dos meios de comunicação dirigiu estas suas últimas palavras ao mundo. Pergunto-me hoje: O que realmente mudou? Qual é a realidade que as famílias assentadas no PDS estão vivendo? Uma coisa eu sei: elas continuam angustiadas. Mas o pior sofrimento é darmo-nos conta de que muitas pessoas que, quando Dorothy estava viva, apoiaram sua luta em favor dos pequenos, em favor do povo dos PDS, hoje não andam mais conosco. Pelo contrário, encontram-se do lado oposto. Para defender interesses particulares ou de um grupo tentam matar o sonho da Irmã Dorothy e não hesitam em trair os ideais pelos quais ela derramou o seu sangue.
"Sabemos que toda a criação geme"
"Fogo eu vim lançar sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!"
Não é o fogo das queimadas!
É o fogo que faz arder o nosso coração para zelarmos pela dádiva divina da criação e, em nome de Deus, defendermos os direitos e a dignidade dos povos da Amazônia. Amém.
Anapu, PA, 12 de fevereiro de 2011.
Erwin Krautler
Bispo do Xingu