08/12/2010

Avatar é aqui! Povos indígenas, grandes obras e conflitos em 2010

O presente artigo integra o Relatório Direitos Humanos no Brasil 2010. Para acessá-lo na íntegra, clique aqui.  

 

Rosane F. Lacerda[1]

 

Nos conflitos envolvendo o setor elétrico, o apelo ao “desenvolvimento” como justificativa para as perdas a serem suportadas pelos povos indígenas pouco difere do quadro vivenciado no tempo do regime militar. Ali, o boom desenvolvimentista devastava centenas de grupos indígenas, sobretudo, os isolados. A diferença é que o Brasil de hoje possui um marco constitucional com importantes princípios e instrumentos protetivos aos direitos indígenas.

 

Tentar efetuar um balanço e uma análise em poucas linhas de uma realidade tão rica e complexa quanto à relativa aos direitos humanos dos povos indígenas é algo que exige imenso esforço de síntese, além da natural busca por dados fidedignos. Devido aos estreitos limites desta obra coletiva, trazemos aqui apenas um apanhado geral sobre os acontecimentos mais relevantes do ano, tendo como fontes de dados publicações especializadas e matérias jornalísticas disponibilizadas na internet.

 

Em 2010, além dos tradicionais conflitos envolvendo a posse e demarcação das terras indígenas, destacaram-se aqueles relativos a grandes projetos infraestruturais ligados ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, ou a interesses econômicos regionais e locais com incidência naquelas terras.

 

1. Povos indígenas vs. grandes obras

 

Obras em curso e o anúncio de projetos ligados ao setor elétrico com incidência nas terras indígenas foram responsáveis, neste ano, por grande parte das insatisfações manifestadas pelas lideranças indígenas e das tensões com setores do governo. O ano mal havia começado e a Terra Raposa Serra do Sol foi surpreendida com o anúncio da liberação, pelo governo federal, dos recursos destinados aos estudos prévios à construção da Usina Hidrelétrica (UHE) do Contigo, em Roraima. Além de chamar a atenção para os previsíveis danos ambientais decorrentes da obra, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) denunciou a ausência de consulta às comunidades indígenas. Poucos dias depois, em fevereiro, os indígenas foram novamente surpreendidos, dessa vez com o anúncio do projeto de construção de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) nas terras indígenas São Marcos e Raposa Serra do Sol. Tal notícia recebeu fortes críticas do CIR, já que a prospecção fora feita sem autorização das comunidades indígenas[2].

 

Situada no rio Tocantins, a Usina Hidrelétrica do Estreito afetará os povos apinayé e krahô (TO), e krikati, gavião pukobiê, guajajara e tabajara (MA). Segundo o Consórcio Estreito Energia (Ceste), as obras “avançam em ritmo acelerado e já contam com mais de 85% do cronograma físico concluído”[3]. Audiência pública realizada em abril de 2010 revelou uma grande tensão envolvendo a população não indígena afetada pela obra, o que certamente aponta para problemas também vivenciados pelos indígenas. A história das construções de UHEs tem demonstrado que um dos principais impactos para as comunidades indígenas tem sido o aumento da pressão sobre seus territórios por parte das populações não indígenas também afetadas e em situação de abandono. Conforme o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), essa situação ficou evidente durante a audiência pública.

 

Posta em funcionamento em dezembro de 2001, a Usina Hidrelétrica do Lageado, no rio Tocantins, gerou fortes impactos para a população indígena xerente. Em abril de 2010, os indígenas detiveram, na Terra Indígena (TI), um grupo de cinco servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) e um membro do Programa de Compensação Ambiental Xerente (Procambix). Segundo a imprensa, o objetivo dos índios era cobrar agilidade da Funai “na liberação de verbas de programas federais nas áreas de produção e infraestrutura provenientes de acordos de compensação ambiental” decorrente da UHE[4].

 

Em junho, no Mato Grosso, os Enawenê-nawê reagiram contra os impactos das onze PCHs no Rio Juruena – várias delas implantadas pelas empresas do ex-governador Blairo Maggi[5]. Os indígenas montaram acampamento na cidade de Sapezal, onde denunciaram o comprometimento da qualidade das águas do rio, que se tornaram barrentas e impróprias para o consumo, pondo em risco o seu modo de vida. Projetada para o rio Aripuanã, em Aripuanã (MT), a UHE de Dardanelos teve suas obras iniciadas em setembro de 2007. Em julho deste ano, cerca de trezentos indígenas de oito grupos étnicos diferentes[6] ocuparam o canteiro de obras, reivindicando “ações de reparação” pelos danos causados a um sítio arqueológico, além de programas de sustentabilidade.

 

O conflito de maior repercussão envolveu a UHE de Belo Monte. Projetada para o rio Xingu como a maior obra do PAC e a segunda maior do país, ela foi alvo de intensas mobilizações e batalhas judiciais no decorrer do ano. Em abril deste ano, duas grandes passeatas contrárias à obra ocorreram em Brasília (DF), reunindo indígenas, ribeirinhos, movimentos sociais e até o cineasta James Cameron e a atriz Sigourney Weaver (do filme Avatar). Em carta aberta, os caciques Bet Kamati Kayapó, Raoni Kayapó e Yakareti Juruna rejeitaram o projeto dizendo: “Nosso açougue é o mato, nosso mercado é o rio. Não queremos mais que mexam nos rios do Xingu (…)”. Em junho e agosto, em Altamira (PA), diversas manifestações contra a hidrelétrica reuniram centenas de atingidos e participantes dos movimentos sociais. Bastante preocupante é a situação dos grupos indígenas isolados que ocupam a região dos rios Xingu e Bacajá, cujas áreas de perambulação serão afetadas pelas obras[7]. Apesar da gravidade da situação, o governo federal seguiu afirmando que nenhuma terra indígena será afetada.

 

Outra fonte de tensão no período foram as obras do Complexo Hidrelétrico do Madeira (UHEs Jirau e Santo Antônio), em Rondônia. Além dos impactos às comunidades indígenas contatadas em torno da década de 1970 (kaxarari, urueu-wau-wau e pakaanova), as obras afetam, de modo particularmente preocupante, vários grupos indígenas isolados. Expedição realizada em dezembro de 2009 com participação da Funai, Sistema de Proteção da Amazônia (Sian) e organizações não governamentais teria concluído que as obras de Jirau, de tão próximas de alguns isolados (10 a 30km), teriam provocado a sua fuga. No Programa Básico Ambiental (PBA) da UHE de Jirau relativo à TI Uru-Eu-Wau-Wau, haveria, inclusive, o reconhecimento da “presença de indígenas isolados, como os parakuara e os jurureís, assim como dois grupos cujos nomes são desconhecidos”[8].

 

Por fim, no Nordeste, os povos indígenas do já combalido rio São Francisco, além de continuarem a enfrentar o projeto de transposição de suas águas, deparam-se, agora, com os projetos das UHEs de Riacho Seco e Pedra Branca (BA e PE), com barragens previstas para se localizar, respectivamente, entre os municípios de Curaçá (BA) e Santa Maria da Boa Vista (PE), e Orocó (PE) e Curaçá (BA), atingindo diretamente os povos truká (PE) e tumbalalá (BA). Os índios lançaram a campanha “Opará – Povos Indígenas em defesa do rio São Francisco”, e, em julho, em seminário na Terra Indígena Truká (Cabrobó, PE) sobre os impactos dos projetos do PAC, declararam a sua insatisfação com as obras e externaram preocupação com mais um possível foco de tensão: a possibilidade de instalação de uma usina nuclear na região[9].

 

2. Povos indígenas e conflitos territoriais

 

Conforme dados do Cimi, a situação jurídico-administrativa das terras indígenas no país em novembro de 2009 era a seguinte:

 

Situação das Terras Indígenas

Quantidade

Registradas

366

Homologadas

35

Declaradas

60

Identificadas

20

A identificar

146

Sem providências

323

Reservadas/Dominiais

36

Total

988

 

No total, o ano de 2010 iniciou-se com cerca de 489 terras ainda aguardando o ato administrativo de reconhecimento da ocupação tradicional indígena. Tal número, por si só, já indica que a questão da demarcação das terras indígenas no Brasil continua longe de ser resolvida. No compasso de espera do cumprimento da norma constitucional que determina que tais territórios sejam objeto de demarcação, os conflitos surgem, multiplicam-se e se arrastam anos a fio. Aqueles que mais chamaram a atenção no decorrer do ano, até o presente momento, envolveram os tupinambá, da TI Serra do Padeiro, em Buerarema (BA); os Terena, da TI Cachoeirinha, em Miranda (MS); e os guarani-kaiowá, em Paranhos (MS) e Douradina (MS).

 

Em 19 de fevereiro, reagindo a agressões praticadas por fazendeiros ocupantes da terra indígena tupinambá (BA), os indígenas ocuparam imóveis ali incidentes, intensificando-se, daí, os atos de criminalização contra as suas lideranças. Na madrugada de 10 de março, a Polícia Federal (PF), sob a acusação de esbulho possessório e formação de quadrilha, prendeu os irmãos Babau (cacique) e Givaldo, posteriormente transferidos para o presídio de segurança máxima federal de Mossoró (RN). Em 3 de junho, uma terceira irmã, Glicéria, também era presa pela PF e levada com Eruthawã, seu bebê de dois meses, para o presídio de Jequié (BA). Glicéria retornava de um encontro com o presidente Lula, em Brasília. Os três irmãos e o bebê só foram libertados em 16 de agosto. O caso das agressões cometidas contra os tupinambá foi levado pelo Cimi e Justiça Global ao Relator Especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos povos indígenas, Sr. James Anaya[10].

 

No mês de maio, no município de Miranda (MS), o clima de tensão aumentou quando o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar de reintegração de posse à família do ex-governador Pedro Pedrossian sobre as terras das fazendas Petrópolis e Paratudal. A área havia sido retomada em outubro de 2009 pelos terena, que reivindicam o reconhecimento da ocupação tradicional indígena. Em 18 de maio, setenta homens da Polícia Federal e sessenta da Polícia Militar, com uso de cães, bombas de gás e balas de borracha, efetuaram o despejo dos oitocentos indígenas, que denunciaram: “os policiais já chegaram atirando e jogando bombas em meio a mulheres e crianças. Depois, deram-nos só vinte minutos para recolher tudo o que é nosso e sumir”. Os terena reivindicaram, em vão, um prazo para colher a mandioca, milho e feijão que haviam plantado no local[11].

 

Em agosto, os conflitos envolveram os guarani-kaiowá. Um grupo de cerca de cinqüenta indígenas, incluindo mulheres e crianças, retomou o seu tekohá (como é chamado o lugar onde se dão as condições de possibilidade do modo de ser guarani) localizado nas terras da fazenda São Luiz, em Paranhos (MS). Em 23 de agosto, lideranças indígenas passaram a denunciar que homens armados haviam cercado o acampamento, disparando tiros para o alto na tentativa de intimidar e forçar a saída dos índios. Três dias depois, o acampamento foi reforçado com a chegada de mais duzentos indígenas da região. Em setembro, o Cimi e a ONG inglesa Survival International[12] passaram a denunciar que os indígenas eram mantidos cercados no local, sem acesso à água, comida e atendimento médico, e sob constantes ameaças de homens armados contratados pelos fazendeiros. No mês de setembro, também no Mato Grosso do Sul, um grupo de cerca de oitenta indígenas kaiowá retomou um dos lotes que compõe a área reivindicada como tekohá, em Douradina. Os fazendeiros atearam fogo ao acampamento indígena e afirmaram que iriam permanecer no local e expulsar novamente os índios caso retornassem[13].

 

Comentários finais

 

Nos conflitos envolvendo o setor elétrico, o apelo ao “desenvolvimento” como justificativa para as perdas a serem suportadas pelos povos indígenas pouco difere do quadro vivenciado no tempo do regime militar. Ali, o boom desenvolvimentista devastava centenas de grupos indígenas, sobretudo, os isolados. A diferença é que o Brasil de hoje possui um marco constitucional com importantes princípios e instrumentos protetivos aos direitos indígenas. Possui, também, compromissos internacionais relativos à sua proteção. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), por exemplo, preconiza que os povos indígenas sejam sempre consultados “através de suas instituições representativas” em caso de “medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente” (art. 6.º, § 1, “a”). Entretanto, o descumprimento ao princípio da “consulta prévia” às comunidades indígenas tem sido a tônica nos casos aqui apontados, sob o falso argumento de que as suas terras só seriam afetadas caso as obras se situassem no seu interior.

 

São assim desconsiderados os impactos ambientais, sociais, econômicos e culturais que tais comunidades terão que suportar. Conflitos relativos à posse e demarcação de terras indígenas ocorreram em diversas regiões do país, mas os dados indicam que têm sido particularmente graves no Mato Grosso do Sul, onde a população indígena, confinada em minúsculas reservas ao longo da primeira metade do século 20, tem persistentemente lutado para recuperar os seus locais de origem. Estas comunidades têm sido atropeladas, agora, pelas ofensivas cada vez maiores do agronegócio e de seu projeto de exclusão e morte.

 



[1] Rosane F. Lacerda é advogada indigenista. Foi assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário de 1987 a 2005. É mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), doutoranda em Direito na UnB, pesquisadora em Direitos Indígenas e professora-assistente de Direito Público na Universidade Federal de Goiás (UFG) – Campus Jataí (CAJ) e membro do grupo de pesquisa “O Direito Achado na Rua” (UnB).

[2] Folha de Boa Vista (RR), 2/2/2010.

[3] <http://www.uhe-estreito.com.br/>, acesso em 21/9/2010.

[4] Folha.com, 27/4/2010.

[5] “Complexo Hidrelétrico do Juruena ameaça a sobrevivência dos Enawenê-Nawê”, em <http://telma dmonteiro.blogspot. com/2010/06/complexo-hidreletrico-do-ju >. Acesso em 15/9/2010.

[6] “U.H.E Dardanelos em Aripuanã será a maior Hidrelétrica de Mato Grosso”, em <http://ef.amazonia. org.br/index.cfm?fuseaction=noticia&id=226275 >. Acesso em 15/9/2010. Diário MS, Dourados, 26/7/2010.

[7] Belo Monte deverá inundar 516 km², e o desvio definitivo da Volta Grande do Xingu secará 1.006 km², desalojando milhares de famílias de Altamira, além de ribeirinhos e indígenas. (cf. Cimi, informe “Mundo que nos rodeia, n. 902, de 25/2/2010). Porantim, Brasília, abril de 2010, p.2; jun.-jul. 2010, p.5; ago. 2010, p. 12 e 13. Telma Monteiro, “Indígenas isolados ameaçados pelas hidrelétricas na Amazônia: Santo Antônio, Jirau e Belo Monte”, em <http://telmadmonteiro. blogspot.com/2010/05/ indigenas-isolados-ameacados-pelas.html>. Acesso em 18/9/2010.

[8] Telma Monteiro, “Indígenas isolados ameaçados pelas hidrelétricas na Amazônia”, cit.

[9] Jornal do Commercio, Recife, 26/11/2008. Porantim, Brasília, janeiro-fevereiro de 2010. Cimi, informe n° 925, de 5/8/2010. Segundo a Eletronuclear, o Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro apresentou ao presidente Lula, no âmbito do Plano Nacional de Energia (PNE) para até 2030, “a proposta de construção de mais quatro usinas nucleares no Brasil (…), sendo duas no Nordeste e outras duas no Sudeste” (<http://www.eletronuclear.

gov.br/tecnologia/index.php?idSecao= 2&idCategoria=21>, acesso em 25/8/2010).

[10] Porantim, Brasília, mar. 2010, p.4; ago. 2010, p.11.

[11] Caarapó News, 18/5/2010. Folha.com, 17/5/2010.

[12] Campo Grande News, 19/8/2010. No local, em outubro de 2009, outra retomada terminou num ataque de seguranças da fazenda São Luiz ao acampamento indígena, quando desapareceram os professores Rolindo e Genivaldo Verá. O corpo de Genivaldo foi encontrado. Rolindo continuou desaparecido. Diário MS, Dourados, 18/8/2010; 23/8/2010; 26/8/2010. Campo Grande News, 13/9/2010 e Capital News, Campo Grande, 15/9/2010.

[13] A Gazeta News, Amambai, 8/9/2010.


Fonte: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
Share this: