Discurso de Dom Erwin por ocasião da entrega do Prêmio Right Livelihood 2010
Prêmio Right Livelihood 2010
Discurso de Dom Erwin Kräutler, proferido no dia 6 de dezembro de 2010, pela ocasião da entrega do Prêmio Right Livelihood 2010, em Estocolmo, Suécia
Senhor Presidente, Excelentíssimos membros do Parlamento, laureados do Prêmio Right Livelihood, Excelências, queridos amigos,
Neste momento muito especial e único eu atravesso o Oceano Atlântico em pensamentos e emoções. Estou saindo de Estocolmo para o hemisfério sul e embarcando no majestoso rio Amazonas, navegando rio acima para chegar a um dos seus principais afluentes, o rio Xingu. Por 45 anos eu tenho caminhado com os povos daquela região. São eles os povos indígenas que ali vivem há milhares de anos, os ribeirinhos que têm suas casas às margens do rio, vivendo da pesca e da agricultura familiar de pequeno porte. São milhares e milhares de famílias que migraram nas últimas décadas de todos os estados do Brasil em busca de melhores condições de vida.
São as pessoas às quais dedico a minha vida. Pessoas que amo e conheço e pessoas que me amam. A razão para isso é simples: há 45 anos, em 1965, quando vim para o Brasil, para a Amazônia, para o Xingu, perceberam que eu não vim em busca de riquezas ou vantagens. Vim para servir a estas filhas e estes filhos de Deus. São homens e mulheres que caminham comigo. Juntos, defendemos a sua dignidade, seus direitos humanos e o nosso ambiente, nossa casa comum, nossa mãe terra. Eco-logia – da palavra grega οiκος – significa: "lar"! Essas pessoas sabem muito bem que não vão sobreviver se a Amazônia continuar a ser desrespeitada e arrasada. E sabem que o planeta Terra sofrerá consequências irreversíveis por esta destruição cruel. Será o verdadeiro apocalipse.
Quem é contra a destruição inescrupulosa do meio ambiente, contra os que não têm o menor respeito pelo ser humano, contra aqueles que buscam o lucro imediato e incalculável, quem se opõe às ambições de muitos políticos e empresários, arrisca sua vida. Calúnia, difamação e ameaças de morte são as armas para amedrontar e silenciar a quem levanta sua voz contra as agressões à dignidade humana.
Esta é uma das razões pelas quais as autoridades de Segurança Pública decidiram colocar-me sob a proteção da Polícia Militar do estado do Pará, desde o dia 29 de junho de 2006. Essas autoridades consideram-se responsáveis "pela integridade física do bispo do Xingu". A partir daquele dia, policiais militares armados acompanham-me na região do Xingu onde estou e para onde vou. Esta noite, eles têm um dia de folga.
Eu aceito o Right Livelihood Award, em nome de quem luta comigo, em nome dos povos indígenas, da Amazônia e dos direitos humanos. Aceito-o também em nome das dezenas de pessoas que deram suas vidas, cujo sangue foi derramado e que foram brutalmente assassinadas porque se opunham à destruição sistemática da Amazônia. Entre estes mortos, cito duas pessoas que trabalharam comigo lado a lado. Irmã Dorothy Mae Stang, nascida nos Estados Unidos, viveu 23 anos na Transamazônica e foi assassinada em 2005. Lembro-me muito bem de meu primeiro encontro com ela em 1982. Ela disse: "Eu quero trabalhar entre os pobres mais pobres". Não foi a primeira vez que alguém me falou assim, e eu lhe contei várias coisas para lhe dar uma idéia sobre a realidade no Xingu. Para minha surpresa, ela não pediu qualquer outro esclarecimento e começou a viver no meio dos pobres.
De vez em quando ela vinha a Altamira para entrar em contato com repartições públicas e exigir os direitos dos agricultores, ou denunciar abusos e ameaças de grileiros ou grandes fazendeiros.
Não demorou muito para que as primeiras ameaças aparecessem. Os autodenominados "donos" das terras começaram a caluniá-la e a difamá-la. Esta vida difícil, cansativa e muito extenuante, Dorothy viveu até aquele fatídico sábado, 12 de fevereiro de 2005, às sete e meia da manhã, quando foi baleada. O crime foi programado nos mínimos detalhes. Os responsáveis por sua morte não foram apenas os homens condenados que estão na cadeia. Foi no dia 15 de fevereiro de 2005 que enterrei a irmã Dorothy. Nunca na minha vida eu senti meu coração tão invadido por tantos sentimentos. Até hoje não consigo descrever o que eu realmente senti naquele momento.
A segunda pessoa que quero lembrar aqui hoje é Ademir Alfeu Federicci, conhecido por "Dema". De uns anos para cá um novo tipo de invasor apareceu na Amazônia. São os grileiros que usurpam terras públicas. Usam forças paramilitares para defender seus interesses. Usam influência política e financeira para manter a posse de imensas áreas de terra. As famílias de pequenos agricultores são alvos destes supostos proprietários. Uma dessas vítimas foi Dema. Ademir Alfeu Federicci se levantou contra essa gente. Como líder de uma comunidade, ele sempre defendeu os direitos do pequeno agricultor e lutou por dias melhores para o homem e a mulher do campo.
Em 23 agosto de 2001, Dema escreveu uma carta de apoio ao trabalho investigativo que a Polícia Federal estava fazendo em relação aos grileiros. Dois dias depois, ele foi brutalmente baleado em sua casa, em Altamira. Ele caiu aos pés de sua esposa Maria da Penha. Suas últimas palavras foram: "Maria, cuide dos nossos filhos!" E morreu. Até hoje a investigação do assassinato de Dema não foi concluída. Foi morto também porque levantou sua voz contra o projeto hidrelétrico de Belo Monte.
O projeto Belo Monte parece ser sacrossanto, inquestionável e assume o ar de um verdadeiro sujeito histórico. Os seres humanos, famílias e comunidades não são mais protagonistas de sua própria história. Eles não foram ouvidos, foram silenciados. O projeto Belo Monte foi planejado e elaborado em Brasília, bem longe do Xingu. Um projeto que nunca levou em consideração os direitos legítimos e as preocupações da população local.
Todos aqueles que estão protestando contra este projeto, são imediatamente rotulados como "inimigos do progresso", ou "contra o desenvolvimento".
É incrível, quando pensamos no tamanho da Amazônia (um pouco mais da metade do tamanho de todo o Brasil), que o principal problema tem a ver com a posse da terra e seu uso. A maioria dos problemas tem suas raízes neste problema principal:
– A violência rural está ligada à concentração da propriedade da terra e à impunidade mais vergonhosa com que os criminosos são prestigiados. Eles matam e nada acontece! Se forem presos, são liberados no dia seguinte! Se forem condenados, logo mais circulam livremente pelas ruas.
– Há uma falta de política pública que incentive a preservação da Amazônia, este bioma gigantesco. A Amazônia é única, a sua biodiversidade é excepcional! Nada no mundo inteiro existe que é comparável a esta região, uma maravilha da criação de Deus. O Brasil é responsável pela maior parte desse bioma, a Amazônia.
– Outro grande problema é o tráfico de seres humanos. Jovens de ambos os sexos são atraídos para o exterior com promessas de uma vida melhor e altos salários. São capturados na rede internacional de prostituição. Sonham em viver uma vida melhor. Têm sonhos para o futuro. Mas são forçados a viver no inferno da escravidão e da brutalidade.
– A prostituição infantil na Amazônia é, muitas vezes, organizada por pessoas dos estratos mais altos da sociedade. São políticos, empresários ou comerciantes. Eles atraem, prometem, usam e abusam e nada acontece com estes criminosos sexuais. A corrupção é o seu idioma.
Este prêmio foi dado a mim por causa do meu compromisso com os povos indígenas, seus direitos humanos e sua dignidade. Sempre encontrei uma missão específica na defesa dessas pessoas, que são os sobreviventes de séculos de massacres. Na década de 1980, no contexto da Assembléia Nacional Constituinte, consideramos como nosso objetivo a inserção dos direitos indígenas na Constituição Federal. Foi essencial estimular as lideranças dos povos indígenas para que assumissem a sua própria ação protagonista e escrevessem sua própria história. Começamos a construir uma "aliança" entre os povos indígenas e organizações da sociedade não-indígena.
Hoje à noite, aproveito a oportunidade para chamar a atenção da comunidade internacional para a dor, o desespero e a insegurança do povo Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Esse povo indígena está confinado a pequenas áreas, seus jovens não veem nenhuma perspectiva para o futuro e a taxa de suicídio entre eles é elevada de forma alarmante. Os donos das usinas que utilizam trabalho escravo moderno são tratados como heróis pela administração oficial. Estou imensamente preocupado com a violação contra os Guarani-Kaiowá. O atual governo está ignorando esse genocídio cruel em curso perante os seus olhos. Mas não podemos fechar os olhos diante desses crimes!
Senhoras e Senhores do júri! Recebo com gratidão o prêmio em nome de todas estas mulheres e estes homens que estão junto comigo nesta luta e que nunca desistiram. Gostaria de agradecer a todos aqueles que me apoiaram durante os últimos anos, e aqueles que propuseram o nosso trabalho para o júri do Prêmio Right Livelihood. Gostaria de expressar meu profundo agradecimento pelo Right Livelihood Award.
Sinto-me honrado com o prêmio em um momento em que a nossa luta em prol dos povos indígenas, da dignidade e dos direitos humanos está assumindo novas dimensões e maior importância face a projetos de desenvolvimento que ameaçam a Amazônia. Estes projetos anti-ecológicos das empresas terão um impacto enorme e destrutivo também em todos os que esta noite estão sentados aqui em Estocolmo, em todas as pessoas que vivem no planeta.
Sinto-me honrado em aceitar este prêmio da Right Livelihood Foundation como reconhecimento internacional e apoio ao nosso compromisso com esta missão. Prometo continuar por tanto tempo, quanto Deus me conceder de vida.
Muito obrigado, e que Deus os abençoe a todos.
Erwin Kräutler