Educação indígena autônoma, diferenciada e de qualidade
De aldeia Cerrito, Eldorado – MS
“A escola deve ser formadora de guerreiros… A educação deve reforçar nossa identidade e nos ensinar a lutar pelos nossos direitos… A escola deve estar a serviço da comunidade… a escola indígena deve ter autonomia, ser diferenciada, com ensino de qualidade”.
Durante o XVI Encontro de Professores e Lideranças Guarani Kaiowá, que aconteceu ente os dias 11 e 14 de novembro, na aldeia Cerrito, município de Eldorado (MS), foi realizada uma avaliação do atual modelo de educação escolar indígena implementado nas comunidades Guarani do estado. Atualmente, a situação está bem longe da ideal e percebe-se uma grande distância entre a escola que o povo precisa e as escolas que de fato têm.
Embora ao longo da história do povo Guarani já se tenham conseguido importantes avanços no campo da educação escolar indígena, muitos desafios ainda se fazem presentes no dia-a-dia das comunidades. Em pouquíssimas aldeias é oferecido ensino fundamental e médio diferenciados e de qualidade. A gestão da maioria das escolas também não está na mão dos indígenas, e muitos professores também não o são.
Mesmo com todas as conquistas e políticas educacionais já em curso, nota-se que existe um ranço colonial nas escolas e nas secretárias de educação de grande parte dos municípios sul mato-grossenses. Os marcos legais que garantem educação específica e diferenciada são muitos, no entanto, na prática ainda falta muito para se ter uma educação indígena voltada para a vida, cultura e história Guarani, dentro da dinâmica social de construção de um presente e futuro cada vez melhor para as mais de 40 mil pessoas deste povo que vive no MS.
O movimento de professores indígenas tem conseguido importantes avanços na luta por uma melhor educação. No entanto, o grupo tem enfrentado inúmeras dificuldades para avançar em novos patamares, principalmente no estado, onde se concentram os maiores índices de discriminação, racismo e violência contra os indígenas. Existe uma paralisação ou até mesmo um retrocesso em vários aspectos da educação escolar nas aldeias. O que, de acordo com os educadores indígenas e também representantes do movimento indigenista, está intimamente ligado à luta pela terra e a postura anti-indígena do atual governo e das elites econômica e política da região.
Na maioria das escolas não são permitidas discussões sobre a luta pela posse da terra tradicional. O que de acordo com lideranças presentes no encontro, é algo inadmissível: “é um absurdo esse tipo de atitude, pois esse é justamente um de nossos principais temas de discussão. As ações em prol da comunidade e a procura pela posse do território tradicional é algo transmitido de geração em geração, faz parte da história do nosso povo. Dessas discussões e encaminhamentos dependem o futuro do povo Guarani”.
Outro problema enfrentado atualmente pelas comunidades tem sido o diálogo entre os professores indígenas e as lideranças tradicionais. Nem sempre isso tem acontecido de forma facilitada e continuada. Ambos exercem diferentes papéis junto ao seu povo e devem trabalhar em conjunto – sabedoria tradicional e conhecimento técnico – para reforçar a luta e traçar estratégias para a resolução dos problemas.
Uma questão presente desde o início do processo de formação dos professores é a participação das lideranças políticas e tradicionais das comunidades nessas atividades. Só com um trabalho integrado entre essas lideranças e os educadores indígenas se conseguirá, de fato, definir uma estratégia de educação a partir, com e para a comunidade. Também por esta escolha a realização deste encontro em Cerrito, que uniu o XVI Encontro de Professores e Lideranças do Povo Guarani Kaiowá e a grande assembléia das lideranças tradicionais deste povo, a Aty Guassu.
Nem sempre os professores têm conseguido implementar as políticas definidas pelo próprio movimento que integram. Estes não têm autonomia e instrumentos disponíveis para levar às salas de aula todo o planejado e discutido quando destes encontros. Para tanto é necessário que estes tenham mais autonomia e independência para realizar suas atividades. Como solução para muitos desses problemas, os próprios professores e lideranças apontam a gestão compartilhada dessas escolas, realização de cursos de Guarani e capacitação para os educadores, bem como a construção de um novo projeto pedagógico.
Outra dificuldade apontada durante o encontro é a representação indígena nos espaços de debate e decisão das instituições acadêmicas, educacionais e organismos governamentais. Isso atropela e desrespeita os processos coletivos, próprios das comunidades indígenas.
Dialogando com o passado, construindo o futuro
No trabalho em grupos, debates e exposições uma questão se sobressaiu: hoje a educação escolar indígena tem uma importância fundamental na consolidação de caminhos para o presente e futuro das comunidades Guarani Kaiowá. Conseqüentemente, a responsabilidade dos mais de 300 professores indígenas é cada vez maior, não apenas na transmissão de conhecimento, mas principalmente no diálogo, aprendizado e transmissão da sabedoria milenar Guarani.
A transmissão da história, costumes e tradições do povo Guarani acontece, principalmente, na convivência familiar, nos rituais, na vivência espiritual nas oga pysy (casas de reza), nos roçados (prática ainda possível, embora grande parte viva nos confinamentos ou na beira de rodovias do estado), na convivência com os sábios (os mais velhos, os ñanderu e ñandesi). Portanto, é preciso aproveitar esses espaços para repassar aos mais jovens os sentimentos de luta pela posse da terra, que não é mercadoria, fonte de renda, moeda de troca, mas vida para os Guarani Kaiowá.
Uma das sugestões apontadas durante o encontro para se reforçar o diálogo e a luta pelos direitos é a construção de oga pysy junto às escolas. Esse seria o espaço em que os alunos teriam a transmissão de sabedoria e rituais pelos ñanderu. Seria uma atividade integrada dentro do currículo e projeto pedagógico das escolas. Porém, tudo isso certamente exigirá muito diálogo e compromisso das comunidades, hoje muito marcadas por interferências religiosas e políticas partidárias que se opõem a essa caminhada e muitas vezes divide as comunidades.
Atuação missionária
Desde a década de 1980, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) regional Mato Grosso do Sul, iniciou um trabalho junto aos professores Guarani Kaiowá para definir o que de fato seria uma escola indígena, com formação diferenciada e específica e de qualidade. Esse trabalho, posteriormente, foi ampliado com a construção de diversos mecanismos e espaços, articulando tais atividades com instituições locais, regionais e até mesmo nacionais.
Desta iniciativa surgiram duas importantes construções: o magistério indígena Ará Verá, que iniciou suas atividades em 1999, e o curso de licenciatura indígena Teko Arandu, implantado na Universidade Federal da Grande Dourados, em 2oo6. Essas foram importantes conquistas dentro do universo de mais de 500 estudantes universitários indígenas no Mato Grosso do Sul, que também devem ter seu conhecimento integrado na conjuntura de luta de seu povo.
Dentro dos métodos e currículos da universidade também devem estar garantidos a busca do povo Guarani pela garantia de seus direitos fundamentais à vida, à saúde e educação, à terra, à identidade Guarani e á autonomia dentro de seus territórios. Educação, escola e luta pela terra devem ser um conjunto de ações e estratégias que se articulam e fortalecem mutuamente.