14/10/2010

Informe nº 935: “Números oficiais escondem a omissão do estado em relação às terras indígenas”

Afirmação é de Egon Heck, coordenador do Cimi em Mato Grosso do Sul, em carta enviada ao ministro da Justiça Luiz Paulo Barreto

 

Egon Heck, coordenador do Cimi em Mato Grosso do Sul, envia carta ao ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, questionando suas falas em relação à questão indígena durante entrevista concedida ao jornal o Estado de São Paulo, no último dia 3 de outubro. Na oportunidade, o ministro se manifestou pela primeira vez, desde que assumiu a pasta, sobre diversas questões que envolvem os povos indígenas do país, em especial a demarcação de terras.

 

Ao Estado de São Paulo, Luiz Paulo Barreto, afirmou que 95% das terras indígenas brasileiras já estão demarcadas, de acordo com levantamento do MJ. Egon Heck rebate essa declaração e diz que de acordo com a própria população indígena do país esses dados não correspondem à realidade.

 

“Os números, questionáveis a partir de dados levantados com as comunidades e povos indígenas no país, escondem uma tremenda omissão com relação às reais situações dessas terras, estando grande parte delas invadidas, com a omissão ou conivência do governo, a quem cabe a proteção dessas terras e dos recursos naturais”.

 

Na carta, Heck afirma que se coloca ao ministro não com base em posturas ideológicas, mas a partir do conhecimento adquirido ao longo de quase quatro décadas atuando junto às comunidades indígenas do país e acredita que é possível um outro projeto para o Brasil, no qual os povos indígenas tenham plena atuação. 

 

Confira texto na íntegra:

 

 

CARTA ABERTA AO MINISTRO DA JUSTIÇA

 

 

Sr. Ministro Luiz Paulo Barreto,

 

 

Gostaria de fazer algumas colocações a partir de suas recentes declarações na imprensa (ESP,3/10/10). Não as faço a despeito de posturas ideológicas (como o são algumas das afirmações feitas em sua entrevista), mas a partir dos conhecimentos de quem, há quase quatro décadas, trabalha com os povos indígenas e que acredita que é possível e necessário um outro projeto para o Brasil, com o qual os povos indígenas muito têm a contribuir.

 

Deixo claro que considero os povos indígenas como atores políticos e sociais da maior relevância. Portanto, sem nenhuma visão de paternalismo ou tutela, ou de jardim zoológico humano. Aliás, expressões semelhantes foram insistentemente utilizadas por governos da ditadura militar para justificar a invasão das terras indígenas, e entregá-las às frentes de expansão econômica e as grandes obras pois “um punhado de índios não pode atravancar o desenvolvimento”, dizia-se naquela época.

 

Terras-territórios ou reservas

 

Talvez o senhor não tenha acompanhado, até porque não lhe devia interessar o assunto, mas desde a década de 1970, todas as terras indígenas no Brasil deveriam estar demarcadas. Passaram-se mais de três décadas do prazo estabelecido pelo Estatuto do Índio (Lei 6.001 de 1973) e a grande maioria dos processos de demarcação e regularização das terras indígenas estão pendentes, parados ou sem nenhuma providência. São no mínimo dúbias e enganosas afirmações de que 95% das terras indígenas estão regularizadas. Os números, questionáveis a partir de dados levantados com as comunidades e povos indígenas no país, escondem uma tremenda omissão com relação às reais situações dessas terras, estando grande parte delas invadidas, com a omissão ou conivência do governo, a quem cabe a proteção dessas terras dos recursos naturais.

 

Além disso, as terras mais conflitivas, como no Mato Grosso do Sul, e em especial com os Kaiowá Guarani com os quais trabalho, mais de 95% das suas terras necessitam de regularização. É vergonhosa e cruel a omissão e o descaso com que se tratou essa questão. E agora que o processo de identificação está sendo finalizado, esperamos que até o final do ano os relatórios de identificação sejam publicados.

 

O senhor relaciona a era do paternalismo e da tutela à “política de demarcação de terras”. É exatamente o contrário. O paternalismo e a tutela dificultaram a demarcação e garantia das terras indígenas. E o que é mais grave, estimularam o saque e a devastação das áreas já demarcadas.

 

Os Guarani no Mato Grosso do Sul

 

Esse pedido do presidente Lula não é de hoje. Inúmeras vezes ele tem se manifestado nesse sentido. É uma pena que a compreensão de solução das terras indígenas seja contra os direitos constitucionais desses povos a suas terras tradicionais, e se proponha simplesmente a “compra de terras”, e para isso se propõem a mudar a Constituição. Essa saída já foi várias vezes contestada pelos índios e instâncias políticas. É possível e urgente a solução necessitando apenas de decisão e vontade política do governo. Já existem dois projetos de lei na Assembléia Legislativa do Mato Grosso do Sul, a partir dos quais se poderia solucionar a questão inclusive da indenização dos títulos de comprovada origem legal, incidentes sobre terras indígenas.

 

Senhor ministro, por que não aproveita seu ensejo de garantir as terras Guarani, e mande a Polícia Federal acompanhar a Funai, a Funasa e as organizações indígenas, para romperem o cerco, o cárcere privado em que está mantida a comunidade do Ypoí, no município de Paranhos?

 

Não deixe passar essa oportunidade de resolver uma das mais cruéis situações por que passam povos indígenas hoje no continente. O Guarani Kaiowá já não aguentam mais!

 

 

Egon Heck

Campanha Povo Guarani Grande Povo

Brasília, 14 de outubro de 2010

Fonte: Egon Heck/Cimi Regional MS
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