21/06/2010

SPI – Um século de contradições e ambigüidades

Apesar de algumas figuras heróicas produzidas pela política assimilassionista brasileira, em um século de existência, podemos dizer que esta foi uma maneira hábil, silenciosa, de matar os índios, defendendo-os. Está claro no nascedouro do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e nas expressões e atitudes de um de seus arautos e heróicos lutadores, marechal Candido da Silva Rondon, a defesa da vida dos índios contra os invasores de seus territórios.  E a maneira humanista de defender suas vidas seria “integrá-los” na civilização ocidental cristã colonial, e desta forma ajudando-os (ou obrigando-os) a deixarem de ser o que eram, ou seja, povos indígenas originários vivendo há séculos nestas terras.  E o mais importante que desta forma se garantiria a ocupação da terra “brasilis” com um rastro de sangue menor, ou pelo menos, com  massacres mais civilizados.

 

Seria demasiado pretensioso querer trazer os principais lustres registrados em um século de política indigenista da República Federativa do Brasil. Os países de América espanhola e inglesa não se deram ao luxo de passar um verniz, estabelecer marcos legais de defesa dos povos indígenas naqueles tempos em que o preço do progresso, das frentes de expansão econômica significava claramente a eliminação dos obstáculos, que eram os povos indígenas. Foi então que o SPI nos seus primórdios teve a difícil missão de defender os índios para garantir a expansão da colonização sobre seus territórios. A idéia genial foi de confinar os índios e colocar no meio deles colonos, que os ensinassem a trabalhar (ocidental e colonialmente). Não restam dúvidas de que apesar da intencionalidade e resultado prático desse política, surgiram figuras heróicas e honestas que resistiram a esse mar de contradições e foram leais e firmes defensores dos povos indígenas. É o que acontece até os dias atuais, quando , ao completar um século, a Funai se propõem a mudanças de direção, buscando se readequar à Constituição a aos novos ventos da modernidade. O emblemático é que no site da Funai nada conste a respeito da data comemorativa dos cem anos do SPI.

 

Novos ares

 

Na fronteira do Brasil com o Paraguai, num dos confinamentos criados pelo SPI no início do século XX, na segunda década de sua existência, na aldeia Kaiowá Guarani de Sassoró, acontece um dos momentos importantes e silenciosos dessa memória de morte e resistência.

 

Os confinamentos indígenas no Mato Grosso do Sul são um exemplo claro das contradições e ambigüidades em que se tem desenvolvido esse século de política indigenista oficial. Os algozes e máscaras apenas mudaram de figurantes. A sigla poderia muito bem receber novos significados, como Serviço do Progresso dos Invasores ou, como na década de 1960, já envolta e enlameada em extrema corrupção, deu origem à Funai, que por alguns índios foi chamada de Funerária Nacional do Índio. Os Kaiowá Guarani são, como a grande maioria dos mais de duzentos povos indígenas no país, beneficiários e vítimas dessa política.  Dois exemplos ilustram bem esta pratica: hoje a média de terra em que vive esse povo é de menos de meio hectare e para ensiná-los a trabalhar foram levados os índios Terena, que até hoje vivem juntamente com os Kaiowá Guarani na Terra Indígena de Dourados. E para elucidar ainda mais essa contraditória missão da política de defender os invadidos sem contrariar os interesses dos invasores, temos hoje o jogo em que o governo federal tem que fazer de conta que cumpre a Constituição demarcando as terras e tem a ferrenha oposição do governo do estado articulando os grandes interesses nacionais e internacionais do agronegócio da cana, soja, gado…

 

É neste contexto, que acontece a reunião do Conselho da Aty Guasu na aldeia de Sassoró, com o intuito de fazer avançar a luta pelos direitos e reconquista da terra. É um grito de vida envolto em eco de socorro: “Nos deixem viver! Reconheçam e demarquem nossas terras! Não continuem assassinando nossas lideranças! Não deixem impunes os assassinos de nossos parentes! Não matem a terra e os animais! Não destruam o pouco que resta de mata nativa! Não poluam e matem nossos rios que correm sobrem a terra como o sangue que corre em nossas veias! Esse é o nosso grito de vida!”

 

Egon Heck

 

Nos deixem viver

 

Nós do Conselho da Aty Guasu Kaiowá Guarani queremos externar ao Brasil e ao mundo nossa dor e sofrimento, esperanças e propostas de vida. Estivemos reunidos na comunidade de Sassoró, município de Tacuru, que tem um sentido muito importante para nosso povo. Foi aqui que há poucos meses foi aprovado pela câmara dos vereadores, a língua Guarani, como cooficial. Neste lugar, há dois anos, os Ñanderu abençoaram e enviaram os membros dos Grupos de Trabalho para que cumprissem sua importante missão de identificar todas as terras do nosso povo no Mato Grosso do Sul. Este é um dos poucos, senão o único município que tem um indígena na presidência da Câmara dos vereadores. É a partir daqui que decidimos lançar nosso grito pela vida: nos deixem viver! Reconheçam e demarquem nossas terras! Não continuem assassinando nossas lideranças! Não deixem impunes os assassinos de nossos parentes! Não matem a terra e os animais! Não destruam o pouco que resta de mata nativa! Não poluam e matem nossos rios que correm sobrem a terra como o sangue que corre em nossas veias! Esse é o nosso grito de vida!

 

Lamentamos que o Termo de Ajustamento de Conduta – TAC, não esteja sendo cumprido dentro do cronograma de identificação de todas as terras Kaiowá Guarani. Já se passou mais de um ano em que deveriam estar publicados os relatórios de identificação. Queremos denunciar a ação criminosa daqueles que estão impedindo a demarcação de nossas terras rasgando assim a nossa Constituição. Caso continuem essa ação certamente passarão para história como genocidas, como negadores da vida do povo Kaiowá Guarani.

 

Aos nossos amigos de todo o mundo solicitamos que antes de consumir etanol, açúcar, soja, verifiquem a origem e forma de produção, pois poderá estar embebidos de sangue Kaiowá Guarani. Entendemos que antes de continuar com grandes investimentos internacionais no Mato Grosso do Sul, se deverá definir e respeitar as terras dos povos originários dessa região. O atual modelo de desenvolvimento na região dificulta cada vez mais o reconhecimento de nossos territórios, uma vez que aumenta o valor de mercado das terras e os grandes investimentos tornam cada vez mais difícil o reconhecimento das nossas terras. Achamos inadmissível que o governo federal não demonstre maior empenho para que efetivamente sejam reconhecidas nossas terras.

 

Em conseqüência disso, temos estatísticas que apontam para a morte de um parente nosso por semana, em decorrência da violência externa e interna a que estão submetidas nossas comunidades. Isso indica um quadro proporcionalmente pior do que regiões em guerra pelo mundo afora. É um absurdo vermos nossos irmãos enchendo as cadeias da região, sendo criminalizados, enquanto os matadores de nossas lideranças continuam impunes.

 

Os confinamentos superpovoados, como Dourados, Amambai, Caarapó, Porto Lindo, dentre outros, se encontram submetidos a uma violência diária que não é mais possível agüentar. Exigimos providências urgentes e eficazes, que começam com a volta dos inúmeros grupos familiares aos tekoha, terras de onde foram expulsos e passam ter políticas públicas, que precisam ser discutidas com nossas comunidades.

 

Queremos medidas urgentes para localizar o corpo do professor Rolindo foi sumido no tekohá Ypo’i, quando os pistoleiros e fazendeiros assassinaram também o professor Genivaldo e espancaram vários dos Kaiowá Guarani que voltaram para sua terra. Que os responsáveis por esse crime infame sejam punidos e que a comunidade possa voltar à sua terra em breve.

 

Dirigimos nosso apelo a todas as pessoas e organizações que lutam pelos direitos e pela vida dos povos nativos, indígenas, no mundo inteiro. Mas de maneira especial nos dirigimos à Organização das Nações Unidas, que há pouco tempo aprovou a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, que o Brasil assinou. Não adianta ter bonitas leis que só ficam no papel.  Venham ver e sentir a dor da nossa gente e da nossa terra. Venham nos visitar nos acampamentos à beira da estrada, nos confinamentos, nos barracos onde sobrevivemos em meio a muita necessidade, mas com muita dignidade e esperança.

 

Estamos reunidos durante a copa do mundo. Torcemos muito para que seja feito o melhor gol que esperamos a dezenas de anos: a demarcação de nossas terras para podermos voltar a viver em paz.  Também estamos perto de mais uma eleição. Não queremos políticos de promessas, mas proposta clara de respeito a nossos direitos e devolução de nossos territórios. Para isso estamos discutindo nossas políticas com nossos políticos. Chega de sermos usados e enganados!

 

Com a força, sabedoria e reza dos nossos Ñanderu, com o fortalecimento da nossa cultura, com nossas professores e agentes de saúde cada vez mais lutadores pelos nossos direitos e nossa vida, com nossas lideranças cada vez mais conscientes e organizadas, vamos seguir nosso caminho de conquista de nossos direitos,  da terra sem males.

 

Cada vez mais unidos e organizados, com sempre mais amigos e aliados no Brasil e no mundo, temos a certeza de que justiça será feita, reconquistaremos nossas sagradas terras e, finalmente, poderemos de novo viver em paz nesse país “tão grande e tão pequeno para nós”, como afirmava Marçal de Souza Guarani, assassinado em 1983, por lutar pela terra do nosso povo.

 

Terra Indígena Sassoró, município de Tacuru, 20 de junho de 2010

 

Conselho da Aty Guasu Kaiowa Guarani

Fonte: Cimi Regional Mato Grosso do Sul
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