Informe nº 895: Nova estrutura funcional da Fundação Nacional do Índio: algumas questões para refletir sobre as mudanças
Os povos indígenas esperavam, desde 2003, que o Governo Lula promovesse uma discussão aberta e séria sobre as possibilidades de implementar uma nova política indigenista, bem como, sobre o órgão oficial que deveria conduzi-la. Esperavam por um amplo debate no qual suas experiências e propostas fossem consideradas na busca de soluções para os problemas e erros que historicamente vêm marcando a atuação da Funai. Infelizmente o Governo Lula preferiu editar o Decreto 7.056 sem nenhum tipo de debate com os indígenas. Assinado pelo presidente da República no dia 28 de dezembro de 2009, o decreto "aprova o Estatuto e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções Gratificadas da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, e dá outras providências".
O Cimi, diante disso, considera pertinente indagar: por que o governo federal modificou a estrutura estatutária da Funai, sem uma prévia discussão com os povos Indígenas, suas organizações e nem mesmo com a Comissão Nacional de Política Indígenista (CNPI), criada para ser uma instância articuladora e um espaço de diálogo entre o governo e os povos indígenas?
Vale ressaltar que entre as principais atribuições da Funai, está a de realizar os procedimentos administrativos de demarcação das terras indígenas, protegendo-as e fazendo respeitar todos os seus bens. Por essa razão, a participação indígena nesse processo de reestruturação não seria apenas desejável, mas fundamental para que o órgão indigenista pudesse efetivamente cumprir seu papel. Ao não consultar, nem mesmo informar antecipadamente os povos indígenas sobre assunto que lhes diz respeito, o governo desconsiderou a legislação internacional e, principalmente, desrespeitou as populações indígenas do país.
Considerando a importância de um processo de reestruturação deste órgão governamental, faz-se necessário analisar com cautela as normas estabelecidas pelo Decreto nº. 7.056.
De acordo com o texto do decreto, uma das principais alterações na estrutura da Funai diz respeito à sua gestão, anteriormente centrada na figura do presidente e seus auxiliares diretos. A partir de agora, as responsabilidades serão compartilhadas com uma Diretoria Colegiada, constituída por diretores indicados pelo ministro da Justiça e nomeados pelo presidente da República. Essa diretoria terá atribuições relevantes e poderá decidir sobre ações a serem desenvolvidas pelo órgão indigenista (conforme se estabelece no Artigo 11 do Anexo I, Capítulo V do Decreto 7.056/2009).
As Administrações Executivas Regionais (AERs) foram extintas (Artigo 5º do Decreto 7.056/2009) e em seu lugar serão criadas as Coordenações Regionais (36 no total – Anexo II do Estatuto). No entanto, haverá alterações quanto ao funcionamento, na medida em que nas Coordenações Regionais serão instituídos Comitês Regionais, compostos pelos Coordenadores Regionais, os assistentes técnicos, os chefes de divisão e de serviços e os representantes indígenas locais.
Lamentável e curiosamente estes Comitês Regionais, que consistiriam em órgãos colegiados nas Coordenações Regionais, não tiveram suas atribuições definidas no novo Estatuto da FUNAI. Lamentavelmente também estes Comitês Regionais somente contarão com a colaboração de outros órgãos e entidades da administração pública federal, de técnicos, especialistas e principalmente de representantes de entidades não-governamentais e membros da sociedade civil que atuem com regularidade junto aos povos objeto da atenção de cada Coordenação Regional, quando forem convidados pelo Comitê Regional, por intermédio do seu Presidente. O Estatuto da FUNAI, neste particular, afasta-se da experiência inaugurada, mesmo que de forma limitada pela Comissão Nacional de Política Indigenista.
Junto às Coordenações Regionais serão instituídas ainda as Coordenações Técnicas Locais, anteriormente inexistentes e que carecem ainda de definição quanto as suas atribuições.
Também chama atenção a extinção dos Postos Indígenas (Parágrafo Único do Art. 5º). Estes se localizavam nas aldeias ou em terras indígenas e tinham a função de articular as ações locais de prestação de serviços, fiscalização e proteção das áreas. No caso, espera-se que as Coordenações Técnicas Locais substituam, em nível mais avançado, a experiência dos Postos Indígenas, em grande parte limitados materialmente e funcionalmente.
As diretorias e setores da Funai existentes na sede de Brasília também foram modificados. A "Diretoria de Assuntos Fundiários" foi transformada em "Diretoria de Proteção Territorial". Esta, por sua vez, foi subdividida em quatro coordenações gerais e será a responsável pelas ações no que se refere à implementação dos trabalhos de identificação, delimitação e demarcação das terras. Além disso, a diretoria deverá fiscalizar e proteger estas terras, incluindo aquelas habitadas por Povos Indígenas isolados.
Outra novidade na estrutura estatutária da FUNAI diz respeito à criação da Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável, destinada a promover o desenvolvimento sustentável nas comunidades indígenas, bem como, estabelecer parcerias com entidades afins para introduzir o que foi denominado de etnodesenvolvimento econômico nas terras indígenas. A ela compete ainda acompanhar as políticas de saúde e educação.
O Museu do Índio ganha atribuições de acompanhar as demandas relacionadas às culturas, à pesquisa, aos direitos autorais. Também deverá coordenar e controlar contratos de licitações, no que diz respeito aos aspectos étnicos, históricos, científicos, tradicionais dos povos indígenas.
Na avaliação do Cimi, as alterações estabelecidas pelo Decreto 7.056/2009 terão implicações práticas e políticas, o que nos leva a indagar sobre a aplicabilidade de algumas dessas mudanças. É possível imaginar que uma nova estrutura organizacional, criada sobre uma estrutura arcaica como a do atual órgão indigenista, possa funcionar no âmbito de uma temática complexa, ampla e diferente como é a indígena?
A partir de agora toda a sistemática de funcionamento do órgão indigenista será modificada, consequentemente as inúmeras demandas por demarcação, proteção e fiscalização das terras sofrerão prejuízos ou adiamentos por longos períodos de tempo. Além disso, as lacunas que a reestruturação da Funai vier a deixar nos próximos anos serão ocupadas pelos setores que fazem oposição aos direitos territoriais indígenas, dentre eles os empreendimentos de infra-estrutura planejados através do PAC.
Na interpretação do Cimi, o decreto pode estar inserido na lógica de que a Funai deve ser a facilitadora dos empreendimentos econômicos e não empecilho ao desenvolvimento. Talvez a "nova" Funai se empenhe ainda mais em agilizar as autorizações das obras que afetam terras indígenas e dar vazão às demandas que travam as obras do PAC, como já fez o presidente da Funai, no que se refere a autorização para a execução das obras da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará.
Antes da edição do decreto, o Governo Federal vinha insistindo na tese de que 90% das terras indígenas já haviam sido demarcadas e que para tanto deveria se investir em outras ações. Na avaliação do Cimi o decreto projeta a Funai para ações voltadas a gestão territorial e ao planejamento de atividades para o empreendedorismo indígena, o meio ambiente, o aproveitamento dos potenciais naturais e culturais. Isso explica a nova ênfase em temas como sustentabilidade e etnodesenvolvimento econômico. No entanto, vale ressaltar que, do total de 988 terras, apenas 366 estão com seus procedimentos concluídos, ou seja, apenas 37% do total das demarcações reivindicadas pelos povos indígenas.
O Cimi entende também que as mudanças decretadas na estrutura da Funai se vinculam às condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), apresentadas por ocasião do julgamento do processo contra a homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Tais condicionantes restringem o alcance dos direitos constitucionais às demarcações das terras, principalmente daquelas consideradas "novas demarcações", as que precisam de revisão para ampliação de seus limites e ao usufruto indígena dos recursos nelas existentes.
O ano de 2010, ao que tudo indica, será mais um daqueles que exigirá intensas mobilizações dos povos indígenas e suas organizações. Será necessário acompanhar de perto as ações da Funai, de modo especial nas regiões onde estão em curso os trabalhos de Grupos Técnicos, para que não venham a ser paralisados os estudos de identificação das terras, a exemplo de Mato Grosso do Sul; há que se ter atenção quanto ao cumprimento das metas e promessas feitas acerca das terras serem identificadas; há que se ter atenção com a tramitação do Estatuto dos Povos Indígenas no Congresso Nacional, para que este não seja revestido de normas que visem exclusivamente a exploração das terras e seus recursos ambientais, hídricos e minerais; e por fim, a Funai deve ser monitorada sistematicamente para que ela esteja a serviço da causa dos povos indígenas e não dos interesses políticos e econômicos que fazem oposição aos seus direitos constitucionais.
Brasília, 07 de janeiro de 2010
Conselho Indigenista Missionário