Indígenas do médio Solimões e Juruá partilham saberes em Oficinas de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde
Mais de 200 indígenas dos povos Kanamari e Madja Kulina, de Carauari, e Kokama, Kambeba, Miranha, Ticuna, Madija Kulina e Kanamari, de Tefé, compartilharam saberes em saúde e medicina indígena

Oficinas de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde. Foto: Acervo Cimi Regional Norte 1
Para a equipe do Cimi da Prelazia de Tefé, Regional Norte 1, o segundo semestre de 2025 foi marcado por uma das mais importantes atividades da sua missionariedade: a realização de Oficinas de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde Indígena e da medicina tradicional dos povos que habitam as regiões do médio rio Solimões e do rio Juruá.
Em junho, no Juruá, aconteceu a primeira oficina e reuniu mais de 90 lideranças indígenas dos povos Kanamari e Madja Kulina de Carauari, na aldeia Matatibem da Terra Indígena (TI) Kulina do Rio Uerê, em Carauari (AM).
“Para o Cimi da Prelazia de Tefé, Regional Norte 1, o segundo semestre de 2025 foi marcado por uma das mais importantes atividades da sua missionariedade”
Em outubro, a oficina se realiza na aldeia Porto Praia de Baixo, em Tefé (AM), e reuniu mais de 110 indígenas dos povos Kokama, Kambeba, Miranha, Ticuna, Madija Kulina e Kanamari, das aldeias das Terras Indígenas Ilha do Panamim e Porto Praia de Baixo.
Nas duas oficinas, os indígenas compartilharam seus saberes tradicionais em saúde e sua medicina e mostraram que são práticas essenciais para a cura de doenças e a manutenção da saúde dentro da floresta. Em tempos de mudanças climáticas que impõem desafios à vivência e à sobrevivência dos povos das florestas, a medicina indígena torna-se um poderoso aliado e deve ser integrada às políticas de saúde. É o que destaca Francisca Cardoso, missionária da equipe do Cimi Prelazia de Tefé do Regional Norte 1.
“Em tempos de mudanças climáticas que impõem desafios à vivência e à sobrevivência dos povos das florestas, a medicina indígena torna-se um poderoso aliado”

Oficinas de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde. Foto: Acervo Cimi Regional Norte 1
“É muito importante fortalecer esses saberes locais de cura, principalmente pelas mudanças climáticas que, nos últimos anos, têm ocasionado grandes desafios e impactos para a população indígena. Nesse contexto, práticas tradicionais de cura realizadas por benzedeiras, rezadores, pajés e parteiras tradicionais indígenas devem ser reconhecidas e valorizadas, integradas às políticas públicas, porque são tratamentos de cura eficientes, feitos com receitas de plantas medicinais, óleos vegetais, raízes, cascas de árvores, sementes e folhas, e transmitidos de geração a geração. São saberes dos antepassados que se misturam com crenças religiosas e possuem ligação estreita com a natureza, com a floresta”, explica a missionária.
O Ministério da Saúde vem já há alguns anos advertindo que as “emergências climáticas, como ondas de calor extremo, inundações, secas e tempestades, têm impactos significativos na saúde humana. Elas podem agravar doenças respiratórias e cardiovasculares, aumentar a incidência de doenças transmitidas por vetores (como dengue e malária) e comprometer a segurança alimentar e hídrica”, afirma o Ministério da Saúde.
“São saberes dos antepassados que se misturam com crenças religiosas e possuem ligação estreita com a natureza, com a floresta”
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O atual conhecimento milenar
A saúde e a medicina indígena praticada por pajés e indígenas homens e mulheres conhecedoras das plantas da floresta foram abafadas e relegadas com a chegada nos territórios de formas de vida não indígenas. Mas, o conhecimento milenar sobre as plantas está enraizado em uma profunda conexão com a natureza, com o território, crenças e as complexas redes de relações sociais, culturais e religiosas e nunca deixaram de existir entre os indígenas.
Apesar da chegada dos colonizadores há mais de 500 anos, a história indígena nas florestas de várzea da bacia do médio rio Solimões é muito mais longa do que a história da colonização. E apesar das mudanças culturais trazidas pelos novos arranjos sociais e pela instalação política dos municípios e cidades, os povos Kokama, Kambeba, Miranha, Ticuna, Madija Kulina e Kanamari que lá habitam vivenciam esses saberes e realizam trocas de conhecimentos entre suas realidades.
“A saúde e a medicina indígena foram abafadas e relegadas com a chegada nos territórios de formas de vida não indígena”

Oficinas de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde. Foto: Acervo Cimi Regional Norte 1
Na Constituição Federal de 1988, os indígenas conquistaram o reconhecimento pelo Estado brasileiro de suas organizações sociais, costumes, línguas, tradições e, também, os territórios onde vivem. Com isso, suas as práticas tradicionais de saúde indígena passam a ser amparadas e respeitadas.
Foi com essa perspectiva do amparo e do respeito à conquista, que a equipe do Cimi Regional Norte I na Prelazia de Tefé firmou parceria com os povos indígenas da região, com a Pastoral da Criança, o Programa de Qualidade de Vida do Instituto de envolvimento Sustentável Mamirauá e a Associação Estadual das Parteiras Tradicionais do Amazonas Algodão Roxo, e realizou as oficinas.
“As lideranças das comunidades que vieram trouxeram os saberes e práticas em saúde do seu povo e suas aldeias para partilhar”
“As lideranças das comunidades que vieram trouxeram os saberes e práticas em saúde do seu povo e suas aldeias para partilhar. As instituições também trouxeram seus conhecimentos com o foco principal que era a valorização dos saberes tradicionais usados por pajés, parteiras, benzedores, rezadores, o pessoal que faz chá nas aldeias para que possa ser fortalecida e utilizada no dia a dia da aldeia”, reiterou Francisca, firmando que o Cimi tem o propósito do diálogo para a partilha.
“São conhecimentos repassados de geração a geração. Uma das parteiras fala muito que o que ela sabe [sobre o parto] vem da avó dela, que passou para a mãe, daí a mãe passou para ela, e ela está passando para a filha. Então, esse é o objetivo. Que esses saberes não se percam, mas sejam fortalecidos, utilizados e repassados adiante, dentro das terras indígenas. Mais ainda nos territórios distantes, onde falta medicamento, falta o profissional de saúde”, falou, concluindo que esses saberes salvam vidas há milênios.
“Que esses saberes não se percam, mas sejam fortalecidos, utilizados e repassados adiante, dentro das terras indígenas”

Oficinas de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde. Foto: Acervo Cimi Regional Norte 1
Vozes que ecoam saberes
Para as lideranças que participaram das oficinas, os saberes compartilhados ora coincidem, ora são novos. Procedimentos sobre parto, propriedades das plantas medicinais, dicas sobre preparação dos medicamentos, entre outros conhecimentos foram doados e recebidos com entusiasmo, curiosidade, admiração e assimilação. Eis alguns depoimentos:
Ana Cláudia de Lima Cavalcante Kokama, aldeia Nova Esperança do Araguiri, TI Ilha do Panamim. “A importância das nossas medicinas tradicionais dentro das aldeias é que, apesar de há muito tempo ela vem sendo utilizada pelo nosso povo, hoje está sendo perdida. E essa oficina é a revitalização desses saberes, a troca de saberes. Eu mesma não tinha muito conhecimento do estou tendo agora sobre as medicinas, para que serve, o tanto que a gente pode usar, precisa ter também precauções. E assim estou aprendendo e agora eu vou passar para outras pessoas [na aldeia]”.
“Essa oficina é a revitalização desses saberes, a troca de saberes. Eu mesma não tinha muito conhecimento do estou tendo agora sobre as medicinas”
Lohana Vasques Kokama, aldeia Vasques, TI Ilha do Panamim. “Essa oficina é um incentivo para as mulheres mais velhas mostrarem o seu conhecimento e passarem para os jovens aprenderem e valorizarem as medicinas tradicionais. Às vezes a gente só quer usar remédio de farmácia, mas as plantas medicinais para tratar todas as doenças estão ali no nosso quintal. É muito bom os jovens ouvirem as pessoas mais velhas, que mostram seus conhecimentos”.
Arivaldo Gomes Pacay Kambeba, aldeia Kanata Ayetu, TI Ilha do Panamim. Esse encontro é de grande importância para a nossa comunidade, para a juventude, as parteiras, tuxauas, para que nós possamos levar para a nossa comunidade e aprender também a importância que tem das plantas medicinais que tem no nosso território. Podemos curar e salvar vidas”.
“As vezes a gente só quer usar remédio de farmácia, mas as plantas medicinais para tratar todas as doenças estão ali no nosso quintal”

Oficinas de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde. Foto: Acervo Cimi Regional Norte 1
Francisca Gomes da Silva Kambeba, Aldeia Boarazinho, TI Ilha do Panamim. “Eu quero falar sobre as cascas das árvores, quando a gente vai tirar. Toda árvore tem mãe. Antigamente, os nossos avôs, diziam que elas tinham as mães. Então, em homenagem a todas essas cascas que tem aqui, que eu vou falar agora do mesmo jeito que como falava com meus avôs. ‘Pisa caboclo, na Marambaia. Pisa direito e não me atrapalha. Eu sou um caboclo Kaxinawá. Da linha de cura e sem trabalhar’. Isso é homenagem para todas as árvores que nós tiramos as cascas. Quando nós tiramos uma casca pra fazer remédio, a gente tem que falar com as árvores, porque elas têm mãe”.
Ioni dos Santos Ramos Kambeba, aldeia Boara, TI Ilha do Panamim. “A gente não trouxe as plantinhas. Mas na nossa aldeia tem várias plantas medicinais que a gente sabe fazer o remédio. A minha mãe é uma parteira que ela sabe muito de remédio. Eu aprendi muitas coisas com ela, tenho muita experiência, que pra mim é gratificante. To ensinando e to aprendendo. E vou levar pra nossa comunidade. O que a gente mais usa na aldeia é a medicina a pra curar. Eu, por exemplo, sou mãe de três filhos, já estão todos de maior, e fui no hospital só pra ter meus filhos. Nunca levei internados porque o que eu aprendi, eu fazia o remédio quando precisavam. Eu acredito muito, primeiramente em Deus e daí na medicina tradicional”.
“Minha mãe é uma parteira que ela sabe muito de remédio. Eu aprendi muitas coisas com ela, tenho muita experiência, que pra mim é gratificante”
Jó Samias Kokama, Aldeia Borá de Cima, TI Ilha do Panamim. A oficina está rica em conhecimento, principalmente com as parteiras, que são as mãos santas que ajudam as crianças a nascer saudáveis e, também, a mãe fica saudável porque tem um parto normal. Eu vou levando o conhecimento de cortar o umbigo da criança. Isso é importante demais. Com certeza, nós temos de garantir esse direito mais para as nossas aldeias”.
Rafaela Apurinã, secretária da Associação das Parteiras Tradicionais do Estado do Amazonas Algodão Roxo. Esse evento vem mostrando que a fortificação dos nossos saberes gera vida dentro dos nossos territórios. E a gente pode ver o quanto o povo sabe e o quanto o povo tem a oferecer uns aos outros. Ele não vai parar aqui. A gente tem fortalecido a passagem desses ensinamentos às próximas gerações. O que a gente fez aqui foi plantar uma semente e vamos poder colher muitos frutos e trazer qualidade de vida nas nossas regiões”.
“O que a gente fez aqui foi plantar uma semente e vamos poder colher muitos frutos e trazer qualidade de vida nas nossas regiões”

Oficinas de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde. Foto: Acervo Cimi Regional Norte 1
Rosineide Gomes Kokama, aldeia Vasques, Tefé. “Eu tinha 12 anos. Pude aprender com meu pai como ele fazia um parto, porque ele fez o da minha irmã quando ela nasceu. Fiquei um pouco assustada, pense uma pessoa com 12 anos vendo um parto. Mas, eu acho que se for hoje, ver uma mulher tendo um bebê, eu sei que vou poder ajudar e fazer o que meu pai fazia. Ele continua parteiro, ele tem esse conhecimento que pegou da mãe dele. Isso eu acredito que ficou para a minha história. É um conhecimento que eu vou levar para a vida toda. E se for necessário eu ajudar uma mulher ter um filho, eu vou conseguir fazer”.
Pedrina Kokama, vice coordenadora da Comissão de Juventude Indígena de Tefé. “A medicina tradicional dos povos indígenas é um assunto que para mim, é de grande importância porque a gente pode aprender com ancestralidade a curar doenças através de plantas medicinais, através da própria natureza, sem precisar ir a uma farmácia, sem precisar se consultar um médico. Porque muitas das vezes a gente se confia muito no que vem da farmácia, sendo que a gente tem o remédio dentro de casa, vindo das nossas plantinhas, vindo da mãe natureza. Manter vivas as nossas tradições, costumes, rezas, aprendendo com nossos curandeiros, a juventude aprendendo para, no futuro, podermos manter vivos esses costumes, que são as nossas tradições”.
“A medicina tradicional dos povos indígenas é um assunto que para mim, é de grande importância porque a gente pode aprender com ancestralidade a curar doenças”

Oficinas de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde. Foto: Acervo Cimi Regional Norte 1
Tereza do Nascimento Silva Kokama. Aldeia Porto Praia, Tefé. “Eu aprendi tantas receitas de remédio, ensinei também, mas aprendi mais do que ensinei. Eu me sinto muito grata por estar reunida com os parentes e aprendendo o que eu não sabia e saber que nossos conhecimentos têm valor e ajudam a melhorar a vida de tantas pessoas”.
Valcidheice Alves Pereira Kokama. Aldeia Bora de Cima, Tefé. “A gente teve troca de saber entre as aldeias, ‘partilhamento’ de receitas, de conhecimentos sobre as medicinas tradicionais, sobre árvores que têm poder de cura. Conhecemos as plantas que servem para fazer medicamentos. Com isso, as aldeias puderam ampliar seu conhecimento sobre as plantas medicinais e sobre fazer as receitas, os medicamentos, os remédios caseiros. Também acompanha como é que se faz os procedimentos de um parto normal, quais são os cuidados necessários com a mãe antes e durante o parto, os cuidados com a pressão, com a saúde da mãe e do bebê. Aprendemos que os conhecimentos tradicionais e os que vêm com a equipe médica, como o pré-natal, são necessários”.
As oficinas de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde Indígena compõem o projeto “Povos indígenas do Médio Rio Solimões e Afluentes” apoiado pela Agência de Cooperação Cafod, agência oficial de ajuda humanitária e desenvolvimento internacional da Igreja Católica na Inglaterra e no País de Gales, que prevê o fortalecimento dos saberes indígenas.





