“Para nós as mudanças climáticas começaram com o fechamento das comportas da Hidrelétrica de Itaipu”, afirmam os Ava-Guarani Paranaenses
Na COP 30, os Avá-Guarani buscaram aliados para esta causa, que transcende seus limites e se torna uma causa de todos.

Delegação Ava-Guarani Paranaenses na Cúpula dos Povos, em Belém/PA. Foto: Clovis Antonio Brighenti
As mudanças climáticas manifestam-se de forma desigual, afetando de maneira desproporcional as populações mais vulneráveis economicamente e, em especial, aquelas que são vítimas de racismo sistêmico. Embora as mudanças climáticas sejam definidas como transformações significativas nos padrões de temperatura e seus impactos na vida e no meio ambiente, impulsionadas por ações humanas como a destruição ambiental, o povo Avá-Guarani vivencia esse processo desde 1982, com o fechamento das comportas da Hidrelétrica de Itaipu Binacional (Brasil e Paraguai).
O fechamento das comportas resultou na destruição de um ecossistema específico, habitado pela população Avá-Guarani que se autodenomina Paraná Rembey (moradores da margem do Paraná) ou Avá-Guarani Paranaense. Foram devastadas ao menos 55 tekoha kuéra (aldeias) em ambas as margens do rio, sendo 36 no lado paraguaio e 19 no lado brasileiro. A essa destruição ambiental somaram-se graves violações de direitos humanos.
Os Guarani foram submetidos a processos de remoção forçada, sendo transferidos por órgãos indigenistas brasileiros e paraguaios para territórios de outros povos, distantes do rio Paraná, impedindo qualquer possibilidade de retorno. Este processo, denominado Sarambi pá (esparramo geral), foi marcado por uma campanha de terror e negação: o medo era disseminado pelo rádio, anunciando uma grande enchente; a Funai produzia relatórios negando a existência dos Guarani; e o Incra promovia a queima de casas, ameaças e expulsões corriqueiras (essas e outras denúncias estão comprovadas na ACO 3555 no STF).
“A apropriação do nome “Itaipu” é um insulto e um desrespeito aos povos”

Fotos em memória da inundação causada pela construção da Usina Hidrelétrica (UHE) Itaipu Binacional. Foto: Cimi Regional Sul.
A construção da hidrelétrica não apenas causou um impacto físico, mas também destruiu a sacralidade do rio. Ao inundar as Sete Quedas, a binacional submergiu um espaço sagrado, considerado uma das maiores manifestações das divindades e relegado aos rituais e cuidados dos Guarani.
A empresa também aniquilou outros ambientes sagrados do rio, como a própria “Itaipu”, que representava a comunicação entre as divindades e os humanos. As manifestações divinas feitas pelo ruido das águas nas pedras, ouvidos em situações específicas, marcavam o momento oportuno para os Oguatá porã (migrações, caminhadas para a terra sem mal). A apropriação do nome “Itaipu” pela empresa, vendendo-o a turistas e investidores como “a pedra que canta” é um insulto e um desrespeito aos povos, constitui uma afronta à vida e à espiritualidade Avá-Guarani.
Os Guarani se posicionaram na defesa do rio, movidos por uma obrigação moral demandada pela divindade, mas foram ignorados. Um xamã Avá-Guarani e sua comunidade foram os últimos a deixar a margem do rio, removidos em junho de 1982, apenas quatro meses antes da destruição ambiental que deflagrou a pior crise no mundo dos Avá. Mais do que exigir uma nova terra, o xamã defendia o rio com seu corpo, memória e espiritualidade, em uma profunda relação entre humanos e meio ambiente, mediada pela espiritualidade. O fechamento das comportas foi interpretado como um fracasso dos humanos em cumprir o pedido das divindades. Os Guarani, contudo, reafirmam que as divindades não destroem a represa por piedade aos não indígenas, mas que permanecem insatisfeitas com o ocorrido.
“Nada escapa da voracidade do agro, tudo destrói tudo contamina”

Indígenas Guarani às margens do lago de Itaipu (PR). Foto: Paulo Porto
A binacional também gerou mudanças substanciais no entorno ao provocar uma onda de investimentos econômicos nos territórios adjacentes. Dessa forma, o impacto aos Guarani não se limitou à área alagada, mas estendeu-se ao chamamento de empresas e investidores para a região.
Atualmente, os pequenos espaços ocupados pelos Guarani estão cercados por plantações de milho e soja transgênica, que são borrifadas com agrotóxicos de 8 a 10 vezes ao ano, desrespeitando os limites das terras indígenas. As plantas geneticamente modificadas se proliferam para além das lavouras da agricultura “moderna”, modificam as plantas medicinais e os Timity (produtos cultivados). Nada escapa da voracidade do agro, tudo destrói tudo contamina.
Neste contexto, o povo Avá-Guarani questiona o espanto tardio da sociedade ocidental ao se dar conta de que suas práticas são inerentemente autodestrutivas e suicidas. Para este povo, a emergência climática não é um evento recente, mas sim um processo que se completa, dolorosamente, há meio século.
Enquanto o mundo se apavora com a crise atual, para os Avá-Guarani, ela representa a continuidade de um processo violento, uma forma de racismo estrutural que se materializa na negação de seu território e na negação de sua própria existência.
Na COP 30, os Avá-Guarani buscaram aliados para esta causa, que transcende seus limites e se torna uma causa de todos. Eles sabem que, sozinhos, não conseguirão fazer frente a um processo que não apenas não parou, mas segue em velocidade acelerada.
“O sistema capitalista não tolera uma convivência respeitosa com a terra”

Na COP30, lideranças Guarani do Brasil e Paraguai pedem justiça territorial. Foto: Jorge Flores | Amnistía Internacional Paraguay
Contudo, o questionamento central permanece: até onde os jurua kuéra (não indígenas) estão dispostos a enfrentar este tema em conjunto? Até onde as sociedades ocidentais estão dispostas a renunciar a seu falso conforto, de sua tecnologia envolta em petróleo, de seu consumismo desenfreado e de seu amontoado de lixo?
Mais especificamente, até onde a Itaipu Binacional e os governos do Brasil e do Paraguai estão dispostos a rever esses crimes e efetivar uma reparação genuína? Até onde o tímido pedido de desculpas da Itaipu (lado brasileiro) pelas violações de direitos se materializa na devolução das terras alagadas, na reparação dos cemitérios, e na revisão dos crimes da destruição do rio, das Sete Quedas, da Itaipu e de toda a fauna e flora de seu entorno?
A incredulidade na mudança se fundamenta nos processos históricos. Quantos alertas já foram dados à sociedade nacional? Quantas vezes foi comunicado que a mata não poderia ser destruída, que o rio não deveria ser aniquilado, que o veneno não faz bem a ninguém, que a transgenia mata? Se não foram ouvidos no passado, por que acreditar que agora a sociedade não indígena está aberta a escutar e, de fato, mudar?
“Apesar do ceticismo histórico, os Avá-Guarani sabem que não podem parar”
Apesar do ceticismo histórico, os Avá-Guarani sabem que não podem parar. Estes últimos 50 anos demonstraram que o cientificismo da sociedade ocidental não é a solução para o planeta em crise, pois não tem auxiliado na resolução efetiva da relação entre humanos e ecologia. A COP30, pelos poucos avanços realizados no sentido do cuidado com o planeta, é um sinal de alerta, o sistema capitalista não tolera uma convivência respeitosa com a terra.
É imperativo fazer as pazes com o passado, rever os crimes cometidos contra a natureza e repensar as relações do presente. É necessário deixar o orgulho e o sentimento de superioridade de lado e admitir que as mudanças climáticas não são um fenômeno recente. A mudança real exige o reconhecimento de que a crise começou há muito tempo, com a violência e a negação impostas aos povos originários.
“A COP30, pelos poucos avanços realizados no sentido do cuidado com o planeta, é um sinal de alerta, o sistema capitalista não tolera uma convivência respeitosa com a terra”






