11/07/2025

Irmã Cleusa: 40 anos do martírio que não silenciou a luta

“Comprometer-se com o índio, o mais pobre, desprezado e explorado, é assumir firme a sua caminhada, confiante num futuro certo e que já se vai tornando presente, nas pequenas lutas e vitórias (…) Vale arriscar-se”

Foto: Arquivo Diocese Cachoeiro

Quarenta anos após seu martírio às margens do rio Paciá, em Lábrea, no Amazonas, Irmã Cleusa Carolina Rody Coelho permanece presente, viva na memória dos povos indígenas, nas lutas pela terra e na esperança dos que resistem. Seu nome segue sendo invocado como símbolo de coragem e entrega. Sua história, amplamente conhecida, ganha em 2025 um novo capítulo: o da permanência.

A vida da missionária foi semente plantada em solo fértil. Nascida em 1933, em Cachoeiro de Itapemirim (ES), irmã Cleusa destacou-se desde jovem pela inteligência e sensibilidade. Ingressou na Congregação das Missionárias Agostinianas Recoletas (MAR) em 1952, iniciando sua trajetória na Ilha das Flores, no Rio de Janeiro. Em 1954, foi uma das fundadoras da casa da congregação em Lábrea. Permaneceu ali até meados da década de 1960, quando passou a atuar em outras frentes missionárias. Retornou à cidade de Lábrea em 1979, trabalhando entre os Apurinã.

Irmã Cleusa coordenava o sub-regional Norte 1 do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que abrangia as Prelazias de Lábrea e Coari. Atuava para minorar o calvário dos Apurinã, em uma região com grande interesse dos chamados coronéis, devido ao potencial extrativista da castanha. “Era uma região que tinha um interesse enorme dos que chamávamos na época de coronéis, porque tinha um potencial grande de castanha e o interesse dos não indígenas era muito grande por aquela localidade que os indígenas estavam”, explicou Isaac da Silva Albuquerque, técnico da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

“Havia algo diferente que brotava do ser dela. Era realmente uma interioridade que desabrochava”

Foto: Samara Said/Pascom Prelazia de Lábrea

Ao todo, irmã Cleusa dedicou 32 anos de sua vida missionária a serviço dos mais empobrecidos. Percorreu diversas frentes de missão – Manaus (AM), Colatina (ES) e Vitória (ES) – mas foi em Lábrea (AM) que reencontrou o centro de sua vocação. “Era uma religiosa exemplar e observante. De grande espírito de oração e penitência. Extremamente dedicada aos pobres, encarcerados, hansenianos, velhos e doentes de hospitais. Sua maior atuação era junto aos índios e ribeirinhos”, relatou Irmã Paz Gallego, da congregação das Missionárias Agostinianas Recoletas (MAR). “Havia algo diferente que brotava do ser dela. Era realmente uma interioridade que desabrochava”, disse Irmã Rita Cola no documentário intitulado Irmã Cleusa, mártir da causa indígena, produzido pela Verbo Filmes e pela Diocese de Cachoeiro de Itapemirim em 2018.

Logo no início dos trabalhos, irmã Cleusa percebeu que atuar ali não seria fácil. Constatou que os indígenas eram muito discriminados. Além das discriminações, encontrou sérios conflitos com exploradores de castanha. O contexto do regime militar em nada favorecia os povos originários: o governo desejava a todo custo a integração dos mesmos à sociedade nacional, apoiando a perspectiva dos castanheiros que desconsideravam aquela população como indígena.

Sua atuação junto aos Apurinã incomodava. Eles achavam que a irmã incentivava os indígenas a exigir a demarcação das terras, embora ela apenas oferecesse apoio em saúde e solidariedade. “A irmã não intervia, ela dava o apoio de caridade: remédio que não tínhamos naquela época e ela trazia. A gente aprendeu muito com ela. E hoje é como se ela estivesse viva dentro de nós”, explicou o professor Moacir Apurinã.

“Eu posso até morrer, mas não deixo de estar com vocês”

Foto: Samara Said/Pascom Prelazia de Lábrea

Irmã Cleusa percebeu que seu trabalho pastoral com os indígenas não era bem visto na cidade e perante os ribeirinhos vizinhos dos indígenas. Contou a Pedro Borges, liderança Apurinã, que um dia poderia acontecer algo com ela por sua atuação junto aos indígenas. Mesmo assim, dizia: “Eu posso até morrer, mas não deixo de estar com vocês”.

A ameaça virou realidade em 1985. Tudo começou a mando de castanheiros e latifundiários, que encomendaram a morte do cacique Agostinho, liderança Apurinã. O plano era eliminar o líder indígena, símbolo da luta por demarcação, mas, ao não encontrá-lo na aldeia, Raimundo Podivem — indígena, ex-PM com treinamento antiguerrilha — assassinou sua esposa, Maria, e o filho do casal, Arnaldo.

“Eles foram para matar o cacique, e ele não estava. Então eles mataram a mulher e o filho. Aí os índios se rebelaram e iria ter uma guerra”, relatou Frei Enéas Berilli. Diante da tragédia, irmã Cleusa dirigiu-se à aldeia Japiim para consolar a comunidade e garantir providências. “Por isso, quando aconteceu a morte de Maria e Arnaldo, não era de se estranhar que a irmã Cleusa ficasse preocupada e tomasse a atitude que tomou para se aproximar da aldeia e tentar acalmar os indígenas. Então a irmã tentou consolá-los como pôde e prometeu que tomaria providências em Lábrea junto às autoridades civis. Foi assim que ela iniciou a volta para Lábrea”, lembrou Dom Jesús Moraza.

Hoje, 40 anos depois, Irmã Cleusa inspira uma nova geração de defensores da floresta

Foto: Samara Said/Pascom Prelazia de Lábrea

Durante o trajeto, irmã Cleusa cruzou com o barco de Podivem, que atirou. Um dos disparos atingiu de raspão Raimundo Paulo, que a acompanhava. Cleusa disse a ele: “Te cuida, vai embora, porque você tem filhos para criar. Eu vou conversar com esse homem”, contou Raimundo Apurinã, cacique da Aldeia Japiim.

O corpo de Irmã Cleusa foi encontrado no dia seguinte, e o laudo atestou sinais de violência. Hoje, lançamos luz sobre o que permanece vivo em sua memória. “Cleusa hoje não pertence à congregação, não pertence à Igreja, pertence ao mundo e, especialmente, aos indígenas”, afirmou Hoadson Leonardo, coordenador do Cimi, à época.

O martírio de Irmã Cleusa tornou-se espelho do martírio indígena. Sua morte se inscreve na longa história de sangue da Amazônia, onde, ontem como hoje, lideranças são ameaçadas e assassinadas. Como o cacique Agostinho, os povos exigem demarcação, proteção, dignidade. E Cleusa continua presente. “Ela se fez um com os outros. E nessa doação […] isso mexeu com o coração dos povos indígenas”, completou Hoadson. Como disse o poema de Egon Heck, escrito dias após seu assassinato: “Semente morta, enterrada, gérmen, força, luz na luta que continua”.

Sua morte não silenciou: sua voz ecoa como canto de justiça entre os povos que ela amou e serviu

Peregrinação ao Rio Paciá. O local do assassinato de irmã Cleusa é um dos locais de peregrinação da Prelazia de Lábrea. Foto: Samara Said/Pascom Prelazia de Lábrea

Hoje, 40 anos depois, Irmã Cleusa inspira uma nova geração de defensores da floresta. Seu nome ressoa em marchas, liturgias, cantos. Seja em Lábrea, onde repousam seus restos mortais, ou em Vitória, onde parte de seu braço está guardado, sua presença é viva.

Passadas quatro décadas desde o martírio, a Igreja Católica aguarda a canonização de Irmã Cleusa. O processo de beatificação teve início em 2 de junho de 1991, na Catedral Metropolitana de Vitória, e tramita na Congregação para a Causa dos Santos, no Vaticano.

Para muitos, ela já é santa. “É um sinal da misericórdia de Deus viva, na pessoa da Irmã Cleusa. Agora, com o seu martírio, com a sua doação completa, marca a todos nós e, principalmente, os missionários”, afirmou Dom Jesús Moraza.

O compromisso dela não se apagou. Ele segue, dia após dia, no corpo coletivo dos que ousam dizer que vale arriscar-se. Sua morte não silenciou: sua voz ecoa como canto de justiça entre os povos que ela amou e serviu. Ecoa também no chamado que ela mesma nos deixou: “Temos que construir fraternidade, é necessário, mas a justiça tem de estar na base de toda convivência humana”.

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Referências

  1. Cimi. Porantim, nº 385, maio de 2016. Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Porantim-385_mai-2016.pdf. Acesso em: 5 jul. 2025.
  2. Porantim. Porantim, nº 444, abril de 2022. Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2022/09/Porantim-444_Abr-2022.pdf. Acesso em: 5 jul. 2025.
  3. Dia a Dia ES. “Irma Cleusa: quem é a cachoeirense que pode se tornar a primeira santa capixaba”. Disponível em: https://diaadiaes.com.br/irma-cleusa-quem-e-a-cachoeirense-que-pode-se-tornar-primeira-santa-capixaba/#:~:text=Sua%20intelig%C3%AAncia%20acima%20da%20m%C3%A9dia,CIMI)%20do%20Regional%20Norte%20I. Acesso em: 5 jul. 2025.
  4. Redevida. Vídeo sobre Irmã Cleusa. YouTube, 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6phX7GB3n5U. Acesso em: 5 jul. 2025.
  5. Verbo Filmes; Diocese de Cachoeiro de Itapemirim. Documentário: Irmã Cleusa, mártir da causa indígena, 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=M67nW2Jf8IE. Acesso em: 5 jul. 2025.
  6. Porantim. “Notícia sobre assassinato do tuxaua Agostinho”, 31 jul. 1985. Disponível em: https://documentacao.socioambiental.org/noticias/anexo_noticia/516_20090618_112215.pdf. Acesso em: 5 jul. 2025.
  7. Cimi. Mártires da causa indígena, abril de 2022. Disponível em: https://cimi.org.br/2022/04/martires-causa-indigena/. Acesso em: 5 jul. 2025.
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