02/05/2025

Nota de Pesar: morre mais um guerreiro Pataxó Hã-Hã-Hãe!

Caçula tinha 70 anos de idade, e há alguns anos encontrava-se acometido por questões de saúde. A história da liderança se mistura à história da luta de todo o povo por seu território

Evangelista Bispo dos Santos, mais conhecido pelo codinome “Caçula”, liderança do povo indígena Pataxó Hã-Hã-Hãe. Foto: povo Pataxó Hã-Hã-Hãe

Por Cimi Regional Leste

“Lá no pé do Cruzeiro, eu venho,
oh Jurema, com meu maracá na mão!”
(Trecho de Toré)

Em 29 de abril deste ano, faleceu Evangelista Bispo dos Santos, mais conhecido pelo codinome “Caçula”, liderança do povo indígena Pataxó Hã-Hã-Hãe, no Sul da Bahia.

Caçula tinha 70 anos de idade, e há alguns anos encontrava-se acometido de hipertensão arterial e diabetes, o que veio a agravar com problemas cardíacos, causando-lhe um infarto letal quando estava em sua casa no território Caramuru Catarina Paraguassu, no município de Pau Brasil. Caçula deixa mulher e cinco filhos, e o povo em sentimento de saudade, mas também de agradecimento pela sua contribuição na luta, o que foi externado durante o velório.

A história da liderança indígena Caçula, muito querida no seu povo – que compareceu em grande número ao seu velório e sepultamento ocorrido no dia 30 de abril, no Caramuru – se relaciona à luta do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe pela recuperação e regularização do território, intensificado em 1982 com a retomada da fazenda São Lucas no município de Pau Brasil, no Sul da Bahia.

Caçula, sempre discreto, era uma liderança de base, que tinha função importante na organização da comunidade para o enfrentamento nos constantes conflitos na recuperação do território. Passou a atuar como liderança na década de 1990, quando o processo de retomadas do território foi intensificado. Caçula era um dos responsáveis pela organização do Toré, “ritual que animava o povo pra luta”, como costumava dizer.

Foi importante a sua participação na organização do Toré, em 2001, quando no julgamento dos assassinos de Galdino (assassinado em 1997), durante os dois dias e noites do julgamento, o Toré não cessou em frente ao Tribunal em Brasília, resultando na condenação dos assassinos a 14 anos de prisão. Caçula era tio de Galdino, irmão de dona Minervina, mãe também de João Cravin, um dos primeiros caciques do povo, assassinado em 1986, em Pau Brasil. Era tio-avô de Wilson de Jesus (Ninho) também cacique do povo, tio de Marilene (Ci) também grande liderança do povo. Caçula faz parte dessa família que deu grande contribuição à luta do povo na reconquista do território e da sua cultura, até com a vida e sangue.

Caçula foi eleito cacique do povo em 2004, dando continuidade ao processo de recuperação do território, com ações próprias do povo (retomadas), ações administrativas (exigindo dos poderes a devida assistência ao povo), e ações políticas e jurídicas (articulação com outros povos e movimentos sociais e constante pressão no Supremo Tribunal Federal para o julgamento da ação de nulidade dos títulos, ACO 312/BA). Esse período do cacicado de Caçula foi um dos mais intensos do conflito na retomada do território, com grandes ações em várias regiões.

Caçula também foi um grande “festeiro”, organizador do “reisado” e do “samba de couro”, outro aspecto importante da cultura do povo, em homenagem a São Sebastiao, padroeiro da comunidade. Os festejos têm início no dia 6 de janeiro, com o reisado percorrendo boa parte das casas dentro do território, encerrando em 2 de janeiro com a missa festiva e o levantamento do Mastro de São Sebastião.

Caçula coordenou os festejos por muitos anos, sendo este evento localizado dentro do processo de articulação interna e externa da luta do povo. Neste ano de 2025, no dia 25 de janeiro, Caçula estava lá na pequena igreja no Caramuru, já debilitado pelos problemas da saúde; rememorou o tempo em que tinha que providenciar o abate de seis cabeças de gado para a comida do povo de dentro e de fora, que vinha participar, em solidariedade à luta do povo.

O processo de regularização do território do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe teve início em 1926, com a redução da proposta inicial de “50 léguas em quadra” para 54.100 hectares, perpassando três municípios: Pau Brasil, Camacan e Itajú do Colônia, com a criação do Posto Caramuru Catarina Paraguassu que, mesmo com a redução, contrariou os fazendeiros e a elite do cacau na região. Na década de 1930, inicia-se a administração do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) que contrata o antropólogo Curt Nimoedaju para atrair os povos indígenas da região e do estado para serem alojados no posto, com o propósito de extinguir outros postos indígenas no estado da Bahia.

Na década de 1940, o SPI passa o oferecer contratos de arrendamento aos fazendeiros dentro do posto, iniciando uma violenta expulsão dos indígenas; aqueles que resistiam eram mortos. Na década de 1960, o governo do Estado da Bahia passa também a oferecer os títulos de propriedade aos arrendatários dentro do território que é sistematicamente invadido, e os indígenas expulsos, processo que vai até a década de 1970. Algumas famílias que resistiram dentro do território e fora, em outros estados, passam a se articular para o retorno e a retomada do território, fato ocorrido em 1982, com a primeira retomada na fazenda São Lucas em Pau Brasil, local de concentração da resistência durante mais de 15 anos. Hoje, a fazenda São Lucas é conhecida como Aldeia Caramuru.

Em 1982, a Funai foi obrigada a entrar com uma ação de Nulidade de Títulos no STF, diante da resistência dos indígenas e da comprovação da existência do Posto Indígena Caramuru Catarina Paraguassu. A ação de nulidade de títulos, ACO 312/BA, levou 30 anos para o seu julgamento final, em 2012. Durante todo esse período, os indígenas não desistiram, não desanimaram, apesar dos conflitos, das mortes, da violência. O julgamento foi favorável à nulidade de todos os títulos, a aviventação de todos os marcos físicos, portanto a demarcação do território, com o pagamento das benfeitorias de boa fé. Hoje, o território de 54.100 hectares está na posse do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, com cerca de três mil indígenas, no processo de registro no Serviço de Patrimônio da União (SPU).

A equipe do Conselho Indigenista Missionário – Regional Leste esteve presente no velório e sepultamento da liderança Caçula, junto aos familiares e amigos do povo. Vimos também dar o nosso testemunho de forma positiva, da luta do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe no sul da Bahia, pela recuperação e regularização do seu território, que teve no conjunto das suas lideranças o aspecto importante de motivadores e animadores da resistência, da vida; testemunho de que Evangelista Bispo dos Santos, o Caçula, foi um grande guerreiro animador dessa luta.

Desejamos que nesse momento de luto, tristeza e dor, com a sua partida para a casa do Pai, que ele seja sempre exemplo de dedicação, na lembrança e na saudade. Que o Deus da Vida conforte o povo e seus familiares na continuidade da Vida, na certeza de que a liderança indígena Caçula “combateu o bom combate”!

Conselho Indigenista Missionário Regional Leste
Equipe Itabuna – BA

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