16/04/2025

Povo Krenak: justiça confirma direito à reparação coletiva e condena Estado por violações na Ditadura Militar

Dentre as medidas de reparação, o TRF-6 determina a conclusão do processo demarcatório da terra indígena da qual os Krenak foram despojados e exige do Estado pedido público de desculpas aos povos indígenas

Dejanira, anciã do povo Krenak, durante a sessão plenária, na Comissão de Anistia. Ela foi vítima da repressão do regime militar e, na infância, foi deslocada com a família para território Maxakali. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Por Maiara Dourado da Assessoria de Comunicação do Cimi* – Matéria publicada originalmente na edição 474 do Jornal Porantim

No dia 8 de abril, o povo Krenak comemorou a confirmação na Justiça sobre o direito à reparação pelos danos coletivos sofridos durante a Ditadura Militar. A decisão dada pelo Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6) manteve a condenação do Estado brasileiro pelas violações cometidas contra os povos indígenas no estado de Minas Gerais. Uma conquista que trouxe algum alívio à memória e à história de luta dos povos originários no Brasil.

Mas não só o povo Krenak comemorou a notícia, recebida no mês que se celebra o Abril Indígena. “A vitória é de todos os povos indígenas no Brasil”, celebrou Douglas Krenak, uma das principais lideranças de seu povo. “O povo Krenak está muito feliz e em festa com essa decisão. A gente sai do Tribunal com muita emoção e esperança, sabendo que é possível, sim, a gente caminhar para ter uma justiça de transição mais próxima, mais clara e contemplativa em relação às diversas culturas existentes no nosso país”, relatou a liderança.

A decisão confirma a sentença de primeiro grau dada em setembro de 2021 pela Justiça Federal de Minas Gerais. Tanto em primeira como em segunda instância, a União, o estado de Minas Gerais, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Fundação Rural Mineira foram responsabilizados pelas graves violações as quais foram submetidos o povo Krenak e demais povos localizados às margens do rio Doce, no município de Resplendor (MG), durante os anos de chumbo.

Com a decisão, a Funai fica obrigada a concluir a demarcação da Terra Indígena (TI) Krenak Sete Salões, do povo Krenak, e a cumprir junto as demais entidades da União e de Minas Gerais um conjunto de medidas de reparação, que vão desde de um pedido público de desculpas a implementação de políticas que buscam a preservação da memória, da língua e dos costumes do povo Krenak.

Essa decisão da Justiça Brasileira abre uma discussão sobre todos crimes cometidos contra nós

Representantes do Povo Krenak celebram a confirmação judicial do direito à reparação pelos danos coletivos causados durante a Ditadura Militar. Foto: Douglas Krenak“É um momento histórico pro nosso povo, essa decisão da Justiça Brasileira abre uma discussão sobre todos crimes cometidos contra nós, Krenak, e todos povos indígenas no país. E mantém nossa esperança de ter nosso território tradicional regularizado”, considerou Douglas.

O pedido de reparação do povo Krenak deriva de uma Ação Civil Pública (ACP) ingressada pelo Ministério Público Federal (MPF) de Minas Gerais, em 2015. Foram dez anos de espera, desde seu ingresso até a decisão do TRF-6, que agora confirma o direito à reparação ao povo Krenak. O tempo de espera por justiça, no entanto, é ainda maior se levarmos em conta a longa e pouco conhecida história da repressão militar contra os povos indígenas no Brasil.

Terra sagrada

Dentre as medidas judiciais estabelecidas para reparação do povo Krenak, a demarcação da TI Krenak Sete Salões é sem dúvida a mais ansiada. Ela traz uma dimensão concreta ao caráter simbólico da sentença, que fixou um prazo de seis meses para que o Estado finalize o rito demarcatório. O prazo passa a contar a partir do dia 10 de abril, data em que foi publicada a decisão do TRF-6.

O povo Krenak reivindica uma área de 16.595 hectares, que ficou de fora do processo de regularização da TI Krenak, finalizada em 2001. Essa área integra a TI Krenak Sete Salões, cuja identificação e delimitação ocorreu em abril de 2023, junto ao combo de homologações e delimitações encaminhadas pelo governo Lula no início do seu terceiro mandato.

O avanço do processo demarcatório, contudo, só ocorreu após a mobilização política do povo Krenak e, por sua vez, o ingresso da ACP pelo MPF, que obteve decisão judicial em primeira instância favorável à demarcação, depois confirmada em segunda instância pelo TRF-6. A demarcação desde então não avançou, cabendo ainda à União declarar a terra indígena, por meio da emissão da portaria declaratória, cuja etapa é de responsabilidade do Ministério da Justiça.

A TI Krenak Sete Salões é considerada sagrada para o povo Krenak, com valores espirituais inestimáveis a suas comunidades

Representantes do Povo Krenak celebram a confirmação judicial do direito à reparação pelos danos coletivos causados durante a Ditadura Militar. Foto: Douglas Krenak

O descumprimento da determinação judicial pode gerar sanções à União. Segundo o procurador Edmundo, “isso está previsto no Código de Processo Civil, mas na sentença não foi fixada nenhuma multa”, explicou.

Para o povo Krenak, a conclusão do processo demarcatório é fundamental para preservação do território, hoje ameaçado por empreendimentos minerários que têm se aproximado cada vez mais de suas comunidades. “Uma ferrovia da Vale S/A corta nosso território tradicional e uma usina hidrelétrica está a 30 km do nosso território, causando alagamentos a 9 km de distância. No [processo de demarcação do] território, que está em fase de contestação, temos empresas minerando minerais críticos”, alertou Douglas.

A TI Krenak Sete Salões é considerada sagrada para o povo Krenak, com valores espirituais inestimáveis a suas comunidades. “Nesse local tem grutas antigas que nosso povo se abrigava e realizava rituais, além de pinturas rupestres antigas com cemitérios ancestrais. A região sempre abrigou aldeias antigas também”, considerou a liderança.

Capitão Pinheiro

Na decisão, o Tribunal também reconheceu a relação jurídica entre Manoel dos Santos Pinheiro, também réu do processo, e a União, a Funai e o estado de Minas Gerais. Entre 1968 e 1973, o Capitão Pinheiro, como era conhecido entre os indígenas, atuou como chefe da Ajudância Minas-Bahia, uma instância regional da Funai encarregada de administrar os postos indígenas da região.

A atuação do policial militar, em nome de tais entes públicos, foi confirmada pelo TRF-6 nos crimes cometidos contra os povos indígenas na criação e instalação da Guarda Rural Indígena, na administração do Reformatório Krenak e na transferência compulsória dos índios para a Fazenda Guarani, em Carmésia (MG).

A sentença possui um peso simbólico sobre a memória da ditadura militar na relação com povos indígenas

O reconhecimento pela Justiça da função ocupada pelo réu nas violações contra os povos indígenas, no entanto, não incorreu em uma implicação penal. “É uma declaração”, explica o procurador da República Edmundo Antonio Dias, um dos responsáveis pelo ingresso da ACP que deu origem ao processo.

Ainda que declaratória, a sentença possui um peso simbólico sobre a memória da ditadura militar na relação com povos indígenas. “Essa declaração tem uma grande importância sobre o aspecto da memória e da verdade como mecanismo de justiça transicional”, considerou o procurador.

Exílio

A ação proposta pelo MPF se embasa em três episódios que marcam o período de repressão militar contra os povos indígenas: a criação da Guarda Rural Indígena (Grin), a instalação do Reformatório Krenak e a remoção forçada do povo Krenak para a Fazenda Guarani.

Criada em 1969, no contexto de um convênio entre a Funai e a Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), a Guarda Rural Indígena (Grin) marcou de forma significativa a presença militar nas terras indígenas do estado de Minas Gerais, reforçando a abordagem repressiva junto aos seus povos. A Guarda, formada por indígenas de vários povos das mais diversas regiões, exercia o policiamento ostensivo das terras indígenas e, de forma pública, exibia as práticas de tortura executadas em cerimônias de formatura de membros do agrupamento.

A cena filmada de um indígena dependurado em um pau de arara durante um desfile de formatura de uma turma da Grin desvelada durante as investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) se tornou emblemática. Ela é chocante não só pela brutalidade da imagem, mas também pela falta de constrangimento das autoridades que participaram do evento, marcado pela presença do Capitão Pinheiro, réu do processo, ministros e secretários de Estado, bem como do então governador de Minas Gerais.

O episódio que ficaria conhecido como “exílio” denotava o interesse do Estado ditatorial em liberar as terras indígenas para exploração econômica

No mesmo ano e contexto de surgimento da Grin, o Reformatório Krenak foi criado. Sem previsão legal, ele foi instalado pela Funai e pela Polícia Militar de Minas Gerais em 1969, na área do Posto Indígena Guido Marlière (PIGM), onde viviam os Krenak e onde fica hoje a TI Krenak. Segundo o Relatório da CNV, o Reformatório operava como uma espécie de “campo de concentração”, para onde indígenas de diversos povos considerados rebeldes e insurgentes eram enviados e encarcerados.

Ainda durante o período militar, o povo Krenak foi removido de seu território e espalhado por entre os vários postos indígenas criados pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão indigenista do Estado que funcionou entre 1910 e 1967, quando foi extinto – já em meio à Ditadura – e substituído pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Em suas narrativas, o deslocamento forçado para a Fazenda Guarani, situada no município de Carmésia (MG), ocorrido em 1972 é destacado. O episódio que ficaria conhecido como “exílio” denotava o interesse do Estado ditatorial em liberar as terras indígenas para exploração econômica, que ocorreu tanto por meio de arrendamentos mediados pelo próprio SPI, como por meio de invasões de não indígenas.

A pressão de fazendeiros para liberação da área dos Krenak, regularizada desde 1920, foi determinante para o exílio imposto ao povo Krenak, que só retornou a sua terra originária, fugidos da Fazenda Guarani, em 1990. Ao retornarem para uma área diminuta de seu território, de 44 hectares, “eles encontram seu território tradicional ambientalmente devastado por aqueles posseiros que tinham se apropriado de suas terras a partir de títulos ilegitimamente expedidos pela Fundação Rural Mineira”, afirmou o procurador Edmundo.

Uma história ainda a ser contada

Os episódios relatados pelo povo Krenak na ACP são emblemáticos e denotam uma parte importante da história de violação de direitos sofrida pelos povos indígenas no período militar. Essa é uma história, no entanto, segundo o procurador Edmundo, que ainda está por ser contada.

História que começa a ser escrita pelos povos indígenas, pelos protagonistas dessa história

Representantes do Povo Krenak celebram a confirmação judicial do direito à reparação pelos danos coletivos causados durante a Ditadura Militar. Foto: Douglas Krenak

“Os povos indígenas foram lateralmente mencionados no relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Há a análise de apenas 10 casos entre cerca de 305 povos indígenas do nosso país”, relata o procurador. Essa decisão, portanto, implica em uma “história que começa a ser escrita pelos povos indígenas, pelos protagonistas dessa história, de maneira que possa preencher essas infindáveis lacunas da historiografia oficial branca”, afirma.

De acordo com relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em 2014, pelo menos 8.350 indígenas foram mortos pelo Estado militar. Esse número, no entanto, estima apenas os casos de dez povos analisados pela Comissão, 3,3% dos existentes no Brasil, o que indica uma subrepresentação dos casos de violação contra os povos indígenas no período militar.

“O número real de indígenas mortos no período deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativa”, afirmou a CNV em relatório final.

Na ocasião do Relatório, a CNV também recomendou a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, “exclusiva para o estudo das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo.”

Dez anos depois e em resposta à recomendação da CNV, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), o Instituto de Políticas Relacionais (IPR) e o Observatório de Direitos e Políticas Indígenas da Universidade de Brasília (Obind-UNB) instituiu, em 13 de setembro de 2024, o Fórum Memória, Verdade, Reparação Integral, Não Repetição e Justiça para os Povos Indígenas.

Com o objetivo de articular universidades, entidades dos povos indígenas, da sociedade civil e do poder público em torno do debate sobre memória, reparação e justiça aos povos indígenas que sofreram violações durante o regime ditatorial, mais de 40 instituições aderiram ao Fórum. A proposta de criação de uma Comissão Nacional da Verdade exclusiva para os povos indígenas está também como um dos seus principais objetivos.

O número real de indígenas mortos no período deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada

 

Sete medidas de reparação

Na sentença do TRF-6, que condenou o Estado brasileiro a reparar o povo Krenak pelos crimes cometidos pelo governo militar, foram instituídas sete medidas de reparação a serem cumpridas pela União, pela Funai e pelo estado de Minas Gerais:

1- Pedido público de desculpas ao Povo Krenak;

2 -Conclusão do processo de demarcação da Terra Indígena Krenak de Sete Salões, no prazo de 6 meses;

3- Realização de ações de reparação ambiental das terras degradadas pertencentes aos Krenak;

4- Implementação de ações e iniciativas voltadas ao registro, transmissão e ensino da língua Krenak;

5- Implantação e ampliação do Programa de Educação Escolar Indígena;

6- Organização e sistematização de toda a documentação relativa às graves violações dos direitos humanos dos povos indígenas que digam respeito à instalação do Reformatório Krenak, à transferência forçada para a Fazenda Guarani e ao funcionamento da Guarda Rural Indígena, no prazo de 6 meses;

7- Reconhecimento da existência de relação jurídica entre o réu Manoel dos Santos Pinheiro e a União, a Funai e o Estado de Minas Gerais na prática de atos de violações de direitos dos povos indígenas, como a criação e instalação da Guarda Rural Indígena, a administração do Reformatório Krenak e a transferência compulsória dos índios para a Fazenda Guarani, em Carmésia/MG.

 

 

 

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