Marco temporal leva risco de extermínio aos povos em situação de isolamento voluntário, diz secretário-executivo do Cimi à ONU
Luís Ventura ressalta o perigo a cerca de 80 povos isolados que ainda não estão completamente protegidos e monitorados enquanto aguardam o reconhecimento oficial da Funai
Nesta quinta-feira (27), durante o Debate Geral da 58a Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o secretário-executivo do Cimi Luís Ventura afirmou que o marco temporal representa um risco de extermínio aos povos em situação de isolamento voluntário no Brasil, os chamados povos livres.
“Está sendo utilizada a tese do Marco Temporal, já considerada por três relatorias especiais da ONU (Mudanças Climáticas, Tóxicos e Direitos Humanos, Direito Humano a um Meio Ambiente Limpo) como um grande retrocesso, contra os seus (povos em isolamento) direitos territoriais”, declarou o secretário-executivo do Cimi.
A sessão do Conselho de Direitos Humanos acontece no Palais de Nations, em Genebra, na Suíça, até o próximo dia 4 de abril. O pronunciamento de Ventura foi feito por vídeo.
Conforme a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), existem ao menos 80 grupos de povos em isolamento voluntário no país sem um reconhecimento oficial, ou seja, devidamente monitorados e protegidos. Os territórios de movimentação desses indígenas estão cotidianamente ameaçados por inúmeras atividades ilegais e criminosas.
A ONU enfatiza que os Estados devem garantir a posse e a demarcação dos territórios tradicionais desses povos (Artigo 26 da Declaração sobre Direitos dos Povos Indígenas)
O Cimi trabalha com a temática desde a sua fundação, em 1972, e hoje conta com a Equipe de Apoio aos Povos Indígenas Livres (EAPIL). Neste mês de março, o Cimi lançou o livro “Povos Indígenas Livres/Isolados na Amazônia e Grande Chaco”, produzido pela EAPIL. Em 29 artigos escritos por especialistas, o livro traz uma grande riqueza de informações e análises sobre a existência desses povos, seus direitos, as políticas governamentais e os riscos a sua sobrevivência nos diferentes países da América do Sul.
Leia o pronunciamento em português:
Senhor presidente,
são inúmeras as atividades ilegais e criminosas (garimpo, exploração de madeira, caça, pesca, narcotráfico) que cotidianamente ameaçam os Povos Indígenas Isolados na Amazônia, seja em áreas protegidas ou fora delas. Essa situação ainda é mais crítica para aqueles povos isolados que permanecem invisíveis para o Estado. Estes, cuja existência não é reconhecida, segundo as referências da própria Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) são mais de 80.
Além de estarem expostos a todo tipo de invasões e violências em seus territórios, sem nenhuma política específica de proteção, e dada a sua invisibilidade, os direitos desses povos não são considerados nos projetos governamentais e nas concessões para a exploração de riquezas naturais e implantação de projetos econômicos.
Recentemente, inclusive, está sendo utilizada a tese do Marco Temporal, já considerada por três relatorias especiais da ONU (Mudanças Climáticas, Tóxicos e Direitos Humanos, Direito Humano a um Meio Ambiente Limpo) como um grande retrocesso, contra os seus direitos territoriais. O risco de extermínio de povos isolados é real.
Sugerimos que o Conselho de Direitos Humanos recomende ao Estado brasileiro a urgência em adotar medidas preventivas de proteção e de fortalecer a capacidade operacional da Funai para avançar no reconhecimento da existência desses Povos Isolados e na garantia de seus territórios e de suas vidas.
Muito obrigado!
ONU e os povos isolados
A ONU reconhece os direitos dos povos indígenas em situação de isolamento voluntário ou contato inicial, destacando a necessidade de proteger seus territórios, culturas e autonomia por meio de instrumentos como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a atuação de agências como a OIT (Organização Internacional do Trabalho) e o ACNUDH (Alto Comissariado para os Direitos Humanos).
Os povos isolados, conforme as diretrizes da ONU, têm o direito de permanecer assim, cabendo aos Estados e à comunidade internacional assegurar sua proteção. A abordagem deve ser baseada no princípio da precaução, evitando qualquer ação que ameace sua sobrevivência.
A ONU afirma que esses povos têm o direito de decidir livremente se desejam manter seu isolamento ou estabelecer contato com a sociedade envolvente
Diversas relatorias da ONU pressionam governos como os do Brasil, Peru e Paraguai a implementar políticas de “não contato”, criando zonas de proteção integral e fiscalização rigorosa. Em 2012, a Relatoria Especial sobre Povos Indígenas destacou a urgência de medidas para proteger grupos isolados na Amazônia.
Relatórios da ONU alertam que o contato forçado pode levar a epidemias, destruição cultural e até extinção desses grupos, configurando riscos de genocídio cultural. Por isso a Lei 14.701/23, a Lei do Marco Temporal, tem gerado tanta preocupação no Brasil. Nesse sentido, a Convenção 169 da OIT (1989) exige consulta prévia e consentimento livre para qualquer projeto que afete seus territórios.
A ONU afirma que esses povos têm o direito de decidir livremente se desejam manter seu isolamento ou estabelecer contato com a sociedade envolvente (Artigo 8 da Declaração de 2007). Qualquer intervenção deve respeitar sua autonomia e evitar ações coercitivas.