Povo Tremembé de Almofala enfrenta no TRF-5 batalha contra anulação de procedimento demarcatório
Tese do marco temporal é usada por empresa para pedir a anulação do processo administrativo de identificação e delimitação da TI Tremembé de Almofala
![Povos indígenas marcham em direção ao STF, no dia 30 de agosto de 2023, para acompanhar votação sobre marco temporal. Foto: Hellen Loures/Cimi](https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2023/09/2023-08-31-julgamento-stf-hellen-loures-cimi-01-scaled.jpg)
Povos indígenas marcham em direção ao STF, no dia 30 de agosto de 2023, para acompanhar votação sobre marco temporal. Foto: Hellen Loures/Cimi
Um pedido de nulidade do processo administrativo de identificação e delimitação da Terra Indígena (TI) Tremembé de Almofala está na pauta do Tribunal Regional Federal da 5a Região (TRF-5). Os desembargadores tratam da matéria a partir da próxima terça-feira (11), na sede do Tribunal, em Recife (PE).
A TI, localizada no município de Itarema, distrito de Almofala, a 210 km de Fortaleza (CE), é alvo da empresa Agricoco Plantio S/A, que recorreu ao TRF-5 após a 27ª Vara Federal de Itapipoca reconhecer, em fevereiro de 2023, a regularidade do processo administrativo feito pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
No ano passado, a Agricoco conseguiu um efeito suspensivo à apelação no TRF-5, o processo 0802634-17.2024.4.05.0000. O efeito suspensivo da apelação é a suspensão dos efeitos de uma decisão judicial até que o tribunal analise o recurso, pautado para a próxima terça pelos desembargadores.
O principal argumento da empresa, cujo foco de atuação é o cultivo de coco-da-baía, é de que os Tremembé de Almofala nunca ocuparam ou ocupam a Fazenda São Gabriel, parte da TI identificada e delimitada; linha de argumentação baseada na tese do marco temporal.
O STF definiu a tese do marco temporal como inconstitucional em dezembro de 2023
No entanto, a 27ª Vara Federal considerou que embora os Tremembé de Almofala tenham sido expulsos das terras entre as décadas de 1970 e 1980, portanto antes de 15 de outubro de 1988, os estudos da Funai mostram que o povo se manteve no território em oposição à ocupação da empresa, então chamada Ducoco.
A tese do marco temporal, por outro lado, passou a ser considerada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) uma conduta contrária à Constituição Federal em dezembro de 2023. A esse respeito, os ministros fixaram 13 teses ao Tema 1031 – vinculado ao processo de repercussão geral sobre demarcações de terras indígenas (leia mais aqui).
“Há mais de 50 anos que a gente vem enfrentando essa empresa, que chegou, invadiu e nos expulsou. Mas resistimos, quem sobreviveu seguiu firme, lutando no território, para tê-lo de volta. A terra é nossa mãe e nosso pai. Da terra tiramos o sustento, alimentação. Precisamos dela”, explica Fernando Tremembé.
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Fernando Tremembé de Almofala: “os nossos antepassados que se encantaram na luta têm o direito ao território, assim como as futuras gerações do nosso povo”. Foto: Acervo/Povo Tremembé de Almofala
Perícia encontra inconsistências
Uma perícia chegou a ser realizada pela Justiça Federal do Ceará. O laudo final atestou inconsistências no documento apresentado pela Agricoco para definir a propriedade e posse da área. Com isso, a 27ª Vara Federal entendeu que a empresa não poderia questionar o processo administrativo da TI.
Contrariada, a Agricoco chegou ao TRF-5. Os interesses do povo Tremembé de Almofala serão defendidos pela Procuradoria Especializada da Funai, e o processo corre em um contexto onde anular procedimentos administrativos de demarcação e homologação entra na pauta do Judiciário (leia mais aqui).
Histórico da TI Tremembé de Almofala
Das 22 terras indígenas reivindicadas no Ceará, a TI Tremembé do Córrego João Pereira é a única homologada. As demais estão com seus procedimentos paralisados em alguma fase dos trâmites administrativos. Neste contexto se insere a TI Tremembé de Almofala e as controvérsias que não permitem o usufruto exclusivo do povo.
A ocupação do povo no território reivindicado como tradicional pode ser atestada por um leque variado e volumoso de documentos, entre eles a Carta de Sesmaria doada pela Coroa Portuguesa, e registrada em cartório no ano de 1857, sete anos após a Lei de Terras.
Em 1979, uma empresa chamada Ducoco Agrícola se instalou no território se dizendo proprietária da área
Se somam ainda os registros de perseguições e expulsões das famílias Tremembé do Aldeamento de Almofala, violências que se reconfiguram nos dias de hoje. Conforme pronunciamento do Conselho Indígena Tremembé de Almofala (Cita) à ministra dos Povos Indígenas (MPI), Sônia Guajajara, nunca houve interrupção nas tentativas de tirá-los à força do território.
Em 1979, uma empresa chamada Ducoco Agrícola se instalou no território se dizendo proprietária da área. “Houve luta, resistência nossa. Entramos com ações na Justiça para que fosse reconhecido o nosso direito de permanecer na terra”, explica Fernando Tremembé.
Demarcação começa antes de 1988
A Funai esteve no território para iniciar a qualificação da demanda em 1986, ou seja, antes da Constituição de 1988. Em 1992, foi criado o Grupo de Trabalho pelo órgão indigenista para iniciar o procedimento administrativo de identificação e delimitação.
Em julho de 1993, o Diário Oficial da União publicou o Relatório de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Tremembé de Almofala
No entanto, a empresa conseguiu uma decisão judicial que suspendeu o procedimento. Os Tremembé de Almofala não foram ouvidos na ação, mas conseguiram revertê-la em 2023 na 27ª Vara Federal de Itapipoca.
“Agora essa decisão vai ser julgada pelos desembargadores e temos a chance histórica de demonstrar o esbulho, a grilagem e a violência com que a firma tem nos tratado há tantas décadas. Podemos, nesse momento histórico, honrar os nossos antepassados que se encantaram na luta e devolver para eles o território que sempre foi nosso por direito há tantos séculos”, salienta o documento enviado ao MPI.
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Manchete de O Povo, de 1992, mostra a luta dos Tremembé contra os invasores que até hoje tentam derrubar procedimento demarcatório.
Os Tremembé
Conforme o acervo Povos Indígenas do Brasil, “os Tremembé foram citados em documentação histórica e em diversas obras do período colonial, tendo sido aldeados em certas missões, tanto no Maranhão como no Ceará, muitas vezes convivendo e fundindo-se a outras etnias também aldeadas pelos religiosos”.
Almofala foi o mais conhecido aldeamento dos Tremembé, tendo sido fechado na segunda metade do século XIX. As terras foram doadas aos índios da antiga povoação em 1857, mas acabaram sendo invadidas gradativamente por latifundiários. A população indígena continuou vivendo na mesma região, inclusive mantendo o ritual do torém.
“Chamados de caboclos ou descendentes de índios pelos regionais, os Tremembé passaram a reivindicar o reconhecimento oficial de sua identidade étnica a partir da década de 1980. Em 2003, a Terra Indígena Tremembé Córrego do João Pereira foi a primeira a ser homologada no estado do Ceará”, de acordo com o acervo.
Ainda a partir do acervo, os Tremembé, no estado do Ceará, estão nos municípios de Itarema, Acaraú e Itapipoca. Em Itarema, vivem tanto perto da costa, sobretudo no distrito de Almofala, como no interior, no Córrego do João Pereira, que compreende o Capim-açu, São José e Telhas. A região da “Grande Almofala” (Chaves, 1973) compreende a vila homônima e um grande número de localidades onde vivem os Tremembé.