28/02/2025

Após encontro, povo Guarani Mbya do RS divulga documento: “as retomadas são a esperança de nossas famílias”

Entre 25 e 28 de fevereiro, lideranças Guarani Mbya de dezenas de comunidades do estado reuniram-se no Tekoa Tapé Porã, em Guaíba (RS), para fazer memória a Sepé Tiaraju e discutir sua realidade atual

Entre 25 e 28 de fevereiro de 2025, lideranças Guarani Mbya de dezenas de comunidades do estado reuniram-se no Tekoa Tapé Porã, em Guaíba (RS). Foto: Roberto Liebgott/Cimi

Entre 25 e 28 de fevereiro de 2025, lideranças Guarani Mbya de dezenas de comunidades do estado reuniram-se no Tekoa Tapé Porã, em Guaíba (RS). Foto: Roberto Liebgott/Cimi

Por Assessoria de Comunicação do Cimi

Entre os dias 25 e 28 de fevereiro, Guarani Mbya de dezenas de Tekoa do Rio Grande do Sul reuniram-se no Tekoa Tapé Porã, em Guaíba (RS), para fazer memória a Sepé Tiaraju, cuja morte completou 269 anos em 7 de fevereiro de 2025, e discutir a atual realidade de suas comunidades e retomadas. Lideranças, anciões, anciãs, homens, mulheres, jovens e crianças Mbya participaram do encontro.

Ao final da atividade, os Guarani Mbya divulgaram um documento no qual expressam suas preocupações e apresentam reivindicações ao Estado brasileiro.

“Os juruá [não indígenas] desejam que as normas criadas por dentro do direito deles substituam os nossos modos de organizar a vida e as relações entre as pessoas”, afirma o documento. “Os juruá querem unificar tudo, mas nós somos diferentes, de outra cultura, que precisa e deve ser respeitada e valorizada”.

Uma das principais questões elencadas pelos representantes de diversas comunidades foi a precariedade na atenção à saúde e a falta de saneamento básico e de água. “Nesse tempo de temperaturas elevadas nos sentimos sufocados com a falta de água. Não há água limpa nas Tekoas para o banho de nossas crianças”, relata o documento.

“Notamos uma naturalização e até um certo conformismo por aqueles que prestam assistência. Eles já não se importam com a dor da sede. As pessoas acham normal o fato de não ter estrutura e recursos humanos e financeiros para executar as políticas públicas que foram planejadas”

Entre 25 e 28 de fevereiro de 2025, lideranças Guarani Mbya de dezenas de comunidades do estado reuniram-se no Tekoa Tapé Porã, em Guaíba (RS). Foto: Roberto Liebgott/Cimi

Entre 25 e 28 de fevereiro de 2025, lideranças Guarani Mbya de dezenas de comunidades do estado reuniram-se no Tekoa Tapé Porã, em Guaíba (RS). Foto: Roberto Liebgott/Cimi

“Notamos uma naturalização e até um certo conformismo por aqueles que prestam assistência. Eles já não se importam com a dor da sede. As pessoas acham normal o fato de não ter estrutura e recursos humanos e financeiros para executar as políticas públicas que foram planejadas”, denunciam os Mbya Guarani.

Além de reivindicações em áreas como assistência em saúde, educação, saneamento básico e acesso a água potável, o documento também destaca a demarcação e regularização das terras como uma luta central para os Guarani Mbya.

“Compomos um povo que foi desterritorializado. Invadiram nossas terras e as tomaram de nós. Depois lotearam, desmataram, venderam e tornaram ela objeto de especulação. E nós ficamos nas margens de estradas, ou em áreas que foram cedidas ou compradas, em lugares degradados, que não servem pros brancos ganharem dinheiro, elas não têm valor de mercado”, contextualiza o documento.

“As demarcações de terras, iniciadas pela Funai em décadas passadas, foram paralisadas. Os Grupos de Trabalhos que realizaram os estudos de demarcação foram abandonados. E nós, os principais interessados, não somos informados de nada”, prosseguem os Guarani.

“Nos cabe a luta pela terra através das retomadas. Elas são as esperanças de nossas famílias que desejam habitar um lugar bom de se viver”, afirmam os indígenas, que cobram a criação de grupos técnicos de estudo para a identificação e delimitação das áreas retomadas e a regularização das terras indígenas que foram compradas ou cedidas para usufruto das comunidades.

“Apesar de tudo, nós seguiremos lutando, assim como Sepé Tiaraju lutou, assim como nossos antepassados lutaram. Nós temos a certeza de que os Xondaros e as Xondarias seguirão mobilizados exigindo o fim da tese do marco temporal nas demarcações de terras e o respeito à Constituição Federal”, garantem os Mbya Guarani.

 

Leia o documento na íntegra:

 

Em defesa da vida, dos modos de ser e do direito à terra–território.

Nós, Mbya Guarani, de dezenas de Tekoas estivemos reunidos, de 25 a 28 de fevereiro de 2025, em Guaíba/RS, na Tekoa Tapé Porã. Foi uma oportunidade marcante, porque fizemos memória de nosso líder Sepé Tiaraju, que, mesmo depois de quase 270 anos de seu assassinato, se mantém como presença ancestral e espiritual em nosso meio.

Sepé vive em nossas comunidades, ele é fonte de inspiração e motivação. Ele é força que se renova e nos faz seguir lutando por nossos direitos. Ele está conosco nas rezas, nos cantos, nas falas de nossas anciãs – Xixai’i’ri e de nossos anciãos – Xeramoi. Ele está com os Xondaros e as Xondorias, jovens – rapazes e moças – guerreiros e guerreiras de nosso grande Povo Guarani.

Neste encontro refletimos sobre os impactos das sociedades dos brancos – juruá – sobre nossa cultura, nossas tradições e costumes. Vimos que os brancos agem com critérios, regras, leis e formas de se relacionarem que agridem nossos territórios, nossos corpos e nossas almas.

Os brancos têm sede de poder, riqueza e só pensam em dinheiro e nos meios para consumir o solo, as águas, a natureza e tudo mais que está sobre e debaixo de nossa Mãe Terra. Eles, assim como geram riquezas para alguns, na mesma velocidade destroem e geram pobreza e exclusão de milhões de pessoas.

Essa ganância dos brancos nos afeta diretamente, porque eles impõem suas regras e seus negócios contra nossas tradições. Eles impõem uma cultura de dominação que avança sobre nossas Tekoas e afetam nossas crianças, jovens e idosos.

Os juruá desejam que as normas criadas por dentro do direito deles substituam os nossos modos de organizar a vida e as relações entre as pessoas.

Essa forma de relação impede que os povos indígenas tenham garantidos seus direitos à terra, à saúde e à educação de forma diferenciada. Os juruá querem unificar tudo, mas nós somos diferentes, de outra cultura, que precisa e deve ser respeitada e valorizada.

Nesse encontro, os nossos jovens se reuniram em separado para conversar sobre suas expectativas, sobre seus sonhos, sobre a convivência nas Tekoas e os desafios – dificuldades – que enfrentam no cotidiano. Eles sentem a discriminação nos olhares dos juruás nos ambientes – espaços – comerciais, nas escolas e até nas universidades.

Os homens e as mulheres refletiram e debateram sobre a falta de assistência adequada e justa nas Tekoas. Há muitas dificuldades na atenção à saúde e ao saneamento básico. Nesse tempo de temperaturas elevadas nos sentimos sufocados com a falta de água. Não há água limpa nas Tekoas para o banho de nossas crianças. E não se percebe vontade política dos que fazem a gestão dos serviços. Notamos uma naturalização e até um certo conformismo por aqueles que prestam assistência. Eles já não se importam com a dor da sede. As pessoas acham normal o fato de não ter estrutura e recursos humanos e financeiros para executar as políticas públicas que foram planejadas. E não faltam planos, belas palavras. Faltam empenho e vontade daqueles e daquelas que estão nos órgãos de assistência.

No âmbito da educação escolar indígena vemos que só há retrocessos. As escolas não têm infraestrutura. Não há pia, banheiro e água para lavar as mãos. Não temos professores em quantidade suficientes, assim como não há outros profissionais em educação escolar.

Nossas moradias, habitações, são precárias. Muitos de nós passamos toda a vida de baixo de lonas. Precisamos de apoio para a edificação de moradias dignas e que compõem as nossas formas de habitar e viver.

São tempos de muitas dúvidas, insegurança e de reclamações nas comunidades. Estamos cansados de promessas, discursos e pouco empenho daqueles e daquelas que deveriam garantir a execução das políticas públicas.

E há, por fim, a realidade fundiária. Compomos um povo que foi desterritorializado. Invadiram nossas terras e as tomaram de nós. Depois lotearam, desmataram, venderam e tornaram ela objeto de especulação. E nós ficamos nas margens de estradas, ou em áreas que foram cedidas ou compradas, em lugares degradados, que não servem pros brancos ganharem dinheiro, elas não têm valor de mercado.

As áreas demarcadas para nosso povo são pequenas. Em geral são lugares que alagam com as chuvas ou se tornam secas na estiagem. Nos poucos espaços de plantios as nossas sementes de milhos, feijão, melancias e amendoins não germinam.

Necessitamos de apoio para a recuperação dos solos e subsídios para a plantação daquelas sementes que se transformarão em alimentos saudáveis.

As demarcações de terras, iniciadas pela Funai em décadas passadas, foram paralisadas. Os Grupos de Trabalhos que realizaram os estudos de demarcação foram abandonados. E nós, os principais interessados, não somos informados de nada.

Nos cabe a luta pela terra através das retomadas. Elas são as esperanças de nossas famílias que desejam habitar um lugar bom de se viver. Lamentavelmente nos deparamos com muitos conflitos políticos, jurídicos e com os brancos colonizadores. Eles não admitem que as nossas famílias voltem pra casa.

Mas, apesar de tudo, nós seguiremos lutando, assim como Sepé Tiaraju lutou, assim como nossos antepassados lutaram. Nós temos a certeza de que os Xondaros e as Xondarias seguirão mobilizados exigindo o fim da tese do marco temporal nas demarcações de terras e o respeito à Constituição Federal.

Diante de tudo o que avaliamos em nosso encontro, exigimos:

1– Assistência efetiva e diferenciada em saúde. Que as equipes sejam qualificadas e que possam prestar assistência respeitando os nossos modos de ser.

2– Saneamento básico e água potável em todas as nossas Tekoas, não dá mais para esperarmos pelo abastecimento de água através de caminhões pipas. Exigimos água limpa. É necessário que sejam perfurados poços artesianos, assim como é necessário que a água seja distribuída nas nossas casas, postos de saúde e escolas.

3– Educação diferenciada, com a criação de escolas, equipando–as e contratando professores, professoras, merendeiras e outros profissionais.

4–Habitações condizentes com nossas praticas tradicionais e culturais. É inaceitável a falta de habitações. Os governos se omitem, se negam a discutir e planejar as habitações com nossas comunidades e líderes.

5–Demarcação e regularização de todas as terras indígenas, com a retomada imediata dos procedimentos demarcatórios e os Grupos de Trabalhos paralisados em nossa região, como as Tekoas de Irapuá, Estrela Velha, Arroio do Conde, Petim e Passo Grande, Itapuã, Ponta da Formiga, Morro do Coco, Lami, Lomba do Pinheiro, Estiva e Capivari do Sul.

6– Respeito às nossas retomadas de terras com a criação de grupos técnicos, visando o início dos procedimentos de demarcação nas áreas de Canela, Ponta do Arado, Maquiné, Terra de Areia, Rio Grande, Cachoeirinha, São Gabriel e Nhe’engatu em Viamão.

7– Regularização das terras indígenas que foram compradas ou cedidas para usufruto das comunidades indígenas. Existe medo e insegurança jurídica por causa da judicialização das demandas fundiárias. É necessário que os governos federal e estadual cumpram o Termo de Cooperação Técnica assinado em agosto de 2024.

Nossas lideranças e toda a juventude Mbya Guarani, além de apresentar – às autoridades – as pautas de reivindicações contidas nesse documento, convoca as autoridades, assim como os nossos aliados, à reflexão sobre a dura e profunda realidade de vulnerabilização a que todos estamos submetidos.

É preciso, mais do que tudo, assegurar os direitos fundamentais de nossos povos, proteger a natureza e cuidar de nossa Mãe Terra, porque sem ela nada somos nessa dimensão da existência.

 

Tapé Porã (RS), 28 de fevereiro de 2025

 

 

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