ONU recomenda ao STF prioridade no julgamento da Lei do Marco Temporal e ao governo federal urgência nas demarcações
ONU trata violência contra os Guarani e Kaiowá como um caso de prevenção ao genocídio e destaca o papel do Movimento Invasão Zero em ataques violentos
A relatora da ONU sobre Defensores de Direitos Humanos, Mary Lawlor, recomenda ao Supremo Tribunal Federal (STF) prioridade ao julgamento da Lei 14.701/23, a Lei do Marco Temporal, ao se referir ao Brasil em um informe de 19 páginas publicado nesta sexta-feira (31).
Mary recomenda ainda que o governo brasileiro acelere as demarcações das terras indígenas como forma de proteger os defensores e defensoras de direitos humanos. “Priorizar com a máxima urgência, em estreita colaboração com o Ministério dos Povos Indígenas e agências relevantes, a demarcação de territórios indígenas”, diz trecho do relatório.
O documento foi produzido após uma viagem da relatora ao país, em abril de 2024, e será alvo de um debate público em fevereiro, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, conforme informou Jamil Chade.
As Relatorias Especiais são parte de um grupo de mecanismos conhecido como Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos. No caso da Relatoria da ONU sobre Defensores de Direitos Humanos, o mandato não tem como missão se debruçar sobre o tema “povos indígenas”, senão a situação de defensores e defensoras.
Ocorre que a garantia territorial, e os temas que a atravessam, é fundamental para a defesa e proteção dos defensores – sejam indígenas, quilombolas, sem-terras ou camponeses. Para Mary “grande parte da violência contra pessoas defensoras de direitos humanos no país está enraizada no conflito pela terra”. O que explica suas recomendações.
No STF, o julgamento da Lei do Marco Temporal, aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2023, está travado. O ministro Gilmar Mendes é o relator de duas ações: uma de inconstitucionalidade e outra de constitucionalidade, mas não as levou ao Plenário da Corte.
O ministro decidiu abrir uma Câmara de Conciliação para tratar da controvérsia sem suspender a lei. Por essa razão, entre outras, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se retirou da Câmara e pede ao STF que julgue a matéria.
Quanto às demarcações, uma forma de se referir ao conjunto das etapas do procedimento demarcatório, o atual governo Lula homologou 13 terras indígenas
No entanto, para o movimento indígena e organizações indigenistas, o governo federal está devendo: os anúncios dos últimos dois anos eram esperados para acontecer ainda nos primeiros dias da gestão. Por outro lado, o governo tem deixado de fazer encaminhamentos administrativos por pressão política.
Prevenção ao genocídio Guarani e Kaiowá
Para a relatora da ONU, os Guarani e Kaiowá estão “entre os povos indígenas do Brasil mais afetados pela tese do Marco Temporal, tendo em vista que a maior parte de suas terras foram tomadas antes de 1988. Ataques a defensores e defensoras dos direitos humanos, que lideram a sua luta para ver os seus direitos respeitados, são generalizados”.
Mary afirma que são ataques persistentes. Lembra que a situação dos Guarani e Kaiowá já havia sido relatada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e pelo conselheiro Especial do Secretário-Geral da ONU para a Prevenção do Genocídio.
“Remediar a injustiça e a desigualdade em relação à terra é fundamental para a proteção daqueles defensores dos direitos humanos. Para acabar com as matanças, deve haver demarcação, titulação e reforma agrária. Os invasores devem ser removidos e os crimes que foram perpetrados devem ser levados à Justiça”, recomenda o relatório.
Em reuniões com o governo federal e a Secretaria de Estado da República, Mary afirma que os representantes do Estado brasileiro concordaram com suas conclusões e estão tomando providências a respeito
O relatório cita o ataque ocorrido em 24 de junho de 2022 contra o Guarani e Kaiowá do tekoha Guapoy. “Em um evento conhecido como Massacre de Guapoy, a Polícia Militar estadual, supostamente agindo no interesse de grandes proprietários de terras, entraram nas terras tradicionais na tentativa de despejar os Guarani e Kaiowá sem ordem judicial”, destaca o relatório.
Mary relata que “as terras foram reocupadas pelos Guarani e Kaiowá em resposta ao atraso nas suas exigências de demarcação – um ato que a Relatora Especial considera como a defesa coletiva dos seus direitos humanos. Um indígena foi morto e muitos ficaram feridos durante o ataque, incluindo várias pessoas que foram hospitalizadas com ferimentos a bala”.
O trecho se completa com outro, onde a relatora legitima as retomadas: “pessoas defensoras de direitos humanos no Brasil vêm pedindo ao Estado que atenda a essas demandas há gerações. Por meio de retomadas, autodemarcação e autotitulação, bem como ações legais”.
Enquanto a Polícia Militar, segue o relatório, disparava munição real contra a comunidade desarmada, inclusive de um helicóptero estadual. Mary lembra que medidas de precaução para a proteção dos indígenas foram ordenadas pela CIDH. “No entanto, a comunidade continua a viver com medo, com os seus líderes em extremo risco, e tem havido total impunidade para esses ataques”, conclui.
Movimento Invasão Zero
“O Movimento Invasão Zero lançou ataques violentos, bem divulgados, em terras e contra ativistas de direitos humanos na Bahia, inclusive dos povos indígenas, e tem sido acompanhado pela Polícia Militar ao fazer esses ataques”, diz trecho do relato de Mary.
No documento, a relatora aponta que o Movimento de Invasão é “um exemplo bem organizado e bem conectado a um fenômeno presente em todo o Brasil” onde grupos contrários à reforma agrária e à demarcação de terras indígenas envolvem-se em violência coordenada para se opor a elas.
Para a relatora, trata-se de um movimento que é herdeiro e pretende levar adiante a política anti-indígena do ex-presidente Jair Bolsonaro
“O Movimento Invasão Zero é uma pessoa jurídica de registro nacional formada na Bahia, em 2023. Seu rosto público é Luiz Uaquim, agricultor de Ilhéus. Ele afirma ser um grupo pacífico criado para proteger os direitos de propriedade e recebeu o apoio de alguns políticos do país, que formaram a Frente Parlamentar Invasão Zero”, diz trecho do relatório.
A relatora explica que o braço parlamentar do Invasão Zero é liderado pelo deputado federal Luciano Zucco (PL), principal articulador de um “inquérito espúrio”, nas palavras de Mary, sobre o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST)
O bloco parlamentar liderado por Zucco, aponta o relatório, também apresentou um Projeto de Lei para negar serviços sociais a pessoas envolvidas em ocupações de terras, que já passou pela Câmara dos Deputados.
Mary lembra no relatório que na sequência do assassinato de Nega Pataxó Hã-Hã-Hãe, o Secretário de Segurança Pública da Bahia afirmou que o Movimento Invasão Zero orquestrou o ataque, destaca o relatório.
Convenção 169 da OIT
Para o Ministério dos Povos Indígenas, a relatora recomenda o pleno respeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), “tanto para projetos do setor estatal como do setor privado, respeitando aabordagem desejada e tradições das comunidades afetadas”.
Mary destaca projetos de escala industrial como particularmente sensíveis: mineração, exploração madeireira, agronegócio, créditos de carbono, infraestrutura, desenvolvimento e produção de energia
Conforme o relatório, é preciso “reconhecer e apoiar medidas proativas tomadas pelos povos indígenas pelos seus direitos, incluindo o direito à autodeterminação. Isso inclui respeitar e observar os protocolos de consulta e consentimento desenvolvidos pelos povos”.
No escopo da visita de Mary ao país, o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH), articulação composta por 48 organizações e movimentos sociais, apresentou uma carta aberta para a relatora apontando três pontos centrais sobre a política de proteção no Brasil: funcionamento do GTT Sales Pimenta; instalação do ConDel e precarização da política de proteção (citando inclusive os casos dos convênios estaduais).