Pelo terceiro dia consecutivo sob ataque, indígena Avá Guarani do tekoha Yvy Okaju é ferido na virada do ano
“Estamos cansados de pedir socorro e ninguém está nos ouvindo”, denúncia uma das lideranças; os ataques que deixaram dois feridos foram anunciados há mais de um mês
Era quase meia noite do último dia do ano, 31 de dezembro, quando os estrondos de rojões e o fogo criminoso clareou o tekoha Yvy Okaju, Terra Indígena (TI) Tekoha Guasu Guavirá, localizada entre Guaíra e Terra Roxa, no oeste do Paraná. Sob ataque pelo terceiro dia consecutivo, os Avá Guarani buscaram se proteger em meio a vegetação que foi incendiada junto com um dos barracos.
A ação criminosa foi executada com balas de efeito letal o que resultou em um Avá Guarani ferido no braço. Dada a gravidade dos ferimentos, ele foi levado ao hospital Bom Jesus de Toledo (PR), há mais de 100 km de Guaíra, onde possui mais recursos médicos para a remoção da bala.
“A ação criminosa foi executada com balas de efeito letal o que resultou em um Avá Guarani ferido no braço”
Na avaliação dos indígenas o ataque foi surpresa, mas muito bem planejado pois há vestígios e rastros dos pneus de motos em vários locais do tekoha. Ao seguir os vestígios e as pegadas deixadas pelos agressores, os Avá Guarani chegaram à conclusão de que “em pelo menos três pontos perto da casa tinham duas pessoas, em cada um dos pontos, com um campo de visão muito estratégico”.
Uma das lideranças, que devido ao clima tenso no local vamos manter em anonimato, conta que “tudo leva a crer que era uma emboscada, provavelmente usariam o clarão do fogo e dos rojões para alvejar quem chegasse no local, mas antes de eles botarem fogo o indígena chegou, aí eles dispararam vários tiros e um atingiu o braço”.
“Tudo leva a crer que era uma emboscada, usariam o clarão do fogo e dos rojões para alvejar quem chegasse no local”
Esse foi o terceiro ataque em apenas três dias. O primeiro ocorreu na noite do domingo (29), quando os Avá Guarani foram surpreendidos por pessoas que atearam fogo na vegetação e plantações. Incendiaram um dos barracos, realizaram disparos de arma de fogo e lançaram bombas contra a comunidade.
Os ataques, anunciados há mais de um mês, deixaram pelo menos dois feridos: um indígena baleado no braço, no dia 31; e, uma indígena teve queimaduras no pescoço, no ataque do dia 30 à noite. Dois barracos e plantações foram incendiados, além de famílias desabrigadas sem alimentos e água potável para beber.
“Esse foi o terceiro ataque em apenas três dias”
Uma indígena, que viu o fogo chegar perto de seu barraco onde estavam seus filhos, conta que a “Força Nacional não tem nenhuma viatura na aldeia, e os brancos estão atirando”. Ela também descreve o estado constante de alerta da comunidade e a sensação de inoperância dos órgãos de Estado a quem os Avá têm denunciado os ataques desde o primeiro dia.
“Estamos cansados de pedir socorro e ninguém está nos ouvindo. Estamos cansados de levar chumbo”, seu desabafo é seguido de questionamentos extenuados. “Mais uma vez eu repasso o meu pedido de socorro e principalmente a minha indignação diante desse absurdo, diante dessa violência. Quanto mais gente precisa levar chumbo?”, reforma a indígena Guarani.
“A Força Nacional não tem nenhuma viatura na aldeia, e os brancos estão atirando”
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Os indígenas registram em vídeo as cápsulas de munição letal que ficaram para trás após os três dias de ataques. “Aqui temos cápsulas de bala do ataque que aconteceu alguns minutos atrás. A gente veio ver a casa que foi incendiada, agora já não tem mais nada, a casa já queimou tudo e a gente tá no local”, registra outro indígena que também não iremos identificá-lo por segurança.
Ainda no primeiro ataque a Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) foi acionada pelos Guarani. Segundo eles, “passou pelo local, tirou umas fotos e foi embora e a gente continua aqui, tem movimentos suspeitos ainda na plantação de eucalipto que fica a mais ou menos uns 50 metros, fica muito próximo”, segue narrando o indígena enquanto faz a ronda na área destruída.
“Aqui temos cápsulas de bala do ataque que aconteceu alguns minutos atrás”
Outra reclamação direcionada a FNSP é de que “apesar de eles afirmarem que foram apenas tiros de rojões, que é apenas foguete”, os indígenas comprovaram por meio de vídeos que houveram disparos de arma de fogo letal. “Estamos cansados de tudo isso, eles precisam fazer realmente o trabalho deles, que é proteger a vida dos Guarani aqui”, desabafa a liderança que teve sua casa destruída pelo fogo.
“Ninguém acredita quando a gente fala que nosso povo, principalmente a aldeia Yvy Okaju, está correndo o risco de extermínio”, torna a denunciar diante das cinzas.
“Ninguém acredita quando a gente fala que nosso povo está correndo o risco de extermínio”
Na segunda-feira (30), peritos da Polícia Federal estiveram no tekoha Yvy Okaju e coletaram pelo menos 13 cápsulas e uma munição letal não detonada, todas de calibre 38. Após a perícia os policiais deixaram o local e os ataques recomeçaram, “as bombas que eles [os agressores] soltaram passou por cima dos Guarani e as fagulhas caíram atingindo os indígenas, os estilhaços me acertaram no pescoço”, relata outra indígena que não será identificada por segurança.
Ao longo dos três dias os Avá Guarani acionaram a Fundação Nacional do Povos Indígenas (Funai), o Ministério do Povos Indígenas (MPI) e o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) do Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), pois temem novos conflitos ao longo do recesso de fim de ano. “Os indígenas e instâncias de governo têm acionado a Força Nacional a cada novo ataque, mas até agora não se tem o retorno esperado. Os ataques continuam, a vida dos indígenas está sem proteção nenhuma”, explica o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Luis Ventura.
“Os ataques continuam, a vida dos indígenas está sem proteção nenhuma”
A inoperância do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e da Força Nacional têm causado indignação aos indígenas, “que mais a gente precisa fazer? Quanto mais vidas precisam para realmente vocês acreditarem em nós, enquanto o nosso parente mais uma vez está sendo baleado, mais uma vez está levando chumbo no corpo?”, questiona outra liderança.
A escalada de violência contra os Avá Guarani, em retaliação a retomada dos territórios tradicionais e movidas pela criminalização, com ataques a tiros, fogos de artifício, incêndios e dezenas de feridos, motivou o governo federal autorizar o uso da Força Nacional de Segurança Pública, de forma permanente na região, por meio da Portaria Nº 812.
“A aldeia corre o risco de extermínio porque o município é totalmente anti-indígena, não gosta de indígena”
O objetivo era cessar a violência, mas pelo relato das lideranças isso não tem ocorrido. “Quando a gente fala que a aldeia corre o risco de extermínio é porque o município é totalmente anti-indígena, não gosta de indígena. Estamos cansados de tudo isso, alguém precisa fazer alguma coisa”, apela a indígena que agora depende de doações para alimentar e abrigar seus filhos.
Com o processo de demarcação paralisado por determinação judicial, com base no marco temporal, as comunidades da TI Tekoha Guasu Guavirá enfrentam desde julho de 2023 uma série de ataques armados, que deixaram barracos destruídos, indígenas feridos por atropelamentos propositais e por disparos de arma de fogo, além e vários feridos com gravidade.
“Estamos cansados de tudo isso, alguém precisa fazer alguma coisa”
A morosidade jurídica em demarcar e proteger a terra indígena tem gerado consequências irreversíveis à comunidade. Além do cansaço, impera a negação dos direitos originários assegurados pela Constituição de 1988.
Temerosos, depois desses ataques os Avá Guarani estão sob vigília pois receiam a volta dos criminosos. Segundo os indígenas os barracos incendiados são de lideranças da comunidade. Uma equipe do Cimi Regional Sul segue acompanhando o caso.
“Temerosos, os Avá Guarani estão sob vigília pois receiam a volta dos criminosos”
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Certos da impunidade, agressores cumprem aviso de ataques
Há mais de um mês, durante a II Assembleia Ava Guarani Ñomongeta, realizada entre os dias 23 e 24 de novembro deste 2024, os Avá Guarani denunciaram ter recebido ameaças de novos ataques programados para o Natal. “Recebemos um recado de que no dia 25 de dezembro de 2024 os brancos estão se organizando para fazerem um novo ataque contra a nossa comunidade”, a denúncia foi registrada na ata da assembleia.
Em outro trecho do documento os Avá Guarani listam que ao iniciarem “a autodemarcação os brancos, em forma de crime organizado começaram a invadir a nossa área de ocupação, e continuam até hoje aumentando cada vez mais”.
“Os barracos incendiados são de lideranças da comunidade”
Na ocasião, o documento foi enviado às autoridades competentes. Entre as listadas estão a Funai, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), o Ministério Público Federal (MPF), a Coordenação Técnico Local (CTL) de Guaíra (PR), Prefeitura Municipal de Guaíra, Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), bem como organizações indígenas e indigenistas parceiras.
Em 2023, às vésperas do Natal, nos dias 23 e 24 de dezembro, os Avá Guarani sofreram ataques com armas de fogo letal, animais de estimação “torturados” e suspeita de atuação de milícias armadas. Um ano depois, o ataque não ocorreu no dia de Natal como indicado no aviso prévio, mas quatro dias depois, confirmando a ameaça recebida pelos indígenas e denunciada ainda em novembro de 2024.
“Com a autodemarcação os não indígenas passam a invadir as aldeias de forma criminosa”
A violência incessante motivou o lançamento do “S.O.S ALDEIA YVY OKAJU CORRE RISCO DE EXTERMÍNIO”, durante a assembleia. Na ocasião também fizeram um alerta às autoridades: “se mais vez houver derramamento de sangue Avá Guarani, todas as autoridades competentes carregarão culpa por não terem feito nada”.
A região tem um histórico de violência e conflitos com invasores, também a busca por reparação pela construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. O que levou os Avá Guarani a rebatizam o nome da aldeia Y’Hovy para Yvy Okaju. O rito tornou-se público durante a II Assembleia Ava Guarani Ñomongeta e registrado no documento final.