16/12/2024

Mesmo após devolução do Manto Tupinambá, povo indígena do sul da Bahia segue sem demarcação de seu território ancestral

Em incidência junto a órgãos públicos em Brasília, lideranças Tupinambá cobram, mais uma vez, a emissão da portaria declaratória, etapa na qual a demarcação encontra-se emperrada desde 2009

Em Brasília, lideranças Tupinambá se reúnem com representantes de ministérios para reivindicar a demarcação de seu território. Foto: Maiara Dourado/Cimi

cartaPor Maiara Dourado, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Dez lideranças do povo Tupinambá de Olivença desembarcaram na última semana, entre os dias 9 e 13 de dezembro, em Brasília para cobrar, mais uma vez, o andamento do processo de demarcação de seu território. A Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, localizada na região sul da Bahia, aguarda há mais de 15 anos a portaria declaratória, cuja assinatura e publicação depende apenas de decisão do governo federal, que atribui ao Ministério da Justiça (MJ) a competência de declarar as terras indígenas no Brasil.

Só este ano, essa é a segunda vez que lideranças Tupinambá vem à capital federal para reivindicar a efetivação de seus direitos territoriais. Em junho de 2024, um grupo de 40 lideranças esteve em Brasília com a mesma demanda. Nas duas incursões por órgãos e instituições da esfera federal, a emissão da portaria declaratória e a conclusão do processo de demarcação da TI Tupinambá de Olivença estiveram dentre as principais pautas do povo indígena.

“A morosidade na assinatura da portaria declaratória é o que tem gerado os conflitos, que tem levado os grandes empreendimentos, a mineração e o narcotráfico a entrar em nosso território”

Em Brasília, lideranças Tupinambá se reúnem com representantes de ministérios para reivindicar a demarcação de seu território. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Durante a semana, as lideranças realizaram reuniões com representantes da Secretaria da Presidência da República, com membros da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), parlamentares da Câmara Federal e da Frente Parlamentar Indígena do Congresso Nacional. Os indígenas também participaram de uma reunião interministerial composta por representantes do Ministério da Justiça, Casa Civil, Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e Secretaria Geral da Presidência.

“A gente espera que vocês tenham alguma resposta boa para nós porque estamos cansados de ouvir que o nosso território não é demarcado porque existe conflito. A morosidade na assinatura da portaria declaratória é o que tem gerado os conflitos, que tem levado os grandes empreendimentos, a mineração e o narcotráfico a entrar em nosso território”, considerou o cacique Sussuarana Tupinambá em reunião com os ministérios.

Manto Tupinambá

Quando realizada a cerimônia oficial da  devolução do Manto Tupinambá em setembro deste ano, havia a expectativa de que o governo federal demarcasse a TI Tupinambá de Olivença. “O nosso Manto trouxe o presidente Lula para perto e ele fez o compromisso com o povo Tupinambá de que veria essa questão da portaria declaratória”, lembrou Valdelice Tupinambá, cacica da TI Tupinambá de Olivença em seu último encontro com o presidente na ocasião da cerimônia de retorno do Manto. 

O Manto Tupinambá estava sob a guarda do Museu da Dinamarca há mais de 300 anos, quando retornou, em julho deste ano, a terras brasileiras. “Mas como o Manto retorna a sua casa e o território não está regularizado?”, questionou Rodrigo Silva do Nascimento, liderança do povo Tupinambá, em reunião junto aos representantes dos vários ministérios. 

“O manto é a reafirmação de que nós, Tupinambá, sempre existimos”

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante visita ao Manto Tupinambá na Biblioteca do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista. Rio de Janeiro – RJ.

Foto: Ricardo Stuckert / PR

A falta de providências do governo federal quanto ao andamento do processo de demarcação da TI Tupinambá de Olivença tem incomodado as lideranças. Para elas, não cabe mais pretextos para o adiamento da assinatura da portaria que declara a área terra indígena. 

“O manto é a reafirmação do povo da gente, de que nós,Tupinambá,sempre existimos. Ele veio com uma força de demarcação de território. É uma força espiritual que move o nosso povo, que é um povo de crença”, explicou Valdelice sobre a importância de garantir uma “casa” para este que mais do que um artefato ancestral, é um ancião para o povo Tupinambá.

“O nosso território não se adequa a Lei do Marco Temporal. O problema é político”

Em Brasília, lideranças Tupinambá se reúnem com representantes de ministérios para reivindicar a demarcação de seu território. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Com a repatriação do Manto, o reconhecimento da existência do povo Tupinambá há pelo menos mais de 500 anos torna a tese do marco temporal nula. Para as lideranças, “o nosso território não se adequa a Lei do Marco Temporal. O problema é político”, protestou cacique Sussuarana. 

Uma nota técnica da Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) aponta que a vigência da Lei 14.701, a “Lei do Marco Temporal”, não impede que o governo publique a portaria, no caso desta TI. Clique aqui para acessar a nota na íntegra.

Pinduca Tupinambá

Desde a publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da TI Tupinambá de Olivença, uma área de 47.376 hectares, em 2009, os ataques contra o povo Tupinambá se intensificaram drasticamente. Em 2008, um ano antes da publicação do RCID, os indígenas iniciaram o processo de autodemarcação de seu território, hoje retomado pelos Tupinambá em quase 80% de sua totalidade.

Com o início do processo de autodemarcação e a regularização do território, a represália dos fazendeiros da região se tornou brutal. “Já estávamos ficando encurralados pelos fazendeiros que nos atacavam constantemente, aumentando o número de assassinatos contra nosso povo”, afirmaram as lideranças em carta entregue aos representantes do governo federal. 

De 2008 para cá, foram 38 homicídios, dos quais apenas um, ocorrido em 2015, foi julgado

Em Brasília, lideranças Tupinambá se reúnem com representantes de ministérios para reivindicar a demarcação de seu território. Foto: Maiara Dourado/Cimi

De 2008 para cá, foram 38 homicídios, dos quais apenas um, ocorrido em 2015, foi julgado. Em dezembro deste ano, quase dez anos depois do atentado, Edivan Moreira da Silva foi condenado pelo assassinato da liderança Tupinambá, Adenilson da Silva Nascimento, o “Pinduca”, de 54 anos. Ele foi morto a tiros, no dia 4 de maio de 2015, em uma emboscada que também alvejou sua esposa, Zenaildes Menezes Ferreira.

A investida se deu em uma estrada que liga a cidade de Ilhéus (BA) ao município de Una (BA),  nas proximidades da aldeia Serra das Trempes, da TI Tupinambá de Olivença. Adenilson voltava de uma pescaria com a esposa, o filho de um ano e outra filha de 15, quando foram surpreendidos por três pistoleiros armados, que estavam encapuzados. Ele morreu na hora e sua esposa, Zenaildes, foi gravemente ferida, baleada na perna e nas costas. A filha adolescente conseguiu fugir entrando na mata e manteve contato por celular com caciques e lideranças indígenas, que avisaram as autoridades competentes.

“O assassino de Pinduca foi julgado e condenado. Isso é uma vitória para nós”

“O assassino de Pinduca foi julgado e condenado. Isso é uma vitória para nós”, considerou Rodrigo, liderança Tupinambá, que apesar do sentimento de justiça após a condenação de um dos algozes de seu povo, segue convivendo com violência que perdura em seu território.

“Hoje lá tem o Invasão Zero e a gente fica preocupado. O nosso território tá aberto e a gente precisa dar um passo [na demarcação]. O que está impedindo a demarcação do nosso território? Estamos vivendo encurralados em um território que é nosso”, enfatizou Valdelice.

Invasão Zero

Na época em que ocorreu o assassinato de Pinduca, Edivan Moreira da Silva integrava a associação dos fazendeiros da região de Ilhéus e Borarema, a qual viria anos depois dar origem ao movimento agromiliciano, hoje, autointitulado Invasão Zero. 

“Pelos relatos que, na época, Pinduca trazia para gente, o senhor Edivan Moreira estava se reunindo com os fazendeiros de Borarema, que antigamente era a Associação dos Pequenos Produtores e Fazendeiros da região de Ilhéus e Borarema. Hoje eles mudaram o nome para o grupo Invasão Zero”, relatou uma das lideranças que não será identificada nesta matéria dadas as constantes ameaças que vem sofrendo. 

“Ele já derrubou casas e veio com um grupo de policiais, sem documento nenhum, fazer reintegração de posse”

Placa fincada por integrantes do movimento Invasão Zero dentro do território Tupinambá, na aldeia Mangaba, localizada no município de Una, na Bahia. Foto: Comunidade da aldeia Mangaba

As lideranças informaram ainda que integrantes do movimento Invasão Zero fincaram uma placa na aldeia Mangaba, dentro do território Tupinambá com os dizeres: “Invasão Zero, um movimento contra a invasão de propriedades rurais e outro. Área Protegida. Hoje eles estão invadindo sua propriedade rural, depois invadiram sua residência na cidade”. 

A instalação da placa foi uma das formas utilizadas pelos fazendeiros da região para intimidar a comunidade que luta há anos pela demarcação de seu território. Nela, consta ainda o nome e o contato de Valdir Assis, um policial aposentado que vem, segundo relatos, ameaçando e perseguindo a comunidade. “Ele já derrubou casas e veio com um grupo de policiais, sem documento nenhum, fazer reintegração de posse. As pessoas que lá moram, vão construir suas casas e ele derruba ou ameaça”, informou a liderança não identificada. 

“A Polícia Militar é inimiga do povo Tupinambá. Ela criminaliza nossas lideranças”

A violência incitada pelo movimento Invasão Zero preocupa as lideranças, uma vez que não se sentem protegidos pela Polícia Militar da Bahia, também envolvida, segundo relatos, ao grupo de fazendeiros. “A Polícia Militar é inimiga do povo Tupinambá. Ela criminaliza nossas lideranças”, considerou.

O território Tupinambá faz limite com três parques de preservação do bioma da Mata Atlântica na região sul da Bahia: a Reserva Biológica de Una, a Reserva Extrativista de Canavieiras e o Parque Nacional das Lontras. A luta pela regularização do território Tupinambá envolve a preservação desses parques e do bioma da Mata Atlântica. 

 

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