A armadilha do mercado: falsas soluções, reais destruições
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O capitalismo contemporâneo, herdeiro direto do processo de colonização, não apenas se estabelece como uma continuidade histórica da invasão territorial, mas também como a principal engrenagem de problemas sistêmicos. Esse modelo econômico subsiste gerando e reproduzindo crises — sociais, políticas, econômicas e ambientais — que, em vez de solucionados, são intensificados por ‘soluções’ que aprofundam as desigualdades e reafirmam a lógica exploratória sobre povos e territórios.
Essa dinâmica coloca os povos indígenas no cerne de uma luta que transcende a posse da terra, configurando-se como um embate pela preservação de sentidos, saberes e formas de existir que desconstroem as bases desse sistema. A luta indígena pela terra, mais do que um enfrentamento territorial, é a resistência contra a estrutura que reduz a natureza e os povos a mercadorias, contra a mercantilização do sagrado e a coisificação das relações humanas em interface com o meio ambiente.
O mercado apresenta falsas soluções travestidas de progresso, sob o pretexto de resolver as crises que ele próprio engendra. Projetos de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD), que buscam compensações financeiras por meio de créditos de carbono, exemplificam essa lógica. Tratam-se de iniciativas que, ao se apropriarem de territórios indígenas sob o discurso de sustentabilidade, neutralizam as lutas por direitos e autonomia, perpetuando a exploração e a predação de culturas de povos indígenas. É a comercialização da natureza financiada por empresas e governos que continuam a poluir e explorar, lucrando sob o disfarce de uma responsabilidade socioambiental.
Enquanto o capitalismo reivindica para si a condição de solução, ele agrava a crise ambiental
A transição energética, frequentemente apresentada como alternativa à crise climática, por exemplo, ilustra bem esse mecanismo. Longe de repensar as bases do consumo desenfreado, aposta na ampliação da exploração de recursos naturais, devastando territórios e aniquilando modos de vida. A contradição segue evidente: enquanto o capitalismo reivindica para si a condição de solução, ele agrava a crise ambiental que coloca em risco a existência da humanidade e do planeta.
No Brasil, essa lógica se materializa em medidas políticas, como a Lei 14.701, que impõe o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Trata-se de um ataque direto aos direitos originários, garantidos pela Constituição de 1988 como cláusulas pétreas. A criação da Câmara de Conciliação sobre o tema ilustra um pacto tácito entre elites econômicas, políticas e jurídicas para modular decisões em favor de interesses privados e econômicos, sobretudo do agronegócio e da mineração. Essa tentativa de conciliar o inconciliável — direitos humanos fundamentais — revela a fragilidade das instituições no enfrentamento às forças que historicamente promovem a espoliação dos territórios indígenas. Para o mercado, é imprescindível o acesso ao território, e esse processo sempre se traduz em tentativas de deslegitimar os povos indígenas, buscando garantir que sua luta não interfira nas dinâmicas de exploração e controle.
No cenário internacional, por sua vez, a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2024 (COP29), realizada no Azerbaijão, trouxe à tona mais uma vez as falácias que sustentam o discurso da “sustentabilidade” global. Alessandra Korap Munduruku, liderança indígena, é enfática ao criticar a ausência de ação efetiva nos debates, destacando que as políticas climáticas falham em ouvir as populações expostas aos impactos do aquecimento global.
É uma luta pelo sentido de território, pelo vínculo com ele
As palavras de Alessandra, ao descrever a postura negacionista e descomprometida das lideranças globais, ecoam uma verdade desconfortável para as políticas ambientais dominantes. Os encontros mundiais historicamente têm falhado em apresentar soluções concretas e, infelizmente, a COP29 não poderá, por si só, trazer verdadeiras soluções e justiça climática para os povos. A expectativa para a COP30, que ocorrerá em Belém, é igualmente alarmante, com o receio de que o governo brasileiro negocie, mais uma vez, as terras indígenas em detrimento dos direitos desses povos, alerta a liderança indígena.
A luta de Alessandra em defesa dos territórios indígenas, se contrapõem às falsas soluções do mercado e revela outras possibilidades de estar no mundo, baseadas em saberes múltiplos e práticas que em sua natureza escapam à lógica predatória do capitalismo. É uma luta pelo sentido de território, pelo vínculo com ele.
O verdadeiro enfrentamento às crises climáticas e sociais exige o reconhecimento de que os modos de vida indígenas são, em si mesmos, respostas potentes às contradições de um sistema em colapso. Nesse contexto, é imperativo que a sociedade brasileira e as instituições democráticas abandonem as armadilhas do capital. Os territórios indígenas devem ser preservados como espaços de autonomia e resistência. A luta dos povos indígenas é, acima de tudo, uma luta pela vida — uma vida que desafia o mercado e suas soluções ilusórias, propondo caminhos que apontam para um futuro possível e plural.