10/10/2024

Na Europa, Caravana pela Ecologia Integral denuncia bancos que financiam transição energética nociva aos povos indígenas

A III Caravana Por La Ecologia Integral se reuniu com o banco Crédit Agricole Group, em Paris, que possui 13 financiamentos junto à mineradora Vale

Ytaxaha Pankararu vive com sua comunidade no Vale do Jequitinhonha, local da maior mina de lítio do Brasil. Foto: Guilherme Cavalli/Iglesias y Minería

Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Projetos de mineração custam caro e demandam financiamento. Conforme o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), empresas de mineração devem investir US$ 64,5 bilhões (ou R$ 319 bilhões) no país até 2028. Grande parte do montante é reunido com a ajuda de bancos espalhados pelo mundo, sobretudo na Europa, Estados Unidos e Canadá. As cifras vultosas se convertem em lucros simétricos: apenas em 2023, no Brasil, o setor faturou R$ 248, 2 bilhões. 

O alto investimento, a alta lucratividade e a mineração alçada a setor estratégico para a transição energética, seja aqui ou na Europa, tornam o negócio, literalmente, uma mina de ouro – ou melhor, de lítio. Alguns bancos chegam a deter a propriedade das minas, caso do banco canadense Forbes & Manhattan. Conhecido por investidores pela sigla F&M, o banco é operador das mineradoras Belo Sun e Potássio do Brasil. 

Ocorre que as regiões da América Latina ricas em minérios, sobretudo os críticos, caso do próprio lítio, um dos principais alvos da transição energética, estão em terras indígenas. Enquanto o europeu esclarecido acredita salvar o mundo com carros elétricos, povos indígenas perdem suas terras, lideranças são assassinadas e a depredação ambiental não cessa, revelando quem é o principal vilão: o modo de produção capitalista para atender ao modelo de consumo planetário.  

A III Caravana Por La Ecologia Integral, que percorre a Europa entre os dias 16 de setembro e 12 de outubro, busca alertar a sociedade civil, governos e bancos da Espanha, Bélgica, França, Itália, Áustria e Alemanha que os bilhões despejados em projetos de mineração na América Latina sacrificam os mais pobres, os povos tradicionais e, mostrando como este modelo de transição energética não é sustentável, o meio ambiente. 

Entre participações (shareholding) e compra de títulos de dívidas (bondholding), apenas cinco instituições financeiras mantêm investimentos na ordem de US$ 192 bilhões nos negócios da mineradora Vale S/A espalhados na América Latina, África e Ásia. Em Paris, integrantes da Caravana se reuniram com o setor de sustentabilidade de uma destas instituições financeiras, o banco Crédit Agricole Group. 

Investimento nas violações

O banco possui 13 participações junto à Vale, sendo duas em projetos da mineradora na Indonésia e 11 no Brasil, com ações ordinárias e Recibo Depositário Americano (ADR, na sigla em inglês),  além de 11 títulos de dívidas da empresa, todos envolvendo negócios no Brasil. O dinheiro investido pelo banco está associado de forma direta a impactos socioambientais gerados pela mineradora no Pará, Maranhão e Minas Gerais. 

“São muitas as violências e violações que a Vale comete em nossos territórios. Em Minas Gerais, temos a situação do povo Krenak, que vive no rio Doce, totalmente impactado (pela lama liberada pelo rompimento da barragem de rejeitos do Fundão, em Mariana (MG), em 2015). O rio Doce não é só um rio para os indígenas, mas também um ente espiritual. Hoje as crianças não tomam mais banho no rio”, disse Ytaxaha Braz Pankararu aos representantes do banco. 

A indígena do território Cinta Vermelha – Jundiba, localizado no Vale do Jequitinhonha, norted e Minas Gerais, lembrou do pajé Euclides Krenak, que se negou a deixar de tomar banho no rio após o rompimento da barragem, justamente pelo papel espiritual que o rio exerce na vida do povo, e acabou morrendo. “Pedi ao banco que faça uma caravana como a nossa nas áreas afetadas pela Vale para que vejam as consequências dos investimentos que fazem a partir da França”, ressaltou Ytaxaha. 

Existem no território brasileiro duas grandes províncias de extração de lítio: a maior delas está no Vale do Jequitinhonha, onde já existem minas em operação, da Vale, e a outra é na Província de Borborema, na Paraíba.

Mesmo após o rompimento da barragem do Fundão, nada mudou para a Vale, apontou Ytaxaha aos representantes do Crédit Agricole Group. Em 2019, houve um novo rompimento de uma barragem de rejeitos da Vale, desta vez em Brumadinho (MG). “São ferrovias, pressões fundiárias, especulações imobiliárias, fuligem, barulho, poeira. A vida nestes territórios afetados se torna inviável. Não se trata de uma transição energética justa, uma solução”, frisou. 

“O (cacique) Merong Kamakã morreu no território sem ter a terra demarcada. Muitos povos estão retomando e são esses territórios perseguidos pela Vale e seus apoiadores, investidores. Lembrei ao banco que perdemos Merong por conta dessa luta, dessa pressão. A Vale expulsa os povos de seus territórios e leva violência com reintegrações de posse. A pressão é enorme. As cidades próximas acham que a Vale leva desenvolvimento e a gente, atraso”, destacou Ytaxaha. 

Railson Guajajara vive em uma região no Maranhão que poderá ser rasgada ao meio por uma ferrovia para deslocar minérios e grãos para novos portos a serem construídos no litoral maranhense. Foto: Guilherme Cavalli/Iglesias y Mineria

Investimento na morte 

Para o cacique Railson Guajajara, da aldeia Maçaranduba, Terra Indígena Caru, no Maranhão, “o banco investe milhões de dólares, tem lucros imensos e é ciente do que a Vale faz. Eles disseram que a Vale, aqui no exterior, sofre vários processos e se mostra sensível. Então eles estão bem cientes do que a Vale faz, mas fecham os olhos”. Conforme o cacique, o banco se nega a encarar a realidade: eles investem na destruição ambiental e na morte de comunidades.    

O indígena entende que o dinheiro dos bancos, por exemplo, financia grandes empreendimentos caso do Projeto Grão Pará-Maranhão, que envolve a construção do Terminal Portuário de Alcântara, cujas medidas tomarão 87% de território quilombola, e a Ferrovia EF-137, que cortará 22 municípios do Maranhão, passará por territórios indígenas, quilombolas e assentamentos da reforma agrária. Todo este aparato logístico atende aos interesses da mineração e do agronegócio em detrimento das comunidades e do meio ambiente, aponta Railson.   

A opinião de Guilherme Cavalli, integrante da Iglesias Y Minería, organizadora da Caravana, vai ao encontro da observação do cacique Guajajara. “As representantes do banco nos disseram que a Vale está em um ‘relatório sensível’ da instituição, mas ao mesmo tempo eles seguem investindo mesmo sabendo de todas as tragédias e da reputação da Vale. Isso demonstra uma grave contradição do sistema financeiro mundial”, apontou. 

Cavalli entende que os bancos lucram com as violações aos direitos humanos, não só no Brasil. “Questionamos como é o procedimento de revisão do banco das empresas que ele investe. As representantes nos disseram que o banco se baseia a partir das agências de sustentabilidade, que geram relatórios, mas sabemos que esses relatórios de ESG (Environmental, Social and Governance) são feitos com dados da própria empresa, são relatórios fraudulentos”, disse. 

O cacique Railson salientou que são relatórios onde as comunidades não são ouvidas e os impactos da operação da mineradora são reduzidos ao máximo

“Nunca vi ninguém nas aldeias fazendo pesquisa, produzindo relatório, nos perguntando a opinião. Nos disseram que enviarão documentos com nossas denúncias à direção do banco, do grupo que representa o banco no Brasil, mas espero que eles ouçam os atingidos pela Vale”, relatou o Guajajara. 

Para Cavalli se trata de um dinheiro sujo, que segue alimentando violações de direitos humanos. “Um dinheiro marcado com sangue, um dinheiro que custa vidas, um dinheiro que lucra de uma forma neocolonial a partir dessas retiradas de minérios sem quaisquer cuidados com o meio ambiente, com as comunidades afetadas”. Os integrantes da Caravana solicitaram a presença dos povos e comunidades afetados pela Vale na reunião anual do banco que ocorre no Brasil. 

Vito Aimara enfatizou o fato de que mais uma vez a Europa busca devastar a América Latina para resolver problemas que criou. Foto: Guilherme Cavalli/Iglesias y Minería

Puno: a nova Potosí      

Potosí, na Bolívia, foi o epicentro, há 500 anos, de uma transformação radical no capitalismo de então com a mineração da prata em montanhas nos Andes que receberam os nomes Sumaq Urqu – “morro bonito” – e Urqu P’utuqsi ou Qullqi Urqu – “morro de onde brota a prata”, em idioma quéchua. O colonizador espanhol deu ao local os nomes de Cerro Rico e morro de Potosí. Até o século XIX, a prata minerada na região alimentou o sistema financeiro mundial. 

Com as milhares de toneladas de prata retiradas de Potosí, o Império Colonial Espanhol cunhava o “real de a ocho“. Seu uso se espalhou pela Ásia, Europa, África e América 25 anos após ter sido cunhada pela primeira vez, na década de 1570. Conhecido como dólar espanhol, a moeda estabeleceu completo domínio global sendo a moeda de reserva monetária de muitos países por três séculos. Depois dela, só houve a libra (século XIX) e o dólar (século XX). 

Na invasão colonial ao que hoje chamamos de América Latina, o sistema financeiro europeu se globalizou

A Europa se volta mais uma vez ao continente que vem dilapidando há mais de cinco séculos para achar uma solução para entraves atuais gerados a partir da Revolução Industrial, possibilitada pela exploração colonial na América Latina, África e Ásia.  

“A Europa fala agora em transição energética. O mundo tem falado disso. Muito bem. Na região de Puno, dos 13 rios existentes, nove estão poluídos. As montanhas sagradas hoje são alvos da mineração de lítio e urânio. A transição energética é para o benefício da humanidade ou apenas para o benefício de poucos aqui no Norte global?”, questionou o indígena Vito Yuganson Calderón Villanueva. 

Vito é do povo Aimara e coordena a comunicação do grupo Derechos Humanos e Medio Ambiente (DHUMA), que acompanha comunidades campesinas quechua e aimara na região de Puno, no Peru. Ele explica que empresas de mineração, financiadas e controladas por bancos internacionais, pretendem retirar mais de 9,5 milhões de toneladas de lítio de montanhas e vales desta região de presença tradicional dos povos Quechua e Aimara. 

São dois projetos minerários envolvendo urânio e lítio: um está a 9 km e outro a 3 km da chamada Glacial, uma gigantesca massa de gelo que levou ao menos 30 mil anos para se formar. Em fase de estudos, o  início da exploração por uma empresa controlada por bancos dos Estados Unidos e da Europa está previsto para 2027. “O Lago Titicaca está totalmente poluído. Diversos estudos já confirmaram a presença de metais pesados em suas águas, tais como arsênio, cádmio, mercúrio, chumbo, entre outros”, apontou Vitor.

“As minas previstas terão primeiro o urânio sendo retirado e depois o lítio. Podem destruir 545 sítios arqueológicos com artes rupestres. Um Patrimônio Cultural do Peru  que pode desaparecer. A transição energética é uma mentira, uma jogada de marketing. O conforto aqui na Europa significará o desterro de comunidades, a destruição do patrimônio cultural e do meio ambiente na América Latina”, destacou Vitor. 

O Aimara disse que os projetos não respeitaram a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Os povos afetados não foram consultados em momento algum. Há um flagrante desrespeito aos tratados internacionais. Como uma transição energética pode ser realizada nestes termos? Dizem que se trata de energia limpa, o que também é uma mentira: ela é tão suja quanto a matriz energética atual”, concluiu.

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