24/09/2024

Lideranças Mura em resistência: a batalha contra a mineração estrangeira em território originário

Durante passagem pela capital federal, as lideranças denunciaram irregularidades no licenciamento da empresa, fraudes no processo de consulta e cooptação de lideranças indígenas por parte da mineradora canadense Potássio do Brasil

A morosidade da demarcação já ultrapassa mais de duas décadas e tem impulsionado o processo de licenciamento e instalação da Potássio do Brasil sobre a terra indígena. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Maiara Dourado, da Assessoria de Comunicação do Cimi – Matéria publicada originalmente na edição 468 do Jornal Porantim

Veja aqui a edição na íntegra

Em agosto, um grupo de lideranças indígenas do povo Mura viajou do Amazonas até Brasília para desafinar a harmonia do coro formado por empresários, políticos e demais apoiadores do projeto Autazes, da mineradora canadense Potássio do Brasil.

O grupo tem contestado a insistente tentativa da empresa de negar a existência de terras indígenas no local onde será instalada a mina de silvinita, minério de potássio intensamente utilizado como fertilizante pelo agronegócio brasileiro.

Durante uma semana, as lideranças realizaram uma jornada por órgãos do Estado, embaixadas internacionais e tribunais de justiça para afirmar sua existência e a ocupação tradicional em suas terras, além de denunciar as inúmeras e sucessivas ilegalidades no processo de instalação da empresa na região de Autazes e Careiro da Várzea, no Amazonas.

Lideranças indígenas do povo Mura tem contestado a insistente tentativa de negarem a existência de terras indígenas no local onde será instalada a mina de minério de potássio. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Essas lideranças integram uma parcela importante do povo Mura que, ao contrário do que vem sendo publicizado em jornais do estado do Amazonas, não está de acordo em sua totalidade com a instalação do empreendimento minerário.

“Na TV local do estado [do Amazonas] estão dizendo que está tudo legal, que [a mineração] é uma maravilha, mas não é dessa forma que as coisas estão acontecendo. Somos a favor da nossa demarcação e não da mineração que está em cima do nosso território”, afirmou Willian Mura, conselheiro fiscal da Organização de Lideranças Indígenas Mura de Careiro da Várzea (OLIMCV).

Willian, junto com outros representantes da OLIMCV, da Organização das Mulheres Indígenas Mura (OMIM) e demais lideranças de seu povo, forma um grupo dissidente que faz frente à mineração da Potássio do Brasil em terras Mura e que vem atuando no espaço público nacional e internacional contra a invasão e exploração em suas terras.

Em passagem por Brasília, o grupo buscou dialogar com autoridades a fim de barrar o avanço da mineradora sobre seus territórios, mas também de destravar o processo de demarcação de suas terras.

Para isso, as lideranças se reuniram com representantes da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), da embaixada do Canadá e do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), que tem emitido uma série de decisões a favor da implementação da mineradora, à revelia das irregularidades denunciadas.

Nos encontros com as autoridades públicas, “deixamos nossas demandas e para aqueles que não sabiam contamos nossa realidade”, explicou Gabriel Mura, tuxaua da aldeia Soares. Sua aldeia fica localizada no interior da Terra Indígena (TI) Lago do Soares e Urucurituba, diretamente afetada pela instalação da mineradora.

Irregular desde o início

Desde a emissão das licenças prévias até as de instalação recentemente autorizadas pelo Instituto de Proteção Ambiental do Estado do Amazonas (Ipaam), “todo o processo [de licenciamento] desde o início já começou errado”, explicou Willian.

A morosidade da demarcação já ultrapassa mais de duas décadas e tem impulsionado o processo de licenciamento e instalação da Potássio do Brasil sobre a terra indígena. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Segundo a liderança, os licenciamentos não respeitaram os pressupostos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que estabelecem a consulta livre, prévia e informada às comunidades afetadas por grandes empreendimentos como o da Potássio do Brasil. “Não teve consulta livre, nem prévia, muito menos informada”, afirmou Willian.

Foram inúmeras as irregularidades no processo de licenciamento da mineradora, cuja prática resultou no ingresso, em 2016, de uma Ação Civil Pública (ACP) na tentativa de barrar a instalação da empresa em terras indígenas.

Segundo o Ministério Público Federal (MPF), autor da ação, a emissão das licenças prévias, feitas ainda no período de planejamento e pesquisa do empreendimento, se deram “sem a análise do Estudo do Componente Indígena pela Funai, o que viola o procedimento de licenciamento ambiental”.

A mineração em terras indígenas é prática vedada pela Constituição Federal

Somado a isso, “em vista do potencial poluidor e das dimensões da atividade, bem como do impacto em terras indígenas (bem da União), o licenciamento ambiental deveria ser realizado perante o Ibama”, argumentou o MPF. Isso porque as licenças, desde o início do processo de licenciamento da mineradora, vêm sendo emitidas de forma irregular pelo Ipaam, órgão ambiental do estado do Amazonas.

Mesmo com todas as ilegalidades, o processo de licenciamento, que estava suspenso desde 2017, avançou em fevereiro de 2023, após decisão do desembargador Marcos Augusto de Sousa – na época presidente em exercício do TRF-1 – que determinou o prosseguimento do processo.

Não tardou muito, as licenças de instalação começaram a ser emitidas. Em maio, o Ipaam liberou uma série de licenças autorizando a instalação e a construção de estruturas da Potássio do Brasil em território Mura. As obras se dão majoritariamente no interior da TI Lago do Soares e Urucurituba, tradicionalmente ocupada e em processo de demarcação, mas afeta também a TI Jauary, que aguarda a emissão da portaria declaratória, e a TI Paracuhuba, já demarcada.

“Depois da decisão que saiu, eles já estão fazendo suas instalações, vindo com maquinários, com mais pessoas da empresa. E, além de tudo, também estão conseguindo dividir o povo Mura de Autazes e Careiro da Várzea, o que pode piorar agora com eles entrando dentro das aldeias depois do licenciamento”, denunciou Gabriel.

Divisão

Na reunião com representantes da embaixada do Canadá, as lideranças expuseram inúmeras das irregularidades no processo de licenciamento da mineradora, bem como os impactos gerados pela empresa canadense sobre a organização social Mura.

A presença da mineradora na região tem cindido o povo. Uma parte ligada ao Conselho Indígena Mura (CIM), comprovadamente cooptada pela empresa, tem se manifestado favorável ao projeto; enquanto outra, vinculada à OLIMCV e a um grupo composto por representantes de, pelo menos, 10 aldeias de Autazes, e de 12 aldeias de Careiro da Várzea, se coloca contrária à exploração de potássio em suas terras.

Segundo Edson Mura, coordenador da OLIMCV, a divisão promovida pela empresa tem criado enormes conflitos entre as comunidades das 47 aldeias Mura de Autazes e 12 de Careira da Várzea.

A morosidade da demarcação já ultrapassa mais de duas décadas e tem impulsionado o processo de licenciamento e instalação da Potássio do Brasil sobre a terra indígena. Foto: Tiago Miotto/Cimi

“Hoje tem lideranças que não falam com a gente [da OLIMCV] por conta desse empreendimento. Então já é um impacto grande entre nós”, denunciou Edson, que acredita haver manipulação da empresa por trás do conflito instaurado entre os Mura.

Em novembro de 2023, o MPF, junto à OLIMCV e à comunidade Mura do Lago do Soares, apresentou uma denúncia listando uma série de violações no processo de consulta ao povo Mura, bem como ameaças e ações de cooptação de lideranças do CIM por parte da empresa.

Na manifestação do MPF, as lideranças denunciaram a exclusão e o silenciamento da comunidade Lago do Soares, da OLIMCV, bem como de outras comunidades de base no processo de consulta conduzido pelo CIM, por influência direta da mineradora.

“Eles [CIM] tomaram outro rumo, começaram a caminhar com a empresa, com a Potássio do Brasil. Eles nos tiraram do protocolo [de consulta] e criaram outro, no qual nós não estamos mais. A partir daí, eles começaram a dar andamento ao protocolo deles e o governo do estado começou a liberar as licenças”, explicou Edson. “Eles falam que nós quisemos sair, que houve um consenso do povo, mas isso é uma total mentira”, continuou a liderança.

Documentos comprovam a alteração do protocolo de consulta construído coletivamente pelo povo Mura

Na denúncia do MPF, foram anexados documentos que comprovam a alteração do protocolo de consulta construído coletivamente pelo povo Mura entre 2018 e 2019. O pedido de alteração foi feito pelo próprio presidente da Potássio do Brasil, Adriano Espeschit, que em outras circunstâncias também tentou subornar lideranças do povo Mura.

Em setembro do ano passado, o portal InfoAmazonia publicou o áudio de uma reunião com lideranças do CIM em que Espeschit oferece uma área de terra em troca da “não demarcação da terra indígena em cima da área do Soares”.

A demarcação da TI Lago do Soares e Urucurituba inviabilizaria a instalação da mineradora, uma vez que mineração em terras indígenas é prática vedada pela Constituição Federal, podendo só ocorrer se autorizada pelo Congresso Nacional e mediante consulta dos povos afetados pelo empreendimento.

A empresa não mediu esforços para impedir a demarcação da terra dos Mura. Em novembro de 2023, já pactuado com a mineradora, o CIM chegou a pedir a suspensão do processo de demarcação da TI Lago do Soares e Urucurituba, reivindicada pela própria organização em 2003. O Conselho alegou não ter sido consultado pelo MPF sobre a demarcação e a criação de grupo de trabalho pela Funai.

No encontro com representantes da embaixada canadense, os indígenas entregaram uma carta-manifesto expondo a atuação criminosa da empresa na região amazônica, exigindo também a intervenção do governo canadense no caso.

A morosidade da demarcação já ultrapassa mais de duas décadas e tem impulsionado o processo de licenciamento e instalação da Potássio do Brasil sobre a terra indígena. Foto: Tiago Miotto/Cimi

“Eles são uma embaixada, a gente sabe que não tem como cobrar deles quando se trata de uma empresa privada, mas a gente quer mostrar o que eles [a Potássio Brasil] estão fazendo dentro do nosso país, dentro do território indígena, o que é algo muito grave porque viola direitos humanos”, considerou Willian.

Dentre os pedidos apresentados na carta, o grupo de lideranças solicitou ao governo do Canadá a suspensão de financiamentos à Potássio do Brasil, uma vez que “todo esse recurso que eles estão investindo ali [em Autazes e Carreiro da Várzea] vem do Canadá, principalmente dos bancos canadenses, que são os principais investidores da empresa”, considerou Gabriel.

A Potássio do Brasil possui dentre seus principais acionistas a Brazil Potash, que tem como um dos seus fundadores o Forbes & Manhattan, um banco canadense que detém 12% da empresa.

Funai desobrigada

Em meio às investidas da Potássio do Brasil, os Mura contrários à mineração em suas terras lutam pela demarcação da TI Lago do Soares e Urucurituba, cujas instalações ficam a cerca de dois quilômetros de distância da aldeia de Gabriel, tuxaua da aldeia Soares.

A terra indígena encontra-se desde agosto do ano passado em processo de identificação e delimitação, com um Grupo Técnico (GT) já criado, mas parado desde a última visita do GT, realizada em maio deste ano.

O processo de demarcação chegou a ser acelerado por outra ACP, ingressada em 2022 pela comunidade junto ao Ministério Público Federal (MPF), que pedia agilidade no cumprimento do procedimento demarcatório.

A ACP, no entanto, foi suspensa em julho deste ano, após a decisão do desembargador federal do TRF-1 e também relator da ação de demarcação, Flávio Jardim, de paralisar a tramitação do processo até o julgamento final do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365.

O RE que trata das demarcações de terras indígenas foi julgado em setembro do ano passado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e estabeleceu a inconstitucionalidade da tese do marco temporal. O recurso, no entanto, segue em aberto no STF, com o desafio, inclusive, de declarar a inconstitucionalidade da Lei 14.701, conhecida como Lei do Marco Temporal.

Na reunião realizada no último mês em Brasília, membros da Funai afirmaram às lideranças Mura que a demarcação “não está paralisada, mas falaram que eles [Funai] não têm mais a obrigação [judicial] de continuar”, informou Gabriel.

Isso porque a suspensão da ACP desobriga a Funai de agilizar o processo de demarcação da terra indígena, tirando-a da lista de prioridades da Fundação, que tem – em razão das determinações judiciais – dado regime de urgência apenas aos casos de demarcação que se encontram ajuizados.

Para as lideranças, no entanto, a suspensão da ACP não impede a Funai de seguir com o rito demarcatório.

Segundo João Vitor Lisboa Batista, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) que tem atuado no caso da comunidade da TI Lago do Soares e Urucurituba, o “objeto dela [da ACP] é a aceleração, então não necessariamente é uma ação que condiciona a demarcação. Ademais, a decisão não determinou a suspensão do procedimento administrativo de demarcação, ela restringe-se à suspensão de um dos agravos de instrumento”, explicou.

Sua morosidade, por outro lado, já ultrapassa mais de duas décadas e tem impulsionado o processo de licenciamento e instalação da Potássio do Brasil sobre a terra indígena. Em agosto do ano passado, a Funai chegou a enviar um ofício à empresa mineradora e ao Ipaam informando a abertura do GT para a identificação indígena da área e recomendando “a suspensão do processo de licenciamento até que sejam concluídos os estudos que subsidiarão manifestação da Funai ao órgão licenciador competente”.

A recomendação, no entanto, seguiu sem efeito, uma vez que os estudos do GT não avançaram e as primeiras licenças de instalação da mineradora foram, em maio deste ano, liberadas.

Outro risco nesse momento em que a mineração adentra de forma autorizada em seus territórios é, segundo Milena Mura, presidenta da Organização das Mulheres Indígenas Mura (OMIM), a violência sobre as mulheres.

Milena teme a violência já conhecida em ambientes onde a mineração se faz estabelecida. “As mulheres não querem se deparar com as violências que elas veem na mídia. Elas não querem presenciar isso na própria aldeia, que podem ser mais agravadas com a entrada de outras pessoas [da mineradora]”, preocupa-se a presidenta da OMI.

A morosidade da demarcação já ultrapassa mais de duas décadas e tem impulsionado o processo de licenciamento e instalação da Potássio do Brasil sobre a terra indígena. Foto: Tiago Miotto/Cimi

“A invasão no território é uma invasão no corpo das mulheres, a gente sempre tem isso em nossa mente, porque uma invasão do nível de uma mineração como a da Potássio do Brasil vai trazer pessoas de fora, e com elas, doenças, alcoolismo, drogas e outros impactos que dificilmente poderão ser mitigados”, continua Milena.

Em reação, o MPF ingressou com outra ACP em maio deste ano contra a empresa, expondo as ilegalidades no licenciamento ambiental do empreendimento. O órgão denuncia que o processo é feito de forma fracionada e desconsiderando a totalidade dos impactos da obra sobre a população e omitindo os reais riscos ambientais.

“Não em cima da nossa lavra”

O interesse da Potássio do Brasil na não demarcação da TI Lago do Soares e Urucurituba é evidente e tem repercutido nas boas relações estabelecidas com autoridades do Estado brasileiro.

Desde 2022, ainda sob o governo de Jair Bolsonaro, a empresa vem articulando com o governo do Amazonas, parlamentares da bancada ruralista e o governo federal a exploração de potássio na região de Autazes e Careiro da Várzea, que abriga a maior reserva de silvinita no país. O interesse é recíproco.

O governador do estado do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil) não esconde sua ambição e interesse no projeto Autazes. Há um tempo, Lima aparece publicamente como participante ativo das negociações da mineradora na região, tendo entregue pessoalmente, em abril deste ano, a licença ambiental para a empresa mineradora.

O Poder Executivo, tanto na gestão anterior como na atual, também tem mantido a boa relação com executivos da Potássio do Brasil, que inclui encontros com o ex-presidente Jair Bolsonaro e com o atual vice-presidente Geraldo Alckmin.

Integrantes de peso da ala ruralista do Congresso Nacional também têm se manifestado publicamente a favor da exploração de potássio no Brasil, uma vez que a extração do minério beneficiaria diretamente o agronegócio brasileiro – um dos maiores importadores de potássio do mundo.

A guerra na Ucrânia, que gerou a suspensão temporária da produção do fertilizante na Rússia, um dos principais fornecedores de potássio para o Brasil, aguçou ainda mais a cobiça e a pressão sobre a exploração do potássio brasileiro, e foi utilizado como argumento por setores econômicos interessados em liberar a mineração em terras indígenas.

Não por acaso sua exploração passa a ser alentada por medidas legislativas como a Lei 14.701/ 2023, o Projeto de Lei 191/2020 e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48/2023. Todas possuem em seu bojo a liberação das terras indígenas para atividades econômicas predatórias, nas quais a mineração se revela como uma das bases de sua sustentação.

A Lei 14.701, já em vigência, não explicita a mineração em seu conteúdo, mas deixa claro em vários de seus artigos – 20, 26 e 27, por exemplo – a abertura para o desfrute econômico dos solos e riquezas indígenas.

Mas não é só o Congresso Nacional que tem interesse em abrir as terras originárias para mineração. Na mesa de conciliação criada pelo ministro do STF, Gilmar Mendes está a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 86 proposta pelo Partido Progressista (PP), que pede a regulamentação da mineração em terras indígenas.

A saída da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) revela o fracasso e a inviabilidade do mecanismo de negociação, mas ao mesmo tempo denota o empenho e a disposição dos Três Poderes em pôr em negociação direitos fundamentais dos povos indígenas.

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