24/09/2024

Enawenê-Nawê por Fausto Campoli: dinâmica e resistência

A entrevista com Fausto Campoli aconteceu no contexto do intercâmbio realizado entre os Tupinambá — representados pelo Cacique Babau e a jovem liderança Jéssica Tupinambá, do sul da Bahia — e os Enawenê-Nawê, no Mato Grosso, durante visita ao Território Enawenê

Fausto Campoli, integrante do Cimi que atua há décadas com os Enawenê-Nawê, com a liderança Towaliatokwe Kolaliene Enawenê. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Tiago Miotto da Assessoria de Comunicação do Cimi – Matéria publicada originalmente na edição 468 do Jornal Porantim

Veja aqui a edição na íntegra

Na aldeia Enawenê-Nawê, as informações circulam rápido, especialmente entre os mais jovens, ávidos por conhecer e experimentar novas tecnologias. Antenas de internet por satélite se fundem à paisagem composta pelo grande pátio da aldeia, pelas 52 casas coletivas e a grande casa de flautas, símbolo da espiritualidade deste povo que vive praticamente o ano inteiro em ritual. Lá vivem, segundo o Censo de 2022 do IBGE, 1023 indígenas. A população Enawenê-Nawê aumentou 65% desde o Censo anterior, realizado em 2010.

Se a intensidade das transformações no mundo contemporâneo, a pressão de um modelo econômico predatório e o fluxo de informação – e desinformação – causa preocupação para a sociedade não-indígena, os riscos oriundos destas transformações rápidas geram dilemas ainda mais profundos entre um povo que, até pouco mais de 20 anos atrás, vivia praticamente sem nenhum contato com a sociedade envolvente.

Os Enawenê-Nawê são um povo dinâmico. “A grande questão é: com que tempo, e com que qualidade de tempo, você tem chances de agir para entender e se resguardar dentro dessa dinâmica”, pondera Fausto Campoli, integrante do Cimi que atua há décadas com o povo, contatado em 1974, em entrevista exclusiva ao jornal Porantim.

“Do período de contato até 1998, os Enawenê-Nawê se mantiveram restritos à sua cultura e ao seu espaço geográfico. Em 1998 é que eles intensificam o contato com a sociedade envolvente, através de uma estrada criada no meio do território deles. A partir daí, eles passaram a intensificar o contato e o início da dependência econômica de fora”, conta Fausto.

A delimitação da Terra Indígena (TI) Enawenê-Nawê, homologada em 1996 com 742 mil hectares entre os municípios de Comodoro, Juína e Sapezal, no oeste de Mato Grosso, deixou de fora parte importante do território.

Além da pressão do agronegócio, que ameaça capturar a parte não demarcada da terra, a área demarcada é impactada pela pressão das empresas que exploram o Complexo Hidrelétrico do rio Juruena, parte fundamental do modo de vida e do território Enawenê.

As hidrelétricas em construção, planejamento e em operação na bacia do Juruena chegaram a 179 em 2023, segundo levantamento da Operação Amazônia Nativa (Opan). São 19 Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs) e 17 Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) em operação e outros 15 empreendimentos em construção, incluindo uma Usina Hidrelétrica (UHE).

Seu impacto já praticamente inviabiliza a pesca, atividade com papel central não só na alimentação, mas também na cosmologia Enawenê-Nawê, e ameaça desequilibrar a complexa harmonia com o mundo espiritual.

Este contexto, as trocas com os Tupinambá, durante o intercambio realizado, e os desafios existenciais com que se depara o povo são temas abordados na entrevista a seguir.

Porantim – Você participou da autodemarcação da Terra Indígena Enawenê-Nawê, certo? Como eles chegaram a essa compreensão da importância dessa ação? 

Fausto Campoli – A autodemarcação foi em 1991, 1992. A homologação do território ocorreu em 1996. Eles tinham essa percepção de que precisavam, por conta própria, garantir a proteção da terra. No início, eles tinham certa noção, mas pouco saíam do território tradicional. Não conheciam as cidades, os municípios aqui perto. Eles andavam no rio, principalmente no rio Juruena, e nunca tinham visto Brasnorte, Juína, as várias fazendas que havia para dentro. A partir do momento em que eles passam a ter uma visão mais ampla, além do território tradicional deles, é que eles sentem a urgência de demarcar.

Porantim – E aí eles começam a perceber também que tem gente entrando em áreas que são parte do território deles?

Fausto Campoli – A área demarcada não faz jus ao território tradicional. Os Enawenê-Nawê conseguem demonstrar isso inclusive através de sua mitologia e de suas músicas. É um povo essencialmente musical.

A vida dos Enawenê-Nawê está interligada a quatro ciclos rituais. Tem o Yaõkwa, que dura cerca de seis meses. Na sequência vem um ritual chamado Derohe, que dura cerca de dois meses. Depois vem outro ritual que se chama Salomã, que dura cerca de dois meses. Depois desse ainda tem um outro de dois meses, que é o ritual chamado Kateoko, essencialmente feminino.

Se você somar todos os rituais, dá um ano. Então, quando o Kateoko, que é o ritual das mulheres, termina, volta de novo o Yaõkwa, e eles ficam nesses ciclos ininterruptos. Todos os dias tem, e dura cerca de seis horas por dia. O ritual Yaõkwa tem uma particularidade, que é a questão da roça. Eles fazem uma roça específica para o Yaõkwa, e além dela cada um vai ter que fazer a sua, particular.

Porantim – E essa vida ritual tem relação com o que você falava sobre os cantos?

Fausto Campoli – A vida dos Enawenê-Nawê é completamente dirigida por esses ciclos rituais, porque isso envolve relacionamento com seres superiores. Dá para arriscar dizer que os Enawenê-Nawê convivem com dois mundos. O Eno, que eles dizem que é o mundo celestial, é povoado por um povo que eles chamam de Enori-Nawê, que são espíritos essencialmente terapêuticos. E convivem com outro grupo, vou chamar de espíritos, que são essencialmente patológicos.

Com os Enori-Nawê, que são os seres celestiais, eles têm uma relação mais amistosa. É a eles que os pajés se associam para curar alguma doença que esses outros seres, que eu disse que são essencialmente patogênicos, causam nas pessoas. E esses seres são exigentes. Então, os Enori-Nawê, embora tratem os Enawenê-Nawê carinhosamente de netos, se alguma regra for descumprida, eles também podem se tornar “maléficos”.

Os outros, que eles chamam de Iakariti-Nawê, que povoam algumas lagoas, montanhas, cachoeiras e alguns locais definidos geograficamente no território Enawenê-Nawê, são essencialmente patogênicos, exigentes, oniscientes, onipresentes e muito temidos.

Então, a razão de viver do Enawenê-Nawê está completamente entrelaçada a esses seres superiores, na tentativa de, através de submissão, inclusive, manter a harmonia com esses seres. Disso depende a sobrevivência e a vida do Enawenê-Nawê.

É por isso que os rituais são tão longos, e por isso que eles têm essa vida ritual tão intensa. O repertório musical deles é absurdo.

Fausto Campoli, integrante do Cimi, na Terra Indígena Enawenê-Nawê. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Porantim – E a localização de parte desses seres, que ocupam lugares geograficamente determinados, ficou fora de delimitação do território?

Fausto Campoli – No início, quando se começou a solicitar a demarcação do território, não se conhecia tanto sobre o povo e sua cosmologia. E ainda falta conhecer muito. Mesmo assim, essa parte do território foi reivindicada nas negociações para que se chegasse a uma delimitação. A reivindicação sempre incluía o Adoiná, que é o que se chama em português de Rio Preto, uma área importantíssima cosmologicamente para os Enawenê-Nawê.

Outro aspecto relevante é que os Enawenê-Nawê se dividem em nove clãs. Cada um desses clãs está relacionado a grupos específicos de espíritos, tanto os do alto, como os donos dos recursos naturais aqui na Terra. Então, cada clã tem seu grupo específico de espíritos, e cada um desses espíritos ocupa um determinado espaço na região geográfica dos Enawenê-Nawê. E grande parte desse território sagrado ficou fora da demarcação. É por isso que há anos os Enawenê-Nawê vêm pleiteando a revisão de limites dessa área que se chama Rio Preto.

Porantim – E eles nunca deixaram de ter essa relação e de frequentar essa área?

Fausto Campoli – Eles nunca deixaram de frequentar, ainda frequentam, mas tem um aspecto que é muito relevante, que é o fato de que essa relação não depende muito da presença física dos Enawenê-Nawê lá. Porque eles têm esses espíritos que moram lá. Por exemplo: quando um determinado clã é anfitrião, ele recebe os espíritos dele. No ritual, são os espíritos dele que estão dançando, e é para esses espíritos que são servidas as comidas e bebidas do ritual. Não é para o humano Enawenê-Nawê. Então, quando você fala para os Enawenê-Nawê: “estão falando que vocês não estavam mais lá”. Os Enawenê-Nawê, com espanto, respondem: “como que a gente não está lá, se os nossos espíritos estão lá? Se eles vêm até aqui cotidianamente durante o ritual? Se a nossa cosmologia, os nossos mitos e as nossas músicas são de lá?”.

ocupação territorial delesnão se restringe a ficar anos, séculos em um lugar. Eles vão exaurindo os recursos daquela região e vão mudando o local da aldeia. Exaure, muda. Podem passar cem anos, quando eles voltarem no lugar de onde saíram primeiro, já se regenerou a mata, já se regenerou a natureza, a terra já está apta para ser plantada novamente. Então, a ocupação tradicional deles não é fixa em um local eternamente. Eles se mudam, e jamais deixam de ter essa relação sagrada com aquele espaço, porque ele passa a fazer parte do cotidiano deles através dos rituais.

Porantim – Então, a proteção dessa área do Rio Preto seria importante, também, para não perturbar essas entidades que garantem o equilíbrio espiritual do povo?

Fausto Campoli – É lógico. Eles dependem da harmonia com esses seres poderosos para continuar sobrevivendo como povo. Então, eles não conseguem conceber a ideia de “como daqui para cá é nosso e lá, onde estão nossos espíritos, não é mais? Lá, onde eu vou quando eu morrer, quando eu também vou me transformar num espírito?” Para eles a gente era muito louco de propor algo tão absurdo. Isso é um fato.

Porantim – O que você sente que mais os atraiu nessa troca com os Tupinambá?

Fausto Campoli – Eu acho que o que atraiu e aproximou são as ideias coincidentes, embora sejam povos que têm várias diferenças. Eu senti que o que mais encantou o Kolaliene com relação ao cacique Babau foi a postura de entender que o território é fundamental e a defesa do território também. Acho que desse encontro tem muita coisa legal, mas o marcante mesmo é essa coincidência, essa alma de guerreiro, de defender a qualquer custo o seu território, por entender o que ele é e o que ele representa, coisa que muitas vezes a gente não entende.

O Kolaliene fez uma leitura fantástica. Ele mal fala português. E teve essa percepção de que os Tupinambá, depois desse tempo todo de contato, ainda garantiram, com muita luta, seu território. Ele se sente privilegiado em poder fazer essa leitura e ter um entendimento do que fazer para defender seu território também, que é a urgência de ação.

Porantim – Os Enawenê-Nawê parecem um povo aberto, curioso. Tive a impressão de que é assim com os visitantes, mas com a tecnologia também.

Fausto Campoli – Eles são fantásticos, eles são muito rápidos, têm uma energia absurda. Isso se traduz também nos relacionamentos deles, com eles próprios ou com outros povos, ou com a sociedade não indígena. São muito versáteis na forma de envolver e abordar as pessoas. Têm mesmo uma curiosidade inata. É interessante porque, ao mesmo tempo que tudo mudou muito rápido, nessa interação que eles estão tendo com o cacique Babau, por exemplo, eles já estão pensando em estratégias de como se proteger também dessa coisa muito dinâmica. Se eles não cuidarem, leva eles junto.

No fundo, a grande percepção deles é de que eles têm uma chance que os Tupinambá, por exemplo, não tiveram. Porque, por mais que os Enawenê-Nawê sejam rápidos e apressem tudo que vem de fora para dentro, eles também estão entendendo que eles têm um tempo que os outros não tiveram. Entendem que esse tempo tem uma certa urgência, porque o contato vai se intensificando, assim como a dependência econômica. Eles têm uma análise bem completa sobre isso e sobre o quanto é difícil trilhar um caminho que saia fora disso.

Às vezes, eles não têm opção. Por exemplo, a principal oferenda para os espíritos que estou chamando de patogênicos são os peixes. Só que, com a construção das hidrelétricas nos rios da bacia do Juruena, eles já não têm mais possibilidade de manter os rituais da forma que eles conseguiam, que era através das barragens coletivas. Hoje, eles dependem de peixe comprado, criado em tanques. E aí, sentem-se na dependência econômica.

Porantim – Essa questão da dinâmica que se impõe, da interferência externa em práticas culturais deixou de ser possíveis, é a grande questão para os Enawenê-Nawê hoje?

Fausto Campoli – Acho que no meio disso tudo está embutida exatamente essa preocupação. Porque você tem os jovens que já nasceram dentro dessa dinâmica. E você também tem uma geração anterior que nasceu numa outra dinâmica e está vendo o que está acontecendo, e a rapidez com que tudo está acontecendo. Então, eles têm essa preocupação do que vai ser, de como agir.

Os antropólogos costumam dizer, e eles têm razão, que toda cultura é dinâmica. Toda cultura, de fato, é dinâmica, mas a grande questão é: com que tempo, e com que qualidade de tempo você tem chances de agir para entender e para se resguardar dentro dessa dinâmica. Às vezes, não tem. Por exemplo: as empresas das PCHs vêm negociar com os Enawenê-Nawê pouco antes do período dos Enawenê-Nawê precisarem de peixe, sabendo disso. E nessas circunstâncias, os Enawenê-Nawê não têm opção. Porque o que eles precisam, de fato, e não podem deixar de fazer, é ofertar os peixes.

Porantim – Talvez essas trocas também os ajudem a traçar estratégias sobre como fazer o manejo dessas relações.

Fausto Campoli – Sem dúvida. Isso faz parte da alma do Enawenê-Nawê, inclusive. O problema é que, às vezes, não existe uma compatibilidade de tempo para que essa leitura possa ser feita com calma. Tudo chega de maneira muito veloz.

Um deles me falou: “quando a gente começou a ouvir falar sobre isso, é como se a gente estivesse na praia com a aguinha batendo nos pés. Quando a gente piscou os olhos, ela estava no pescoço”. Esse que é o ponto.

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