Vozes da resistência no lançamento do Relatório de Violência contra os Povos Indígenas 2023
Falas revelam o impacto devastador do contexto de violência descrito no relatório do Cimi, revelando a urgência de mudanças estruturais e a luta pela garantia dos direitos originários e constitucionais dos povos indígenas
No dia 22 de julho, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lançou o Relatório de Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2023, documento que expõe a dura realidade enfrentada por diversos povos indígenas no primeiro ano do governo Lula.
Durante o evento de lançamento, as lideranças indígenas Nailton Pataxó Hã-Hã-Hãe, da Terra Indígena (TI) Caramuru-Catarina Paraguassu, Lucine Barbosa, do Tekoha Laranjeira Nhanderu (Brilhantepeguá), Vilma Vera Avá-Guarani, do Tekoha Y’Hovy, na TI Tekoha Guasu-Guavirá e Edna da TI Sucuri’y compartilharam vivências que ilustram os números alarmantes registrados no relatório. Suas falas ecoaram como um grito de resistência diante da contínua violência e negligência que marcam o cotidiano de suas comunidades.
Além das vozes indígenas, a cineasta e antropóloga Ana Carolina Mira Porto, vítima de um ataque durante um trabalho em terra indígena, e os coordenadores da publicação, Lucia Helena Rangel e Roberto Antonio Liebgott, também trouxeram suas perspectivas, assim como o cardeal Leonardo Steiner, presidente do Cimi, e Luis Ventura, secretário executivo do Cimi.
A seguir, apresentamos trechos dessas falas que revelam o impacto devastador do contexto descrito no relatório, revelando a urgência de mudanças estruturais e a luta pela garantia dos direitos originários e constitucionais dos povos indígenas.
O Cacique Nailton Pataxó Hã-Hã-Hãe, da Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu, no município de Pau Brasil, sul da Bahia, é sobrevivente do ataque que vitimou a liderança espiritual Maria Fátima Muniz de Andrade Pataxó Hã-Hã-Hãe, sua irmã, conhecida como Nega Pataxó. Na ocasião, pelo menos 200 fazendeiros, mobilizados pelo Movimento Invasão Zero, atacaram a comunidade com armas de fogo, sem qualquer mandado judicial. A retomada dos Pataxó Hã-Hã-Hãe é de uma área que ficou de fora da demarcação da TI Caramuru-Catarina Paraguassu, chamada de Varadouro Vasconcelos, reivindicada pelo povo desde meados do século XX. Há uma vasta documentação comprovando que a área retomada, região contígua a uma das margens da TI Caramuru-Paraguassu, é ocupada tradicionalmente pelos Pataxó Hã-Hã-Hãe.
“De 1975 para cá, eu tenho sofrido bastante violência. Eu, minha comunidade, meu povo. Mas digo para vocês que os piores momentos de violência que eu passei foi no dia 21 de janeiro de 2024 [dia do ataque à retomada].
No dia 19 de janeiro, foi feita uma ocupação em uma área de 55 alqueire. No dia 20, a Polícia Militar esteve na área, tomou o celular dos índios, espancou, cortou o pneu de moto, deu tiro para cima e expulsou parte do nosso povo. No dia 21, quando eu estava reunido com a nossa comunidade, chegou nove viaturas da Polícia Militar, me chamou para conversar e me perguntou se eu tinha algum documento que justificasse a nossa presença naquela área. Eu expliquei que sim, mostrei o mapa, eles pegaram o mapa, e aí, em seguida, já veio chegando o grupo Invasão Zero com mais de 100 caminhonetes. Pararam, desceram e ficaram em frente aos índios, com a barreira da Polícia Militar no meio.
O comandante pegou o mapa e levou até os fazendeiros, mostrou e, quando voltaram, já foi mandando os polícias tirar as viaturas da frente, botar de lado, e deixou nós frente a frente com o grupo Invasão Zero. Aí começou os tiros. O disparo de arma baleou o cacique Ueni e um rapaz de 16 anos. Espancaram as índias, chutavam com o pé, batia de pau, muito sangue (…) eu pedindo socorro à polícia, falava com o comandante que ele podia evitar de acontecer o pior naquele momento ali, mas ele não respondia nada, presenciando todo esse massacre. Até que chegou um rapaz de 20 anos junto de mim e, com a arma na mão, mandou que eu saísse, eu falei que ia falar com o ocupante da terra, aí minha irmã atravessou na frente e ele atirou. Minha irmã foi caindo, eu fui pegar minha irmã e ele me atirou também, nós caímos juntos, mas minha irmã não resistiu.
Quero dizer para vocês, meus parentes, que é muito triste realmente viver em um país que não respeita a nossa Constituição, não respeita o direito que está lá, que não cumpre com o seu dever de demarcar.
O fazendeiro é deputado federal, o fazendeiro é senador, é ministro, é juiz. Os advogados são filhos do juiz, filhos dos fazendeiros. Os que são do Ministério Público, é filho do juiz. Como é que nós vamos resolver esse problema? Como é que um juiz vai dar uma liminar favorável a nós? Ele dá uma reintegração de posse favorável ao fazendeiro, porque a fazenda é do pai dele. O fazendeiro é o pai dele. Ele vai dar a favor de nós? Não vai. O mundo da justiça está contra nós. São eles os invasores dos nossos territórios. Então, nós precisamos estar juntos, nós precisamos buscar mais informação.
Se nós nos unirmos, nos organizarmos internamente e espiritualmente para reforçar a nossa corrente espiritual, a gente vai conseguir as nossas terras, mas será na base da autodemarcação. Nós não podemos falar de demarcação já, porque quem está lá [no poder] não vai demarcar. Nós já sabemos que eles são contra nós, então temos que nos preparar para fazermos a nossa autodemarcação. Porque o fazendeiro, o agronegócio, estão juntos, estão unidos para acabar com nós. É uma arma tão pesada contra nós que nós temos que estar juntos para suspender essa arma e disparar contra eles, com a nossa união, com a nossa força, com a nossa espiritualidade reforçada, preservada.”
Lucine Barbosa, do Tekoha Laranjeira Nhanderu (Brilhantepeguá), no município de Rio Brilhante, Mato Grosso do Sul.
“Eu vim aqui falar sobre a violência em Mato Grosso do Sul, que existe contra o povo Guarani e Kaiowá.
Eu fiz uma retomada no tempo do Bolsonaro e até hoje eu sou perseguida.
A gente retomou nossa terra, a gente não foi invadir, mas hoje está sendo divulgado que somos invasores. Isso me chocou bastante porque somos indígenas e, há mais de 500 anos, que a gente sofre e continua sofrendo.
Meu povo Guarani Kaiowá está sofrendo lá em Douradina. Não só as crianças que estão sofrendo, as mulheres estão machucadas e os caciques estão baleados. Os jovens também estão sendo massacrados e a gente está pedindo socorro para os nossos parentes lá em Mato Grosso do Sul. A gente não sabe até quando vai essa violência. Isso não vai parar enquanto não houver demarcação de terra.
Então, eu quero dizer para os que estão vendo: pare de nos judiar e pare de nos matar. É pelas nossas crianças que estamos lutando. Estou lutando pela minha comunidade.
Não só nós, Guarani Kaiowá, que estamos sofrendo, os povos do Brasil estão passando isso. E quando vai ter segurança para nos proteger? A própria segurança está contra nós, como que a gente vai poder falar que a segurança veio nos proteger?
Até quando a gente vai derramar [sangue] por essas terras? Até quando os povos Guarani Kaiowá vão tombar pelas terras? Meu pai tombou pelas terras e não foram resolvidos.
A gente tem os direitos, a gente não está roubando a terra, a gente quer que devolvam nossas terras.
Isso que a gente como arma: o som do nosso takuapu e do nosso mbaraka, isso é a proteção que nós indígenas temos.
Os antepassados já foram massacrados e até hoje a gente é massacrado, judiado e não fomos ouvidos, né? Falamos, falamos, dialogamos, dialogamos e a gente não tem direito.
Enquanto não parar essa violência, nós também não vamos parar de lutar pelos nossos direitos. Eu falo em nome de todos os Guarani Kaiowá que estão aqui me ouvindo. Enquanto não parar, a gente não vai parar, desistir, nem recuar, a gente vai em frente. A gente não tem medo. Se algum morrer, três lideranças já vão levantar pra luta. Se morrer duas lideranças, vai levantar mais lideranças. É isso que a gente é. Ninguém solta a mão de ninguém pra gente fazer nossa resistência. Demarcação já, autodemarcação já, fora o marco temporal!”
Vilma Vera, liderança Avá-Guarani do tekoha Y’Hovy, na TI Tekoha Guasu Guavirá, no município de Guaíra, oeste do Paraná.
“Eu sou muito grata por receber esse convite num momento tão crucial, num momento em que o Brasil assistiu e acompanha um conflito, mais que um conflito, uma verdadeira tentativa de massacre aos povos indígenas.
Eu quero dizer a todos não indígenas que nos ouvem que o que está acontecendo nesse território é por conta da justiça brasileira que, mais uma vez, está negando os direitos dos povos indígenas, que estão violando os direitos que, com muita dificuldade e com muita luta, o nosso povo conquistou dentro da Constituição. O que vocês estão acompanhando é por causa da falha do Estado.
Até quando a justiça brasileira vai oprimir a população indígena, criando e aprovando leis que é totalmente contrário à legislação? Até quando vamos ter que perder nossos parentes?
Os fazendeiros levam galões de gasolina pra atearem fogo ao redor das retomadas com a tentativa de expulsar os guaranis de lá. E nós estamos resistindo, as mulheres indígenas estão resistindo, os jovens estão resistindo. E essa é a nossa luta.
Se a justiça brasileira não fizer nada, se o órgão competente não tomar uma providência urgente, não acharem uma solução, mais pessoas vão morrer. Mais crianças vão sair no jornal porque perderam a vida por causa da terra.
Não queremos o Brasil inteiro, apesar de que o Brasil inteiro é nosso. Só queremos o que eram dos nossos antepassados. Só estamos retomando o território ancestral.
A solução que eles falam, de tentar colocar os povos indígenas em um lugar só, não é solução para nós. Porque nós, povos Avá-Guarani, temos os nossos costumes, temos a nossa crença, e o nosso modo de viver não é estar no território onde nós não podemos transmitir do jeito que nós éramos, dentro do nosso nhandereko (jeito Guarani de ser).
Enquanto seus filhos dormem, nós, mulheres, ficamos acordadas na beira do fogo para cuidar, para manter os nossos filhos vivos. Porque eles são o futuro. Se nós tombarmos hoje, queremos que os nossos filhos permaneçam vivos para que eles possam levar essa nossa luta à frente. É triste o que estamos vivendo. É muito triste ver as crianças nessas retomadas e ter a incerteza no coração. Porque é com isso que nós vivemos, com a incerteza. Em cada passo que a gente dá nós sabemos que a qualquer momento podemos levar um tiro.
Mas nós não vamos recuar. Não vamos mais baixar a cabeça, não vamos mais fugir. Porque para onde vamos fugir? O que nós retomamos hoje é uma área que é totalmente desmatada, não temos mata para onde fugir. Então, a única solução que nós vimos é resistir. E estar preparado para tudo. Porque não vamos mais recuar. Estamos cansados da promessa dos brancos, que sempre nos enganou.
Nós éramos expulsos igual a uma vaca. Igual a um boi. Mas, hoje, eles não conseguem mais nos expulsar igual a um boi. Nós permanecemos. Nós resistimos. Vamos ficar nas nossas retomadas. Se tiver que morrer, morreremos. Porque nós não temos nada a perder. Nós não temos uma herança. Nós não temos dinheiro, não temos joias guardadas no banco. A única que nós temos é a nossa alma, a nossa espiritualidade e a esperança de que um dia esse país vai reconhecer nossos direitos.
Abrace a causa indígena, porque todos nós somos seres humanos. Sentimos dor, sentimos fome, sentimos sede, tomamos a mesma água. Então, não temos diferença nenhuma. O que precisamos é que o país brasileiro pare de nos matar, pare de nos julgar, pare de olhar pra gente como se fosse nada.
Sabemos que a nossa vida, para esses fazendeiros, para esses ruralistas, não vale um centavo. Pra eles o que vale são grãos de milho e de soja. E eles dizem que eles alimentam o Brasil, mas nós não vivemos de milho, nós não vivemos de grãos, nós não comemos grãos. Então como que eles nos alimentam? O que nos tem alimentado são os pequenos agricultores que plantam verduras. Isso nos tem alimentado.
Eu vim com um grito de socorro dizer que se ninguém tomar uma providência urgente, povos Avá-Guarani estão prontos para enfrentar tudo o que vier pela frente. E vamos resistir. Até a última gota de sangue dos povos.”
Edna da Terra Indígena Sucuri’y, localizada no município de Maracajú no Mato Grosso do Sul.
“Lá na minha aldeia, não morre dentro da aldeia, morre em BR. Três pessoas já morreram. Quando eu fui lá na delegacia, eu falei assim para ele [o delegado]: será que assassino tem direito? Mas ele também não fala nada, não resolve nada. Parece que somos um cachorro que morre. Morre e acabou por aí. É assim que é no meu estado.
Não tem direito lá em Mato Grosso do Sul. Eu falo a minha verdade: não tem direito lá. Aqui, vocês têm o papel, têm leis, mas lá não, lá não tem direito.
Leva conhecimento para a autoridade, mas não tomam providência. Para nós não tem mais leis, se uma pessoa morre, crianças, mulheres e o jovem, não tem mais leis, porque a autoridade não toma providência. ”
A Cineasta e antropóloga Ana Carolina Mira Porto, no dia 22 de novembro de 2023, juntamente com o jornalista canadense Renaud Philippe, foi violentamente agredida, ameaçada e roubada enquanto apuravam uma sequência de ataques contra uma retomada realizada por indígenas Kaiowá e Guarani em Iguatemi (MS), na fronteira com o Paraguai. Carolina e Renaud trabalham há dois anos em um fotodocumentário sobre a luta Kaiowá e Guarani pela demarcação de suas terras, registrando a realidade de acampamentos, territórios e retomadas.
“Há quase três anos fazemos um projeto sobre as retomadas de território ancestral pelo povo Guarani, Guarani Kaiowá e Ava Guarani, e aconteceu esse incidente. Hoje faz exatos oito meses.
Esse ódio que a gente encontrou não tem como explicar, é uma coisa muito horrorosa, mas que a gente já ouvia nesses relatos, em mais de 25 retomadas, no projeto Retomada da Terra. São relatos de violência, abuso sexual, estupro coletivo, assassinato, são tantas violências em todos os níveis da vida.
E nessa comunidade, Pyelito Kue, que a gente não conseguiu chegar nesse dia, essas pessoas sofreram diversos ataques depois disso. Mas, naquele dia [do ataque], há oito meses atrás, um rapaz chamado Carlos Teixeira, de 20 anos, desapareceu e está desaparecido até hoje.
Eu queria só falar um pouco sobre a invisibilidade da questão. A gente várias vezes tenta comunicar [o que acontece], mas tem muita gente que vira o rosto, né? E quando fala, é para falar de invasão, não de retomada de território ancestral, que é o que é. E [gostaria de falar] também sobre a impunidade. A comunidade foi fortemente atacada no dia que fomos agredidos, muito mais do que a gente, mas até hoje esse inquérito está em aberto, pois dizem que não tem suspeito, sendo que todos sabem quem são os mandantes e quem são essas pessoas. Então, creio que é isso, é um genocídio em curso. A gente pode nomear assim porque se você for em cada lugar, em cada retomada, tem alguém que tombou, tem alguém enterrado, tem alguém ferido, tem muita gente traumatizada.
Autodemarcação já, justiça e não ao marco temporal, que vulnerabiliza ainda mais esses povos.”
Cardeal Leonardo Steiner é presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) desde 2023, mas já atuou junto à entidade desde que era bispo de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, com dom Pedro Casaldáliga (1928-2020). “Que possamos ser presença misericordiosa junto às comunidades indígenas”, disse Leonardo Steiner, que é considerado o primeiro “cardeal da Amazônia”, posição que assumiu em 2022 após um anúncio solene do Papa Francisco.
“Queria agradecer a presença de cada um de cada uma, especialmente dos povos indígenas aqui presentes, que são testemunha viva da ousadia, da perseverança, da luta.
Quando os europeus chegaram, se diz que a população indígena era de 3,5 milhões, outros falam até mais. Hoje, segundo os dados recentes do IBGE, nós temos 1,7 milhão. Não sei se esses dados condizem, mas só para ver o quanto, através da história do nosso Brasil, os povos indígenas foram inicialmente caçados, em seguida escravizados e, sempre de novo, foram sendo massacrados. É uma palavra um pouco agressiva, mas que ainda não consegue dizer a realidade em relação aos povos indígenas, quanto à morte e destruição de culturas, o desaparecimento de línguas.
Nós, como igreja católica, herança da fundação do Conselho Indigenista Missionário, queremos levar adiante essa verdadeira missão que recebemos, de assumirmos a causa indígena como a causa da igreja. Com as dificuldades que sempre vamos encontrando através do caminho, nós queremos continuar com a verdadeira causa, a causa indígena.
O momento em que nós estamos a atravessar é um momento extremamente difícil, porque o Congresso Nacional perdeu o horizonte da ética, mas perdeu o pior, perdeu a moral. Porque acha que pode impor aos povos indígenas determinadas leis, esquecendo de que é a justiça e o direito que possibilitam a lei. E a justiça não condiz com as leis que estão sendo gestadas, nem todas as tentativas que têm acontecido no Congresso Nacional.
É por isso que nós, como igreja, nós como pessoas, que temos a causa indígena como prioritária.
Graças a Deus os povos indígenas hoje têm as suas organizações, têm as suas lutas, e graças a Deus não perderam a sua língua e as suas próprias causas.
Eu queria agradecer a todas as pessoas que colaboraram com o relatório, muitas pessoas colaboraram, especialmente os missionários e missionárias que estão junto aos povos indígenas em diversas regiões do Brasil, e agradecer também aos povos indígenas pela resistência. É preciso muita resistência, é preciso muita mística para suportar tanta dor e tanta morte.
Que nós continuemos sempre na boa disposição e disponibilidade, e que levemos esse relatório para todos os lugares.”
Lucia Helena Rangel é Assessora Antropológica do Cimi, Professora Doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pesquisadora no campo da Etnologia Indígena e coordenadora do Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil.
“Infelizmente, nós temos uma situação aqui no Brasil muito complicada e que faz com que a violência contra os povos indígenas só aumente, ela nunca diminui.
Se no governo passado nós tínhamos um governo federal contra os indígenas, incitando a invasão das terras indígenas, hoje, nós temos um governo que não faz isso, mas nós temos um Congresso Nacional que faz. Deputados e senadores que o tempo todo estão lá querendo legislar para acabar com os direitos indígenas e incitando violência. Cada vez que aqui, no Congresso Nacional, eles votam uma medida, um projeto de lei para liberar as terras indígenas para invasão, para a retirada de recursos naturais, garimpo, etc., cada vez que eles votam uma lei, lá nas aldeias, a violência já aumentou.
Então, a regularização das terras é uma tarefa do Governo Federal, mas o Governo Federal vem há muito tempo empurrando com a barriga. Agora, é o Congresso Nacional que cumpre esse papel.”
Roberto Antonio Liebgott, coordenador do Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, é formado em Filosofia, Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e coordenador conselheiro do Cimi Regional Sul.
“Sobre os depoimentos, perceberam que eram quase todos de mulheres? E todas com a criança no colo. E a que não estava com a criança no colo estava com a criança no ventre. E ela precisou se enterrar no lodo para que sobrevivesse aos ataques de policiais e pistoleiros.
Aí houve o pedido da Vilma de “deixe-nos viver”. E a gente pensa: como é que nós estamos deixando viver? Se há ataques cotidianos contra vocês. Eles estão sob a mira dos fazendeiros. Deixem-nos viver como? Deixem-nos viver como se não há água potável para beber nas áreas que vocês ocupam? Onde a Vilma mora [na TI Guasu Guavirá, no oeste do Paraná] a água para o consumo humano é difícil. Ela disse que todos somos iguais, que todos bebemos água, mas lá raramente têm água para beber. Porque o plantio e as plantações do grão não servem para comer – que é o grão da soja, do milho que vai para os bois da China. Todo o espaço é tomado por esse ambiente de uma produção que não deixa viver.
Então, deixe-nos viver como? Se a pistolagem está ao redor todos os dias. E a Vilma testemunhou que de noite eles ficam ao pé do fogo, acordados para proteger quem está no colo. Deixem-nos viver como? No ambiente em que um boi vale muito mais do que você e do que sua filha. Deixem-nos viver como? Se uma roça de soja, para engordar os bois valem mais do que vocês e são prioridade no governo. Deixem-nos viver como? Se o direito de vocês está sempre sobre a mesa do governo para ser negociado. Deixem-nos viver como? Se se investe mais em ações paliativas, em políticas compensatórias, do que a garantia dos direitos constitucionais dos povos indígenas.
Agora, o Presidente do Cimi vai para uma audiência no Supremo Tribunal Federal para dialogar e tentar convencer os ministros a julgarem de uma vez por todas as ações contra a Lei 14.701 que introduz a tese do marco temporal, a tese genocida. O nosso presidente está indo lá para tentar convencer os ministros a julgarem essa lei e dizer que ela é inconstitucional, porque ela vem para matar e não para fazer viver. É com base na lei que os fazendeiros lá no Paraná estão atacando a comunidade. É com base na lei que eles dizem que eles têm título de propriedade e que eles [os indígenas] são invasores.
E a tua solução, [Nailton Pataxó], é uma solução importante. É fazer uma corrente de reza, de força espiritual para enfrentar esses que querem que vocês morram. As experiências de luta de vocês, elas sempre estão alicerçadas na fé, na coragem, na determinação.
E assim nós vamos seguir lutando com vocês, custe o que custar. Sempre juntos, porque essa é a nossa missão e a missão de vocês é a missão da vida. Protegendo cada um e cada uma e protegendo o que é mais importante na vida de vocês, que é a mãe terra. Que é aquela que vem sendo pisoteada pelo boi que vale mais do que vocês.”
Luis Ventura, secretário executivo do Cimi, graduado em antropologia pela Universidade de Sevilha, mestre em estudos latino-americanos e doutor em ciências políticas pela Universidade Complutense em Madrid.
“É com o som incontestável do maracá, com a força profunda dos cantos da reza do povo Guarani-Kaiowá, com as falas e os depoimentos das mulheres do povo Guarani-Kaiowá, que iniciamos o ato do lançamento do relatório de violência contra os povos indígenas, com dados de 2023, publicação do Conselho Indigenista Missionário.
O relatório é mais um grito de denúncia que pretende dar visibilidade à situação e à realidade nos territórios indígenas. É um grito de denúncia e é um anúncio também da resistência dos povos indígenas.
O relatório de violência é também um documento que pretende instigar e exigir aqueles que têm responsabilidades para que tomem as medidas de forma urgente, para enfrentar essa violência permanente e estrutural contra os povos indígenas.
O relatório de violência faz parte do compromisso do Conselho Indigenista Missionário com os povos indígenas. Ele traz dados de 2023, mas o seu lançamento vem num momento de acirramento, de intensificação da violência contra os povos indígenas nos territórios do nosso país. Um acirramento da violência alimentado pela manutenção da lei 14.701 promulgada pelo Congresso Nacional e pelo impasse ainda existente no âmbito do Supremo Tribunal Federal.