Após suspensão de despejo e sob olhar da Força Nacional, fazendeiros destroem barraco de família Avá-Guarani no Paraná
Ação truculenta ocorreu nesta terça (7), após decisão do TRF-4 que suspendeu reintegração de posse contra indígenas. Comunidades da TI Tekoha Guasu Guavirá seguem sofrendo ataques e ameaças
Na tarde desta terça-feira (7), homens numa camionete destruíram o barraco de uma família Avá-Guarani do tekoha Ara Poty, uma das retomadas estabelecidas pelos indígenas no interior da Terra Indígena (TI) Guasu Guavirá, em Terra Roxa, na região oeste do Paraná. A ação truculenta, filmada pelos próprios fazendeiros, foi realizada poucos dias após a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) que suspendeu a reintegração de posse contra comunidades do território. Os Avá-Guarani relatam que os disparos e as ameaças contra as retomadas continuam.
Segundo o relato de uma liderança que, por segurança, não será identificada, os fazendeiros que destruíram o barraco da família indígena na tarde desta terça-feira estavam acompanhados da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP). O destacamento especializado foi deslocado para a região em janeiro de 2024, por determinação do Ministério da Justiça, e atua desde então nos municípios de Guaíra e Terra Roxa, que abrangem a TI Tekoha Guasu Guavirá.
“Em torno das duas e meia da tarde, entrou uma camionete [na área de retomada], que veio acompanhada pela Força Nacional”, relatou a liderança. “Veio de repente e já chegou em um barraco. O proprietário conseguiu arrancar todo aquele barraco, colocou na camioneta e levou tudo. Foi um ataque. Naquele barraco mora um casal, quatro crianças e um idoso. Foi bem rápido. Quando fomos nos juntar para ver, a camionete saiu e foi embora. O casal ficou sem barraco. Foi um crime, queremos justiça”.
O vídeo gravado de dentro da camionete mostra o veículo parando ao lado do barraco da família Avá-Guarani, que imediatamente começa a ser desmontado por dois homens que descem do carro. Os indígenas assistem à cena perplexos, enquanto sua moradia é destruída.
“Foi combinado com o Jairo, vocês sabem, né?”, diz um dos homens, enquanto eles arrancam a lona que cobria o barraco e removem as estacas que dão sustentação à moradia improvisada dos indígenas. Os ruralistas alegam aos indígenas que a ação teria anuência da Funai. “Vocês vão lá na Funai e falem com o Jairo”, afirma o homem aos indígenas, conforme registrado no vídeo.
A retomada Ara Poty foi uma das nove estabelecidas pelos Avá-Guarani no interior da TI Tekoha Guasu Guavirá em julho. No caso desta comunidade, ela fica na área sobre a qual está sobreposta uma propriedade conhecida como Fazenda Brilhante.
Segundo as lideranças, o despejo ilegal da família indígena foi realizado por cinco pessoas e acompanhado de perto pela Força Nacional. “O proprietário foi [retirar o barraco] com a Força Nacional, que acompanhou tudo o que o proprietário fez e saiu junto com ele”, relata um Avá-Guarani.
“O Avá-Guarani não consegue sair da retomada para procurar alimento para as crianças, materiais de higiene. Quando a gente sai, o proprietário já está em algum lugar caçando o Avá-Guarani, dando tiro em cima”
Reintegrações suspensas, ataques continuam
Na sexta-feira (2), uma decisão do TRF-4 suspendeu as reintegrações de posse contra os Avá-Guarani da TI Tekoha Guasu Guavira, atendendo a um recurso da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da Advocacia-Geral da União (AGU) contra a decisão do juiz federal João Paulo Nery dos Passos Martins, da 2ª Vara Federal de Umuarama (PR).
Os órgãos federais argumentaram que a ordem de despejo contra os indígenas “só acirraria os conflitos, impedindo ou postergando a efetiva solução da questão, devendo o pedido de interdito e reintegração ser indeferido”.
O argumento foi acatado pelo desembargador Luiz Antonio Bonat, que também suspendeu a proibição de que a Funai prestasse assistência aos indígenas em retomadas na TI. O juiz da 2ª Vara Federal de Umuarama havia proibido a Funai de entregar lonas, madeira, ferramentas e outros materiais que possam ser usados para construção de abrigos/moradias às retomadas Avá-Guarani.
As decisões, contudo, não garantiram o fim dos ataques, das ameaças e da violência contra os indígenas. Segundo uma liderança Avá-Guarani, a comunidade Ara Poty já sofreu ao menos dois ataques a tiros desde que a decisão do TRF-4 foi proferida.
“Tem uma estrada de chão bem perto da retomada. Sempre que passam ali, atiram. E até hoje não parou. Os tiros acontecem a qualquer momento, a qualquer hora. Ontem [6 de agosto] à noite, pelas nove e meia, deram tiros bem próximos à nossa retomada. Depois que suspenderam a reintegração de posse, já deram tiros em cima de nós duas vezes. A camionete passa e atira”, relata a liderança.
Ele conta que os ataques costumam ser rápidos, o que dificulta o registro das ações violentas em vídeo pelos indígenas, que estão sem poder se locomover.
“A gente nem sempre consegue gravar, porque é muito rápido. Eles atiram e já saem”, descreve. “O Avá-Guarani não consegue sair da retomada para procurar alimento para as crianças, materiais de higiene. Quando a gente sai, o proprietário já está em algum lugar caçando o Avá-Guarani, dando tiro em cima”.
A violência contra os Avá-Guarani tem sido contínua e disseminada contra todas as retomadas da região. Nesta quarta-feira (7), outra comunidade indígena da TI Tekoha Guasu Guavirá também sofreu ameaças
Ameaça de despejo com trator
A violência contra os Avá-Guarani tem sido contínua e disseminada contra todas as retomadas da região. Nesta quarta-feira (7), outra comunidade indígena da TI Tekoha Guasu Guavirá também sofreu ameaças e tentativa de expulsão. A comunidade Y’Hovy – uma retomada cuja área ocupada foi ampliada pelos Avá-Guarani em julho – foi alvo de investidas e ameaças durante o dia inteiro e a noite.
Pela manhã, famílias foram ameaçadas por um homem que chegou ao local num trator. Segundo relato das lideranças da comunidade, localizada em Guaíra, o trator é o mesmo que foi utilizado em outras ações contra os indígenas – inclusive numa ação violenta contra a retomada do tekoha Tatury, também em Guaíra.
Na última sexta-feira (2), data em que decisão de reintegração de posse contra os Avá-Guarani foi suspensa, o mesmo veículo foi utilizado para tentar atropelar os indígenas no tekoha Y’Hovy, conforme registrado pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) em vídeo publicado nas redes sociais.
“Por volta das 8 horas da manhã, o mesmo trator que quase atropelou os Guarani na semana passada foi até a comunidade Y’Hovy. Ele se deslocou até o local com a tentativa de entrar mais uma vez na ampliação do tekoha Y’Hovy, mas os Avá-Guarani conseguiram impedir, e em seguida a Força Nacional chegou no local”, relata outra liderança, que por segurança também não será identificada.
Segundo os relatos, a situação seguiu tensa durante a tarde, com muitos não-indígenas se aglomerando nas proximidades da comunidade. À noite, houve duas tentativas de invasão ao tekoha, efetivada por homens encapuzados.
“Por volta das 8 horas da noite, algumas pessoas encapuzadas, com roupa toda preta, chegaram num barraco que estava um pouco mais afastado, e mais uma vez os Guarani fizeram eles correrem. Mais tarde, à 1h da madrugada, teve mais uma tentativa deles entrarem, mas sem sucesso”, relata a liderança.
Os relatos indicam que a tensão continua e a comunidade teme sofrer novos ataques.
Violência ininterrupta
Desde o início de julho, os Avá-Guarani foram alvo de sucessivos ataques de fazendeiros na região oeste do Paraná. Os ataques começaram após a retomada dos tekoha Ara Poty e Arakoé, realizada no dia 4 de julho. Missionários do Cimi chegaram a ser perseguidos e intimidados ao tentar prestar assistência às comunidades, onde alimentos, roupas e pertences dos indígenas foram queimados pelos fazendeiros.
Pelo menos um indígena foi ferido à bala e outros dois foram atropelados de forma proposital durante os ataques. Em resposta à violência, os indígenas decidiram retomar novas áreas no território, identificado e delimitado pela Funai em 2018 com 24 mil hectares. O processo demarcatório foi suspenso por decisão da Justiça Federal, da qual os indígenas e a Funai recorreram.
Atualmente, há pelo menos nove retomadas estabelecidas na TI, e todas elas sofreram ataques neste período: Arakoé, Ara Poty, Yvyju Avary e Tekoha Tata Rendy, no município de Terra Roxa, e Tatury, Yvyju Avary, Y’Hovy, Jevy e Hite, em Guaíra.