04/07/2024

 Pés no chão e cabeça no horizonte

Editorial publicado originalmente na edição 466 do jornal Porantim

Por Assessoria de Comunicação do Cimi

Veja aqui a edição na íntegra

O cenário de disputa em torno dos direitos constitucionais indígenas no Brasil tem sido marcado por intensos desafios. A tese do marco temporal, que pretendia limitar as demarcações de terras indígenas às posses comprovadas em 5 de outubro de 1988, foi julgada e sepultada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 27 de setembro de 2023. Contudo, em dezembro do mesmo ano, durante o recesso legislativo, o Congresso Nacional promulgou rapidamente a Lei 14.701, conhecida como a Lei do Marco Temporal, impondo sérias consequências para os povos indígenas, tendo em vista que a lei incorporou uma série de dispositivos contrários aos direitos originários.

A promulgação desta lei, claramente inconstitucional, intensifica conflitos históricos e revela uma maneira de legislar que desconsidera as balizas constitucionais, prática que tem se tornado recorrente em nosso país. A nova legislação representa um verdadeiro combo anti-indígena, promovendo apenas o interesse de setores como o agronegócio, que se aproveitam de um respaldo jurídico para avançar sobre os territórios indígenas.

Em teoria, o Senado e a Câmara já deveriam ter barrado essa medida inconstitucional antes de chegar ao ponto de ser judicializada, mas isso não ocorreu. A verdade é que os povos indígenas sempre enfrentaram um Estado contraditório, com impérios e oligarquias sucessivas. Hoje, isso se traduz em um governo de composição, composto por uma coalizão de interesses antagônicos, que tem demonstrado uma total incapacidade – ou falta de vontade política – para impulsionar as demarcações e homologações de terras indígenas, acirrando o cenário atual de disputa pelos direitos constitucionais desses povos.

Prova disso é que, em 2023, antes mesmo da vigência da Lei do Marco Temporal, mesmo com a decisão do STF favorável aos povos, nenhuma portaria declaratória foi emitida naquele ano, evidenciando a incapacidade – ou a escolha deliberada – do governo de não deslanchar toda aquela política de demarcação e homologação dos territórios indígenas. Há uma impressão de que pode existir um acordo tácito entre os setores dos três poderes para dificultar cada vez mais a demarcação e homologação dos territórios indígenas.

No entanto, a história de resistência dos povos nos ensina a continuar encarando essa disputa com um espírito esperançoso, mas também com foco, serenidade, firmeza e horizontalidade nas reflexões sobre os melhores caminhos e estratégias, mantendo viva a luta política, que é onde se conquista e se mantêm os direitos, na expectativa de que eles se revertam em conquistas reais para a melhoria de vida dos povos em seus territórios.

Em meio a este cenário, o movimento indígena vive ainda um momento único de articulação, organização e representatividade interna, ao passo que enfrenta o desafio de dialogar com sua própria presença dentro do Estado, o mesmo Estado que é herança do projeto colonial, com o qual disputamos, e onde vive-se um intenso e constante campo de batalha para a garantia de direitos constitucionais. E, apesar dos dilemas e dos desafios que precisam ser enfrentados e continuamente avaliados pelo movimento indígena, essa presença no governo é estratégica e fundamental. O movimento indígena não é Estado e ele sabe perfeitamente qual é a diferença entre o que é a política indígena e o que é a política indígena no Estado, principalmente quando o lugar ocupado dentro do sistema não é um lugar de grandes decisões.

São tempos raros e, fundamentalmente, é preciso preservar a unidade na ação para enfrentar e superar as ameaças aos direitos dos povos indígenas às suas terras tradicionalmente ocupadas. Essa unidade deve pressupor e incluir uma estratégia que se baseie em um tripé, tendo como centro a mobilização política e social dos povos e seus aliados. Essa mobilização deve ser permanente e direta, incidindo em todos os níveis, para superar os desafios que se apresentam. O movimento indígena que está nos territórios, aquele que está com os pés no chão, lutando pelas retomadas, nos acampamentos, pela desintrusão de seus territórios, aquele que vêm para o Acampamento Terra Livre (ATL) e Levante Pela Terra, e aquele que vêm nas delegações reivindicar seus direitos, deve se manter muito firme e profundamente enraizado em suas lutas ancestrais, mantendo vivo o espírito de resistência.

Estamos sendo desafiados por projetos de vida, não por projetos de morte. E é para construir esses projetos de vida, junto com os povos indígenas, que a cada dia acordamos e fazemos uma nova jornada. Nossa luta é incessante. A luta dos povos indígenas é contínua. Mas é na persistência e na esperança que encontramos a força para avançar.

O cenário atual exige união, organização e resistência para garantir os direitos e a dignidade dos povos originários em seus territórios ancestrais. É necessário enfrentarmos juntos os desafios impostos pelas legislações inconstitucionais e construir um futuro onde os direitos indígenas sejam plenamente respeitados e assegurados.

Que sejamos inspirados pelas palavras de Dom Pedro Casaldáliga, quando nos ensina que ter esperança é um ato de rebeldia. Seguimos então enfrentando as conjunturas com os pés no chão e a cabeça no horizonte, nessa esperança que nos torna incontestáveis e incansáveis em nossa teimosia.

 

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