13/06/2024

Sem barreira jurídica, portaria da TI Tupinambá de Olivença depende apenas de decisão do governo Lula

Em Brasília, povo Tupinambá espera ser recebido pelo ministro da Justiça Ricardo Lewandowski, responsável pela publicação de portarias declaratórias

Ato dos Tupinambá em frente ao STF contra marco temporal e Lei 14.701/2023 e pela emissão da portaria declaratória da TI Tupinambá de Olivença. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Ato dos Tupinambá em frente ao STF contra marco temporal e Lei 14.701/2023 e pela emissão da portaria declaratória da TI Tupinambá de Olivença. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Por Maiara Dourado e Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Há mais de 15 anos, o povo Tupinambá aguarda que a demarcação da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença avance. O último andamento significativo foi a publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da TI, em 2009. A emissão da portaria declaratória, próxima etapa do processo demarcatório, depende apenas da vontade política do governo Lula e do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski.

“Não cabe mais argumentos para dizer que não assina [a portaria declaratória]. Tem que assinar”, explica Ramón, uma das 40 lideranças Tupinambá que estão presentes em Brasília nesta semana e cobram do governo a demarcação da TI. Para ele, a continuidade do procedimento demarcatório de suas terras “é algo meramente político, de interesses”.

Não há nenhum impedimento jurídico ou administrativo para que a portaria declaratória da TI Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia, seja publicada pelo governo federal. É o que apontam informes técnicos da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do próprio Ministério da Justiça (MJ), responsável pela emissão da portaria.

Uma nota técnica da Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) aponta que a vigência da Lei 14.701, a “Lei do Marco Temporal”, também não impede que o governo publique a portaria, no caso desta TI. Clique aqui para acessar a nota na íntegra.

“Mesmo que aplicado o marco temporal, ele não atinge o povo Tupinambá, já que os indígenas sempre ocuparam porções de terras em toda a extensão do território”

Delegação Tupinambá presente em Brasília em junho de 2024, durante uma das várias audiências realizadas com órgãos públicos. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Em Brasília, delegação Tupinambá participou de diversas reuniões com órgãos públicos, cobrando a demarcação de sua terra. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Lei 14.701 e marco temporal não afetam a TI

Em 2009, a TI Tupinambá de Olivença foi identificada e delimitada pela Funai com 47,3 mil hectares, distribuídos entre os municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, no sul da Bahia. Desde então, o processo demarcatório da TI foi alvo de uma série de questionamentos jurídicos e administrativos – todos eles já superados, apontam os informes e a nota técnica.

Os principais questionamentos envolvem a tese do “marco temporal” e a recente Lei 14.701, promulgada em dezembro de 2023 pelo Congresso Nacional. A tese ruralista limita as demarcações apenas àquelas terras que estivessem sob a posse dos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ou em disputa naquela data, nos casos de expulsão dos indígenas.

O marco temporal foi julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em processo de repercussão geral em 2023, mas foi reinserido pelo Congresso na Lei 14.701, junto a uma série de outros dispositivos que buscam inviabilizar demarcações de terras indígenas. A norma se encontra em vigor e é questionada no STF, devido à sua flagrante inconstitucionalidade.

Além dos questionamentos judiciais à Lei e do fato de o marco temporal já sido declarado inconstitucional, no caso específico da TI Tupinambá de Olivença, a demarcação não seria impactada pela tese, dado que a ocupação contínua do território pelo povo é amplamente documentada e comprovada.

Segundo a nota técnica da assessoria jurídica do Cimi, “mesmo que aplicado o marco temporal, ele não atinge o povo Tupinambá, já que os indígenas sempre ocuparam porções de terras em toda a extensão do território”.

Inclusive, prossegue o documento, “as áreas estavam registradas em nome de famílias pertencentes ao povo. Essas famílias são conhecidas como ‘mourões’, grupos familiares que nunca saíram do território e que o esbulho intensificado no meado do século passado não conseguiu afastá-los daquelas terras”.

Outro ponto levantado pelo documento se refere à não retroatividade da Lei. A Constituição prevê, conforme explica a análise jurídica, que uma nova lei não pode prejudicar “atos jurídicos perfeitos” – ou seja, aqueles já concluídos de acordo com a legislação vigente.

Isso significa que a Lei 14.701 não pode ser aplicada ao caso da TI Tupinambá de Olivença, uma vez que a tradicionalidade da ocupação indígena da área já foi reconhecida por meio da aprovação e publicação do RCID.

Por isso, explica a nota, o Estado não pode voltar atrás no reconhecimento territorial do povo Tupinambá, pois se trata de um “direito constitucional declarado, preexistente e inato dos indígenas, conceitualmente ainda mais protegido que o direito adquirido”.

Em 2023, um parecer da Consultoria Jurídica do MJ reconheceu a “regularidade do procedimento administrativo de regulamentação fundiária e demarcação” da TI Tupinambá de Olivença, “não se vislumbrando qualquer óbice jurídico” para a emissão da portaria

MJ e Funai reconhecem que não há impedimento para portaria

A nota técnica também cita uma série de documentos da Funai e do próprio MJ atestando a tradicionalidade da ocupação Tupinambá, a regularidade do procedimento administrativo e a inaplicabilidade do marco temporal neste caso.

Um informe técnico da Funai de 2018 afirma que o relatório de identificação e delimitação da TI faz “uma descrição pormenorizada do processo de ocupação no tempo e atual dos indígenas na área delimitada, atestando a intensificação gradual do esbulho territorial” do território Tupinambá, intensificado ao longo das décadas de 1950 e 1960.

O relatório de 2009 também comprova “a manutenção do exercício da posse dos indígenas em todas as regiões e unidades de paisagem que compõem a proposta de delimitação” da TI.

Uma das evidências dessa posse, segundo o informe de 2018, é o fato de que, durante levantamento da malha fundiária existente na área delimitada, foram identificados “uma série de imóveis pertencentes a indígenas Tupinambá” espalhados por toda a terra indígena.

O órgão destaca que os indígenas apresentaram, inclusive, guias de recolhimento de imposto territorial em 1988, demonstrando a ocupação do território no ano de promulgação da Constituição Federal – e afastando, assim, a possibilidade de aplicação do marco temporal.

Além disso, já em 2023, um parecer da Consultoria Jurídica do MJ reconheceu a “regularidade do procedimento administrativo de regulamentação fundiária e demarcação” da TI Tupinambá de Olivença, “não se vislumbrando qualquer óbice jurídico” para a emissão da portaria.

“Nós acreditávamos que nesse governo que está agora seria mais facilitado o diálogo, que a gente poderia encontrar os caminhos para que as questões fundiárias fossem resolvidas”

Ramon Tupinambá, à esquerda, durante uma das audiências da delegação Tupinambá presente em Brasília. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Ramon Tupinambá, à esquerda, durante uma das audiências da delegação Tupinambá presente em Brasília. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Vontade política

Um ano atrás, o presidente Lula iniciava seu terceiro mandato à frente do governo federal com a expectativa de uma atenção maior à pauta indígena, simbolizada pela criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e pela promessa de destravamento das demarcações – postura diametralmente oposta à de seu antecessor, Jair Bolsonaro.

No entanto, as promessas de celeridade nos processos demarcatórios não têm se convertido em resultados e ações práticas. Das 14 homologações de TIs inicialmente prometidas, apenas dez foram efetivamente assinadas pelo presidente da República.

Em mais de 500 dias de governo, somente três TIs tiveram os estudos concluídos e foram delimitadas pela Funai, e nenhuma portaria declaratória foi publicada pelo MJ.

Hoje, existem 47 terras indígenas já identificadas e delimitadas no Brasil. Destas, segundo informação do próprio governo, pelo menos 25 estão aptas para a expedição da Portaria Declaratória. A última portaria foi emitida pelo MJ há seis anos, em 2018: a da TI Kaxuyana-Tunayana, no Pará.

Em abril de 2024, o recuo no anúncio da homologação de quatro terras indígenas causou frustração nas lideranças dos povos afetados, que tinham expectativa de que o anúncio fosse feito durante o evento de encerramento do Conselho Nacional de Políticas Indigenistas (CNPI). Na ocasião, apenas duas terras indígenas foram homologadas.

Também nestes casos, o governo Lula decidiu contrariar pareceres técnicos de órgãos do próprio poder Executivo que apontaram não haver impedimentos legais e jurídicos para as homologações. A Casa Civil, chefiada pelo ministro Rui Costa, admitiu que, “por cautela”, optou por “agir com maior segurança social e jurídica”.

Além da falta de vontade política em relação às demarcações, Ramon Tupinambá também se queixa da dificuldade encontrada para dialogar com autoridades responsáveis pelo processo de regularização fundiária das terras de seu povo. Até o final desta semana, eles esperam ser recebidos pelo ministro da Justiça em uma reunião para tratar do tema.

“Nós queremos entender também o porquê dessa dificuldade de nos receber dentro do Executivo. Nós acreditávamos que nesse governo que está agora seria mais facilitado o diálogo, que a gente poderia encontrar os caminhos para que as questões fundiárias fossem resolvidas. Mas a gente chega a Brasília e topa com as portas fechadas”, questiona a liderança.

Povo Tupinambá durante manifestação contra Parecer 001/2017 da AGU, em 2017, em Brasília. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Povo Tupinambá durante manifestação contra Parecer 001/2017 da AGU, em 2017, em Brasília. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Idas e vindas: 15 anos de espera pela portaria declaratória

A luta do povo Tupinambá de Olivença pelo reconhecimento de seu território tradicional remete a pelo menos um século atrás. O Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da Funai cita documentos da imprensa que, já na década de 1930, registravam solicitações feitas pelo Caboclo Marcelino, liderança histórica do povo, ao já extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI).

Reivindicações do tipo também foram registradas na década de 1980 junto à Funai, criada em 1967 para substituir o SPI. Após décadas de luta, em 2004, o órgão finalmente cria o Grupo Técnico (GT) responsável por identificar e delimitar a TI.

Os estudos são concluídos em 2009, com a publicação do RCID, e recebem cinco contestações administrativas, as quais são respondidas pela Funai em 2012 e remetidas ao MJ. Tem início, então, um sinuoso caminho de idas e vindas administrativas que já se estende por 12 anos e perpassou, sem encaminhamento efetivo, quatro diferentes governos.

Em 2014, sob o governo Dilma, o processo demarcatório é devolvido pelo MJ à Funai para averiguação em relação a diversas questões, entre elas o marco temporal; no mesmo ano, a Funai responde reafirmando regularidade do processo administrativo de demarcação da TI.

O processo segue parado até 2017, quando – já sob o governo de Michel Temer – a Consultoria Jurídica do MJ conclui que a demarcação é regular. O ministério, contudo, não aprova a análise e devolve o processo, mais uma vez, à Funai. Agora, um novo elemento se soma às averiguações: o Parecer 001/2017, da AGU.

Em 2018, a Funai faz um novo informe técnico, reafirmando, mais uma vez, a regularidade do processo – agora também em relação ao Parecer da AGU. No ano seguinte, já sob o governo Jair Bolsonaro, o então ministro da Justiça, Sérgio Moro, devolve 27 processos demarcatórios à Funai para averiguação com base no Parecer 001/2017 da AGU – entre eles, o da TI Tupinambá de Olivença.

Mais um ano se passa até que, em 2020, o STF suspende a validade do Parecer da AGU. Em seguida, o Ministério Público Federal (MPF) recomenda que Funai devolva os processos ao MJ “para seguimento imediato dos respectivos processos de demarcação”. Os processos retornam, mas o governo Bolsonaro mantém sua promessa de não demarcar nenhuma TI.

Já sob o governo Lula, em 2023, a Secretaria de Acesso à Justiça do MJ emite parecer atestando a regularidade da demarcação da TI Tupinambá de Olivença, sem “qualquer óbice jurídico” para a expedição da portaria. O argumento técnico não é suficiente para que o primeiro titular da pasta, Flávio Dino, decida declarar a tradicionalidade da TI.

Já em 2024, a Sexta Câmara do MPF pede informações ao MJ – já sob a gestão do ministro Ricardo Lewandowski – sobre o andamento do processo. A resposta é que, agora, o objeto de questionamento é outro: o processo foi devolvido à Secretaria de Acesso à Justiça, mais uma vez, para uma “reanálise” à luz da Lei 14.701.

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