Caso do movimento Invasão Zero chega às Nações Unidas e exige investigação das autoridades brasileiras
Para a relatora da ONU, o governo federal precisa “se movimentar de forma mais rápida, mais ampla e mais direta”
Veja aqui a edição na íntegra.
Um dos pontos mais dramáticos da visita ao Brasil da relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a situação de pessoas defensoras de direitos humanos, Mary Lawlor, durante o último mês de abril, foi ouvir na Bahia o relato do cacique e pajé Nailton Muniz Pataxó Hã-hã-hãe sobre o ataque a tiros que matou sua irmã, Maria de Fátima Muniz, conhecida como Nega Pataxó Hã-hã-hãe, no dia 21 de janeiro deste ano.
Ocorre que não se tratou de um ataque qualquer, mas orquestrado pelo movimento Invasão Zero, uma articulação criada por grupos ruralistas em 2023, na Bahia, com indícios de milícia (leia mais abaixo), que tem se espalhado pelo país para combater a ocupação de terras improdutivas e destinadas à reforma agrária pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e as retomadas de territórios tradicionais pelos povos originários.
Agora, porém, o grupo entrou no radar das Nações Unidas e deve receber a atenção das autoridades brasileiras a respeito de suas atividades, que apresenta fortes indícios de que incluem o financiamento de grupos armados e a articulação de tais grupos em uma rede nacional.
Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, avaliou a relatora da ONU, “os perpetradores estão intensificando seus ataques, como visto com o desprezível movimento Invasão Zero. Para combater isso, o governo federal deve tornar os direitos à terra uma prioridade absoluta e trabalhar com as autoridades em nível estadual para assegurar os direitos que são garantidos”, disse Mary.
Na avaliação do assessor do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) na ONU, o advogado Paulo Lugon, especialista em proteção e direito internacional, com as Nações Unidas tratando do Invasão Zero “há uma clara obrigação do Estado brasileiro, em especial o Ministério Público, de investigar as atividades desse grupo, de acordo com os tratados ratificados pelo Estado brasileiro”.
Para Lugon é imprescindível que as autoridades investiguem se as atividades desse grupo são permitidas pela própria Constituição. “É inaceitável que qualquer associação civil registrada em cartório e com CNPJ saia atuando como grupo armado atacando indígenas no Brasil. Um país que quer ser exemplo na COP-30 precisa esclarecer esta questão”, declarou.
Formas de combater o bando
Para a relatora da ONU, o governo federal precisa “se movimentar de forma mais rápida, mais ampla e mais direta. Para os defensores só há ação real depois que alguém é morto. Repetidas vezes me perguntaram, quantos mais do nosso povo terão que morrer antes que nossos direitos sejam garantidos?”, disse.
Para ela, onde não há responsabilização por crimes ambientais, “os invasores simplesmente retornarão ou se mudarão para outras áreas. Isto já parece estar acontecendo”. Mary exortou o Supremo Tribunal Federal (STF a se pronunciar rapidamente sobre a Lei Federal 14.701/23, denominada Lei do Marco Temporal, um grande obstáculo à demarcação de terras indígenas.
A terra também é a chave para a proteção desses defensores e defensoras, disse a relatora. “Quando perguntei o que eles achavam que os protegeria, eles foram claros: remoção de invasores e demarcação já; responsabilização por crimes ambientais. Isto para eles é o que define a proteção coletiva, que é o necessário. As terras precisam ser demarcadas e tituladas. Não pode haver mais atrasos”, destacou.
“Sem uma reforma agrária justa e a resolução de disputas fundiárias, as pessoas defensoras de direitos humanos serão ameaçadas, atacadas e mortas uma após a outra”, concluiu.
O ataque e a impunidade
Pelo menos 200 fazendeiros atacaram com armas de fogo a retomada do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe realizada em área contígua à Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu, no município de Potiraguá, sudoeste da Bahia. Conforme os relatos, o bando armado chegou ao local junto com a Polícia Militar, que teria baixado a guarda dos indígenas à guisa de negociação, deixando-os vulneráveis ao ataque.
Nailton e Nega foram atingidos por disparos de arma de fogo. Caíram um ao lado do outro em uma área da fazenda retomada e sobreposta ao território tradicional. O cacique foi socorrido com um ferimento sem gravidade; Nega foi atingida de forma fatal e morreu a caminho do hospital.
A Polícia Civil confirmou que o tiro que matou Nega partiu da arma de um homem de 19 anos, filho de um fazendeiro. Além dele, um outro fazendeiro foi preso e um policial reformado de 60 anos, suspeito de ter participado do crime. No entanto, a relatora da ONU se mostra desconfiada se, de fato, os autores do crime serão julgados e devidamente punidos em tempo célere.
“Falhas policiais, falta de vontade ou conluio com os perpetradores significam que muitos casos nunca passam da fase de investigação. Quando os casos são processados, há novamente obstáculos e interesses poderosos que pesam. Quando os casos chegam aos tribunais, podem levar anos até serem julgados”, disse Mary.
MPF vê indícios de milícia
“A situação nos preocupa e por isso nós vamos acompanhar e apurar em âmbito nacional, tentar identificar as características dessa movimentação, ainda mais diante de um processo de fortalecimento, de uso de armas e organização aparentemente até paramilitar, com viés fortemente antidemocrático”, disse o procurador do Ministério Público Federal Júlio Araújo ao jornal Brasil de Fato.
Segundo o procurador disse ao jornal, as ações do grupo ruralista “se assemelham mais a um grupo paramilitar financiado por grandes latifundiários, determinados a dispor de forma irrestrita do direito à propriedade, sem qualquer intermediação das instituições do Estado e das instâncias judiciais”.