05/04/2024

Povos Indígenas Livres, os mais atingidos pelo marco temporal

Disputas judiciais e políticas estão no jogo do marco temporal em detrimento da vida indígena

Foto: Matheus Veloso

Por Lígia Apel, assessoria de comunicação do Cimi Regional Norte I, e Lino João de Oliveira Neves, antropólogo da UFAM e assessor da Eapil – matéria publicada originalmente na edição 464 do jornal Porantim

Veja aqui a edição na íntegra.

Ainda que em setembro de 2023 o Superior Tribunal Federal (STF) tenha decidido pela inconstitucionalidade da tese do marco temporal, a sua ameaça continua a pesar sobre a vida dos povos indígenas no Brasil.

Os Ministros do STF reconheceram a ilegalidade constitucional da interpretação da tese planeada por segmentos políticos e econômicos que pretendiam restringir os direitos territoriais dos povos indígenas e que ainda pretendem desvaler os artigos 231 e 232 da Constituição de 1988, cláusulas pétreas onde o Estado brasileiro reconhece a existência e a autonomia das formas de vida dos povos indígenas.

Contudo, apesar de derrubado no campo jurídico, o marco temporal voltou à pauta política sob a forma de Projeto de Lei (PL) 2.903/2023, que surpreendentemente teve a sua tramitação acelerada no Congresso Nacional e foi rapidamente enviado para a presidência apreciar. Lula vetou vários trechos que buscavam garantir os direitos indígenas conquistados na Constituição. Além do marco temporal, alguns deles são o renitente esbulho, reestudo de terras já demarcadas e a exploração de terras indígenas por terceiros, entre outras conquistas. O presidente manteve o usufruto exclusivo das terras indígenas pelos indígenas, a proteção integral dos direitos dos indígenas em isolamento voluntário e a proibição de plantação de transgênicos em terras de ocupação tradicional.

Em outubro, os vetos são derrubados pelo Congresso Nacional e o PL é rebatizado com o número 14.701/2023, em um explícito apagamento da história sangrenta que dizimou muitos povos indígenas e reduziu outros tantos, atacando, mais uma vez, os povos que habitam o território brasileiro desde antes da colonização. E agora, de forma ainda mais violenta porque oficializa o apagamento dessa história que, através do esbulho e chacinas, os desterritorializou.

Política de invisibilização

Dos 119 registros identificados com consistentes evidências pela Equipe de Apoio aos Povos Indígenas Livres (Eapil) do Cimi, apenas 28 são reconhecidos pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Os outros 91 registros são considerados pelo órgão oficial como “sem comprovação”, o que, na prática, remete a uma política de invisibilização imposta pelo Estado brasileiro, através da Funai, condenando esses muitos povos “não comprovados” à inexistência legal.

A esse processo de negação da existência de grupos de povos isolados, a Eapil entende que o Estado instaura uma “política de invisibilização” através da qual ele se descompromete, se esquivando da responsabilidade de proteção destes indígenas que não querem contato com a sociedade não indígena ou mesmo com indígenas contatados.

Evidencia-se, também, uma política ajustada aos interesses de setores econômicos que visam exploração da natureza e/ou desflorestamento para atividades agropecuárias. Uma vez que o território está “liberado” de pessoas, o território está “liberado” para exploração.

Política essa que, ao vulnerabilizar territórios sob a alegação da não existência de povos indígenas isolados, coloca-os em risco de extermínio e os territórios por eles ocupados expostos às invasões e saques.

Mas, se o marco temporal agride a integridade dos territórios das etnias indígenas que vivem no Brasil, por que falar que os isolados são os mais atingidos?

Os povos isolados desconsiderados em sua existência pelo Estado brasileiro são os mais vulneráveis porque estão sujeitos à várias formas de vulnerabilidades: epidemiológicas, demográficas, sociais, políticas e àquelas resultantes de ameaças externas diretas, como invasões de seus territórios e violência físicas frequentes que atingem a todos os povos indígenas. Com o marco temporal os indígenas isolados estão também vulneráveis juridicamente, pois as terras em que vivem e se refugiam das ameaças e invasões externas estão excluídas, simplesmente ignoradas pela Lei 14.701/23, enquanto terras tradicionalmente ocupadas.

Função: extermínio

Considerar os “isolados” como os indígenas mais afetados pela Lei 14.701/23 não é, de modo algum, minimizar os seus impactos que violam todas as legislações nacionais e internacionais sobre os direitos territoriais dos povos indígenas.

O PL do marco temporal aprovado por deputados e senadores que constituem o Congresso Nacional, mais do que uma guerra dos poderes legislativos federais contra o poder judiciário, representa a violação grosseira e um ataque brutal aos direitos em que os únicos violentados são os povos indígenas, para os quais são negadas as garantias jurídico-políticas conquistadas ao longo das últimas décadas pelo movimento indígena. E entre os indígenas, os mais expostos ao extermínio são os grupos “isolados”, que ainda hoje se mantêm distantes do contato direto com a sociedade nacional.

Foto: Hellen Loures/Cimi

Em relação aos povos isolados, o marco temporal tem o potencial de cumprir, finalmente, o propósito que muitos dos políticos nacionais e a maior parte dos empresários da mineração, agropecuaristas, madeireiros, assaltantes dos recursos naturais dos diferentes biomas perseguem: o extermínio daqueles considerados como “obstáculos” à liberação dessas terras para o que chamam de “desenvolvimento”, “ocupação produtiva”, “progresso”, ainda que sejam inúmeras as indicações de degradação dos solos, contaminação das águas, depredação das florestas, mudanças climáticas, ao ponto de colocar em risco a existência de vida no planeta.

Se o isolamento adotado por muitos segmentos de povos indígenas tem sido eficiente como estratégia de defesa contra as ameaças externas para a manutenção de seus modos de vida, o marco temporal funciona como um escudo legal para o avanço final dos interesses contrários aos povos indígenas sobre os últimos territórios preservados, abrindo campo para que a “cavalaria”, como disse o ex-presidente anti-indígena, cumpra, por fim, a sua função de exterminar os povos indígenas no Brasil.

Talvez, o marco temporal não teve como alvo primeiro os povos isolados, mas certamente são os mais gravemente atingidos e ameaçados de extinção por mais esse mecanismo de negação da possibilidade de continuar a ser índio no Brasil, um país historicamente anti-indígena.

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