Em Manaus, indígenas do Amazonas realizam mobilização e fortalecem luta do povo Mura contra mineração de potássio
O ato público em Defesa da Amazônia reuniu mais de 800 indígenas de diversos povos no centro de Manaus, capital do Amazonas, em defesa de seus direitos e contra a exploração de seus territórios
“Hoje, essa praça é território indígena, porque é território indígena em qualquer lugar que os nossos corpos estejam presentes. Porque esse futuro que é ancestral, ele é agora. O futuro ancestral está aqui nas ruas, dizendo que esse território é nosso e que a demarcação é para agora”, ecoou a jovem estudante e representante do Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas (Meiam), Daniela Munduruku, em seu pronunciamento durante o Ato Público em Defesa da Amazônia: A Resistência se Fortalece. A atividade foi realizada no dia 19 de abril e percorreu as ruas do centro de Manaus, da Praça da Saudade até o Largo São Sebastião, em frente ao Teatro Amazonas.
Organizado pela Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam) e a Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime), o ato foi uma celebração da resistência e da cultura indígena e foi considerado um Pré-Acampamento Terra Livre (ATL), evento que se realiza todo ano, no mês de abril, em Brasília e em diversos estados do país, marcando a força da organização indígena em defesa de suas vidas.
Esse ano, o ATL em Brasília completa 20 anos de realização e o Amazonas conta com uma delegação de 300 indígenas. Para Jhoedy Sateré Mawé, da diretoria executiva da Apiam, “é a maior mobilização dos povos indígenas do estado do Amazonas e os parentes estão levando suas energias ancestrais, forças, denúncias e reivindicações para a capital do país”.
No ato do dia 19, Jhoedy anunciou a presença de, “aproximadamente, 800 indígenas de Manaus (indígenas em contexto urbano), do entorno (região metropolitana) e de municípios vizinhos, como Autazes, Careiro da Várzea, Maués, Borba e Nova Olinda, e também de organizações indigenistas parceiras que apoiam a causa indígena”.
Participaram da mobilização indígenas dos povos Apurinã, Mura, Kokama, Sateré-Mawé, Tikuna, Baré, Kambeba, Tukano e Warao.
“O governo que declarou ser a favor dos povos indígenas está fazendo tudo muito devagar. Poucas demarcações de território, a mineração e outros negócios continuam chegando e desrespeitando os indígenas”
Marlete Kambeba, representante do Coletivo de Docentes do Baixo Amazonas, festejou o grande número de “parentes” que conseguiram chegar até a capital do estado e disse que o tempo é, mais do que nunca, de resistência. “Hoje é um momento muito especial por conseguirmos estar aqui, resistindo e existindo através da nossa música, maracás, grafismos, nossa arte, corpos e nossa fala”, celebrou, lembrando que quem chegou “traz a voz dos parentes que não puderam vir”.
Concordando com Marlete, Jhoedy lembra os motivos e as forças que impulsionam a luta indígena. “Estamos aqui para mostrar a nossa força na luta por nossos direitos, direito de viver com todas as políticas públicas que temos direito. E mais do que nunca, mostrar que juventude e ancestralidade andam juntas”.
Diego Mura, da comunidade Moyray, Terra Indígena (TI) Guapenu, em Autazes, veio com uma delegação de 32 lideranças jovens, mostrando o caminhar lado a lado da ancestralidade e da juventude, e diz que apesar do Brasil eleger um governo de reconstrução da democracia e de indígenas assumirem cargos importantes nos órgãos públicos, a efetivação dos direitos indígenas está devagar.
“O governo que declarou ser a favor dos povos indígenas está fazendo tudo muito devagar. Poucas demarcações de território, a mineração e outros negócios continuam chegando e desrespeitando os indígenas. Não basta criar política ou estar em algum setor público se não tem recurso. Precisamos de recursos, propostas e planos reais que cheguem nas comunidades”, afirmou.
Marcivânia Saterá Mawé, coordenadora da Copime, lembra que Manaus tem pouco mais de três séculos, mas os indígenas estão há milênios vivendo aqui. “A cidade de Manaus foi criada há 354 anos, mas nós, indígenas, estamos há milênios nesse território e nunca fomos ouvidos, nunca participamos de decisões das políticas que movimentaram as vidas por aqui. Mas, hoje, anunciamos: nada mais para nós sem nós”.
Para Jhoedy, o objetivo da manifestação foi alcançado. “Conseguimos fazer a manifestação, ecoar nossa voz e falar para a sociedade, para o Estado e governo, que nós, povos indígenas, vivemos nesse espaço, vivemos nos nossos territórios, e não arredaremos da nossa cultura”, declarou.
“Diante das mentiras e assédios que a empresa faz a alguns parentes Mura, as pessoas ficam confusas, mas agora deu para ver que muitos conhecem o que estamos passando. A força que eles passaram para a gente vai nos fortalecer”
Povo Mura: vocês não estão só
Uma das principais denúncias e repúdio do ato público foi a “ilegalidade e imoralidade” da licença concedida pelo governador do Amazonas, Wilson Lima, através do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM), à empresa Potássio do Brasil para implantar a exploração de potássio no território Mura, em Autazes.
Ambos descumpriram as definições jurídicas de retomada do processo de reconhecimento da área como território indígena e desrespeitaram o protocolo de Consulta Prévia, Livre e Informada, que os Mura já têm elaborado desde 2019. Esse é um direito garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e que o Brasil tem o dever de cumprir, uma vez que é signatário.
Para os organizadores do ato, a “medida já tem causado danos irreparáveis ao território e ao povo Mura”, e se o empreendimento for implementado, “muitos impactos sociais e ambientais vão acontecer, colocando em risco a vida na região”, apontam com preocupação.
Izabel Munduruku, coordenadora do Meiam, disse que o governo estadual não respeitou a autonomia do povo Mura, ao conceder a licença para a Potássio do Brasil. “O licenciamento permite que a empresa adentre o território Mura, que já sofre outras ameaças, como a criação de búfalos pelos fazendeiros que estão no entorno das suas terras”, denunciou.
Com um olhar para além das violências atuais que o povo Mura sofre, a professora Rosa Helena Dias da Silva, representando a Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi), fez memória aos 524 anos de violências e tentativas de extermínio vividos por todos os povos indígenas. “As tentativas de expropriar os Mura de seu território com a exploração de potássio, afetam não só a este povo, mas a outros povos indígenas e a toda a população. Ela nos afeta e afeta o presente e o futuro da Mãe Terra”, denunciou.
Em seu pronunciamento, professora Rosinha, como é conhecida, denunciou as estratégias de pressão por parte dos interessados no empreendimento para que a TI Soares tenha o processo de reconhecimento dificultado.
“A pressão, o assédio contra o povo Mura pela Potássio do Brasil e por políticos amazonenses se intensificou como reação à formação do grupo técnico da Funai para estudos de identificação e delimitação do território”, destacou. “Está evidente que além de descumprimento do Protocolo de Consulta Trincheira Yandé Peara do Povo Mura, não estão sendo cumpridas as determinações da Convenção 169 da OIT, sendo escancaradamente desrespeitado o direito à consulta prévia, livre, informada, de boa fé”.
Junto com a denúncia, a Famddi conclama as autoridades para que atuem com seriedade, competência e com boa-fé para impedir mais destruição de vidas na região. “Diante dessa batalha com armas desiguais, clamamos às instituições públicas que atuem firmemente para impedir mais um empreendimento que avança para destruição do território indígena Mura e seu modo de vida”, invoca as autoridades. A Frente também pede proteção ao povo: “Nos solidarizamos, pedimos proteção às suas vidas ameaçadas diante da resistência e afirmamos que os Mura não estão sós. Nos juntamos, lutamos e teimamos com vocês”, conclui.
Assim como a Famddi, várias outras organizações indígenas e indigenistas manifestaram apoio com o recado: “contem conosco, vocês não estão só porque a luta é de todos”.
Felipe Gabriel Mura, tuxaua da aldeia Soares, na TI Soares, se sentiu emocionado e fortalecido pela pelas manifestações. “Diante das mentiras e assédios que a empresa faz a alguns parentes Mura, as pessoas ficam confusas, mas agora deu para ver que muitos conhecem o que estamos passando. A força que eles passaram para a gente vai nos fortalecer”, afirmou.
Universidade Indígena sem indígena
Outra denúncia de desrespeito aos povos indígenas revelada durante o ato público em Defesa da Amazônia foi o descumprimento do compromisso assumido pelo Ministério da Educação (MEC) em relação à composição do Grupo de Trabalho que vai estruturar a Educação Universitária Indígena.
Segundo Alva Rosa Tukano, do Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do Amazonas (Foreeia), havia um acordo entre o MEC, o Foreeia, o Meiam, Fórum Nacional de Educação de Escolar Indígena (FNEEI) e a União Plurinacional dos Estudantes Indígenas (UPEI) para compor o GT com participação indígena, ainda em 2023. No entanto, a comunidade universitária indígena foi surpreendida com a publicação da Portaria nº 350, de 15 de abril de 2024, que não contemplou a representação dos povos.
“A portaria desconsidera os povos indígenas na composição do Grupo de Trabalho que estudará a composição da Universidade Indígena de forma a atender as demandas do Ensino Superior Indígena, garantindo o formato e as lógicas interculturais, intercientíficas e decoloniais. Depois de quase um ano de espera, a medida é publicada sem consulta e contemplando apenas agentes internos do MEC”, apontou.
Mais uma vez, os atores principais afetados pela política específica não foram consultados. O Estado brasileiro, mais uma vez, descumpre seu dever, denuncia a representante da comunidade de educação escolar indígena. “É obrigação do Estado seguir o que determina a Convenção 169 da OIT e realizar consulta livre, prévia e esclarecida também nos programas de educação, em todos os níveis, e garantir a participação e cooperação dos povos indígenas desde sua formulação até a execução, e considerar suas culturas, demandas socioculturais e territoriais e suas técnicas e conhecimentos”, concluiu.
“As esperanças depositadas em um governo eleito que se comprometeu em assegurar os direitos indígenas, especialmente a homologação de seus territórios, foram tão fortes quanto a certeza de que, se forem traídos, a luta e a resistência continuarão, porque todas e todos somos parentes nessa casa Comum”
Casa Comum: todos somos parentes
A razão da nossa esperança é a Casa Comum, onde todas e todos são parentes. Com essa reflexão, a Semana dos Povos Indígenas 2024 nos embala na afirmação de que vivemos em uma fraternidade universal que “nos aponta para a energia conjugada das dimensões humano, natural e cósmico”, diz o Cimi em suas considerações sobre o sentido e os objetivos das mobilizações indígenas, no mês de abril.
O mesmo sentimento de Felipe Mura ao ouvir as manifestações dos povos indígenas e das organizações indigenistas presentes no Ato em Defesa da Amazônia, no da 19 de abril. Nas explanações, a mensagem de todos aos Mura foi: “não se sintam sós, estamos juntos porque todos são parentes nessa Casa Comum”.
Com esse sentimento, a Cáritas Arquidiocesana de Manaus, através da sua representante Fabiana Caresto, apresentou sua indignação pelas constantes violências e violação de direitos que os indígenas sofrem.
“Dizer não a todo tipo de violências e violações dos direitos dos povos indígenas é uma palavra de ordem, não devemos ser coniventes com a tortura, abandono, desrespeito com sua cultura, tradições e ancestralidade. A atual conjuntura do país continua a negar os direitos dos povos originários, atacar às comunidades e a não cumprir os direitos constitucionais conquistados”, afirma Fabiana. “Através das lutas coletivas dos povos indígenas, a Cáritas reafirma seu apoio na luta em defesa da vida e do Bem Viver”.
O coordenador do Cimi Regional Norte I, Francesc Comelles, fez memória das razões que moveram o Cimi em sua trajetória de apoio aos povos indígenas e diz que “o Cimi testemunhou situações de extrema violência e violações dos direitos indígenas. Em diversos momentos políticos, em especial no período da ditadura militar, as investidas contra os povos originários foram cruéis”, afirma, lembrando também dos quatro anos de governo de Jair Bolsonaro.
O Cimi, diz Comelles, continuará seu caminho em defesa incondicional das organizações e da vida indígena e da Casa Comum. “Nesses primeiros 24 anos do século XXI, quando um novo milênio se inicia, é inadmissível que a força do dinheiro e a ganância continuem destruindo vidas em todas as suas formas. As esperanças depositadas em um governo eleito que se comprometeu em assegurar os direitos indígenas, especialmente a homologação de seus territórios, foram tão fortes quanto a certeza de que, se forem traídos, a luta e a resistência continuarão, porque todas e todos somos parentes nessa casa Comum”, concluiu Comelles.