Um fantasma chamado marco temporal
Matéria publicada originalmente na edição 463 do jornal Porantim
Veja aqui a edição na íntegra.
A tese do marco temporal é um fantasma que há anos legitima a violência e as violações cometidas contra os povos originários. Esse mecanismo político/jurídico restringe o alcance do direito à demarcação das terras indígenas, vinculando-o à presença física dos povos na terra até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal do país.
Essa condicionante, entretanto, não considera que até 1988 os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não poderiam pleitear seus direitos autonomamente, tampouco leva em conta as atrocidades praticadas contra as comunidades indígenas nas décadas de 1950 a 1970, quando os próprios órgãos de assistência foram responsáveis pelo esbulho e exploração das terras tradicionais. A tese também se contrapõe à teoria do indigenato, que sustenta que o direito dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas é originário, anterior à criação do Estado brasileiro, cabendo a este apenas demarcar e declarar os limites territoriais.
Diante desse cenário, o Supremo Tribunal Federal (STF) sepultou esse espectro no dia 27 de setembro de 2023, ao concluir julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365 – que trata das demarcações de terras – estabelecendo que o marco temporal é inconstitucional. Contudo, esse fantasma ressurge com a promulgação da Lei 14.701/2023 pelo Senado Federal, em 28 de dezembro, durante o recesso legislativo.
Durante sua tramitação no Senado, a Lei 14.701/2023, anteriormente conhecida como Projeto de Lei (PL) 2903/2023, foi alvo de vetos do presidente Lula, mas o Congresso, posteriormente, derrubou a maioria desses vetos. Antes disso, quando estava na Câmara Federal, o projeto era denominado PL 490/2007. Ao longo dos 16 anos em que assombrou as comunidades tradicionais, incorporou mais de uma dezena de outros projetos, que foram apensados a ele e o transformaram num verdadeiro pacote anti-indígena.
Portanto, apesar da vitória no STF, o espectro do marco temporal continua a rondar os povos originários devido à vigência da Lei 14.701/2023. Ou seja, mesmo sendo claramente inconstitucional, a validade da “lei do marco temporal” só será suspensa após ser declarada inconstitucional pela Suprema Corte.
Enquanto isso não ocorre, estando em vigor, todas as ações indigenistas do Estado ficam condicionadas a ela, impondo sérias consequências para os povos indígenas, como as paralisações dos processos demarcatórios, a manutenção de diversas comunidades em situação de vulnerabilidade extrema e o acirramento dos conflitos nos territórios, com risco iminente de desalojamentos e ataques contra comunidades.
A intenção da grande maioria do Congresso Nacional, claramente anti-indigena, é justamente interromper as demarcações de terras indígenas e permitir a exploração predatória de áreas já demarcadas por grandes grupos econômicos, especialmente os ligados ao agronegócio e à mineração. Esses grupos exercem uma forte influência sobre o Congresso Nacional e têm se mobilizado ao longo dos anos para que o fantasma do marco temporal permaneça assombrando as políticas de demarcação e os direitos dos povos originários.
Por outro lado, é crucial destacar que a ementa do julgamento de repercussão geral no STF enfatizou o reconhecimento da Suprema Corte de que os direitos assegurados aos povos indígenas nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal são considerados direitos fundamentais, categorizados como cláusulas pétreas. Isso implica que esses artigos não estão sujeitos a alterações, garantindo assim a proteção dos direitos indígenas.
Entretanto, embora o STF tenha reconhecido os direitos fundamentais dos povos originários, é na esfera política que esses entendimentos se consolidam, haja vista a lei do marco temporal, que subverteu os referidos artigos da Constituição Federal e subjugou a Carta Magna de nosso país. As ameaças enfrentadas pelos povos indígenas persistem, mesmo após conquistas judiciais importantes.
Em suma, enquanto a Lei 14.701 vigora, os povos indígenas têm seus direitos violados e seus territórios estão em risco. Isso significa que, a depender da intenção dos ruralistas e suas bancadas no Congresso, a discussão sobre a tese do marco temporal ainda pode perdurar e obrigar o movimento indígena a muita resistência.
Portanto, é essencial que os povos indígenas mantenham uma mobilização constante em defesa de seus direitos constitucionais, acirrando a luta pela declaração de inconstitucionalidade da Lei 14.701 e preparando-se para enfrentar futuras investidas que, sem dúvida, não demorarão a surgir. O que se avizinha, pelo que se sabe da atual composição no Congresso Nacional, é mais tensão entre os poderes e a previsível tentativa de manter as demarcações paralisadas e os povos sem acesso a seus territórios.
Das esferas de poder, em especial do Judiciário neste momento, espera-se que prevaleça a celeridade, atrelada à manutenção da integridade do texto constitucional, adotando-o como a única solução viável para a proteção dos direitos dos povos indígenas e a garantia da justiça. É imperativo que se reconheça a importância de respeitar os direitos fundamentais dos povos originários, preservando não apenas sua história e cultura, mas também os territórios tradicionais como importantes ferramentas de conservação ambiental.