Nota de memória e solidariedade pelo Cacique Merong Kamakã
“Fomos guiados até aqui pelo Grande Espírito”, relatava Merong, que marcou a todos nós com sua força, alegria, espiritualidade e principalmente resistência
O Conselho Indigenista Missionário, (Cimi) em especial o Cimi Regional Leste, se solidariza com todos os familiares e amigos do Cacique Merong Kamakã (Walasse Santos de Souza), que na manhã desta segunda-feira (4) foi encontrado desacordado, na retomada em que liderava no município de Brumadinho, em Minas Gerais. Segundo informações que nos foram repassadas pelo povo, o Cacique Merong foi socorrido, mas não resistiu e veio a falecer.
Merong nasceu em 31 de agosto de 1986. Com 37 anos, deixa dois filhos. Desde cedo esteve envolvido na luta em defesa de seu povo. O Cimi Regional Leste acompanhou sua trajetória desde a adolescência, quando participava dos processos formativos com a sua inquietude constante, sempre tendo uma visão ampla de que não bastava lutar apenas na defesa de seu povo Kamakã-Mongoió. Nesse sentido, se envolveu e contribuiu com a luta dos Xokleng, Kaingang, Guarani, Xukuru-Kariri, Pataxó, Pataxó Hã-Hã-Hãe, entre outros. Construiu referência em várias regiões do Brasil na luta por garantia e defesa dos territórios indígenas.
Junto com sua mãe Katorã e com orientações dos Encantados, em outubro de 2021 ocuparam um espaço para concretizarem o sonho de ter sua terra sagrada e realizar seu projeto de vida, mas logo percebeu o enorme desafio que teria para concretizar o projeto: a área por eles retomadas, na fazenda Córrego da Areia, em Brumadinho (MG), foi reivindicada pela mineradora Vale, que se tornou uma das suas principais inimigas. Por várias vezes teve que fazer enfrentamento direto para garantir o seu “pedaço de chão”.
Merong, por diversas vezes, relembrava que “nós, povos indígenas, fomos guiados até aqui pelo Grande Espírito para ocupar e cuidar dessas terras. E também para alertar a sociedade que alguns ainda estão dormindo e não viram o grande estrago que a mineração está causando”.
Atravessado por ordens de despejos, assédios e pressões, o cacique Merong Kamakã resistiu bravamente às ameaças dos grandes empreendimentos, que muitas vezes se encontravam aliados ao Estado. Merong chegou a relatar para o Brasil de Fato, em 2022, que “frequentemente estamos tendo a presença da PM, juntamente com a segurança da Vale, fazendo pressão psicológica pra gente se retirar da nossa aldeia”. Apesar dos desafios com as mineradoras, essa grande liderança se dedicou a fazer ecoar sua luta pelo Território Sagrado e seu desejo para que os povos indígenas do Brasil escutem as ancestralidades e cuidem da terra.
Merong era uma liderança jovem, com muitos sonhos ainda a viver e a realizar. Mas nos últimos períodos temos visto, com imensa tristeza, muitas vidas ceifadas a partir dos impactos na saúde mental dos povos indígenas, de forma intensa nas lideranças e na juventude.
Segundo dados de suicídios divulgados pelo Cimi, no relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2022, a média de suicídios indígenas é três vezes maior que a população em geral, na medida também que avançam os processos de violências contra os territórios, em especial os ainda não demarcado ou regularizados.
Apesar dos sinais de suicídio, “parentes e amigos levantam a suspeita de um possível assassinato, considerando que nos últimos dias ele planejava ampliar a área de sua retomada, e por ser uma área dominada por uma grande mineradora, ele corria muito risco de morte”, como pontua a nota emitida nas redes sociais pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
É necessário que todas as possibilidades sejam investigadas com rigor e seriedade por parte do poder público. Mas sem perder de vista que os suicídios indígenas também devem ser vistos como um processo de violência contra os povos originários enquanto um projeto de extermínio.
Os povos indígenas não estão se suicidando, estão sendo suicidados. Pois antes da morte acontecer, a sociedade já os matou muito antes e por fragmentos. Os matam quando negam o território, quando negam a possibilidade de viver a espiritualidade, os matam quando negam seus direitos, quando os ameaçam e os constrangem, os matam quando roubam a possibilidade de ser sujeito e coletivo. Os matam quando roubam a esperança de uma terra sem males.
No estado de Minas Gerais tem crescido de forma alarmante as incidências de suicídios e tentativas de suicídios entre diversos povos indígenas. Essa realidade não deve ser enxergada de forma isolada ou aleatória, existe um projeto de etnocídio em curso desde 1500 e criaram-se novas estratégias de extermínios. É preciso um olhar cuidadoso sobre o que nos tira uma grande liderança como Merong, e que também nos tirou diversas lideranças indígenas, entre homens e mulheres, nessa terra que é das Minas, mas também dos Gerais.
É preciso olhar com cuidado para o contexto psicossocial, político, econômico, cultural e territorial em que esses povos estão inseridos. Quem são os inimigos que os atacam, visíveis e invisíveis, como atacam e por quê atacam.
“A partida repentina do cacique Merong nos pegou de surpresa e deixou um vazio imensurável. Ele não era apenas uma liderança que lutava pelo resgate da cultura de seu povo e pela garantia do território, mas também era um pai, filho e tio exemplar, além de dedicado à família e incansável na defesa do território. Seu legado permanecerá vivo através dos valores que ele defendia, como o respeito à natureza, o resgate da cultura e a preocupação com o futuro das próximas gerações”, com essa mensagem de Rory Weslley, em nome da equipe metropolitana do Cimi Regional Leste, que acompanha diretamente o povo Kamakã Mongoió, que todo o regional se despede, com dor e saudade, do Merong Kamakã Mongoió.
Das equipes da Bahia às equipes de Minas Gerais, todos foram em diversos momentos marcados por sua força, alegria, espiritualidade e principalmente resistência. Fica sua memória viva, a esperança e apoio ao povo Kamakã Mongoió para conquistar seu Território Sagrado. Que através da luta todos os povos alcancem o Bem Viver, agora Encantado também por Merong. Que o Grande Espírito siga a guiar o cacique Merong e os povos indígenas! Como ele sempre brincava, esperamos, Merong, que você esteja “firme que nem paçoca e tranquilo como um grilo”!
Minas Gerais, 05 de março de 2024
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Regional Leste