Quintais invadidos pela soja: agronegócio alarga fronteira sobre terras indígenas de Rondônia
Com a pressão para abertura e expansão de novas fronteiras agrícolas na região, cresce a cerceamento sobre territórios dos povos indígenas do estado de Rondônia, que hoje se deparam com a soja na porta de suas casas
Há cerca de um ano, o povo Oro Wari das Terras Indígenas (TIs) Igarapé Lage e Igarapé Ribeirão convive com a soja quase que a adentrar o quintal de suas casas. O avanço paulatino do grão sobre esses territórios indígenas, ambos localizadas entre os municípios de Guajará Mirim e Nova Mamoré, em Rondônia, tem sido empreendido de forma sorrateira e ardilosa, pois é aos poucos e por suas margens que grandes empreendimentos agrícolas invadem a paisagem do lugar.
As plantações, antes inexistentes na escala em que vem sendo cultivadas hoje, tomam lugar de áreas de pastagem ocupadas, até pouco tempo atrás, por algumas centenas de cabeças de gado. No entorno, ainda dá para encontrar algumas dessas fazendas em que o gado se espreme para ficar debaixo das pequenas e apertadas sombras feitas pelas copas dos pés de babaçu, que ainda resistem em existir em meio ao pasto.
“Essa parte aqui era só capim, aí a gente via também os pés de babaçu. Hoje, a gente não vê mais nada”, lembra Carlos Oro Waram Xijein, liderança e professor da aldeia Lage Novo, uma das dez que integram a TI Igarapé Lage. O nada ao qual Carlos se refere é a soja que, ao seu ver, esteriliza a paisagem da floresta ao vazio do desmatamento, que não só se avizinha de seu território, mas o desmata e invade.
“Tem partes [do território] que a soja entrou mais de 60 metros”, conta Carlos mostrando o limite justo que a plantação faz com a terra indígena no local onde é sua entrada. “Neste lugar onde nós estamos tinha um portão que os parentes colocaram aqui para não entrar as pessoas no tempo da pandemia. No ano passado [em 2022] veio a soja e o pessoal da soja tirou esses portões e não avisou a gente”.
Segundo a liderança da aldeia Lage Novo, o plantio do grão ultrapassou muito o limite da TI Igarapé Lage, demarcada em 1981 com 107.321 hectares. Um avanço que se revela progressivo e que se apresenta, aos olhos das comunidades Oro Wari, “de pouquinho em pouquinho”, tal como se evidenciam as taxas de desmatamento obtidas via satélite pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
Os dados registrados pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes) do INPE indicam um aumento significativo de áreas desmatadas na TI Igarapé Lage entre os anos de 2022 e 2023, período que coincide com o avanço da soja relatado pelos indígenas.
Nesse período, o desmatamento sextuplicou na TI Igarapé Lage. Os índices saltaram de 1,01 km² em 2022 para 6,32 km² em 2023, uma taxa diminuta se comparada com os dados anuais de outras áreas indígenas que sofrem há mais tempo com a invasão de terras. Mesmo assim, o número é expressivo, o maior desde 2008, quando as taxas de desmatamento da terra indígena beiravam a zero – 0,64 km² naquele ano. Hoje, a TI Igarapé Lage possui um total de 16,98 km² de área desmatada.
De pouquinho em pouquinho
Na aldeia Ribeirão, que integra uma das cinco aldeias da TI Igarapé Ribeirão, a soja avança de maneira ainda mais furtiva. “Os grandes fazendeiros estão ultrapassando de 10 a 20 metros de distância para dentro da terra indígena. Ela não está 100% invadida, mas a gente vê que ela [a terra indígena] está começando a ser invadida pela lateral”, afirma Francisco Oro Mon, liderança da aldeia Ribeirão, sobre a incipiente, mas preocupante ameaça invasora.
Hoje, a TI Igarapé Ribeirão apresenta, em sua totalidade, uma perda de 2,92 km² de floresta nativa. Segundo dados do Prodes, uma das terras indígenas com menor índice de desmatamento, 0,07% de sua área total. Mas essa é uma realidade que pode mudar caso o monocultivo da soja siga avançando, uma vez que os fazendeiros se sentem cada vez mais autorizados a entrar e invadir terras indígenas.
“A gente está vendo o que está acontecendo, que os limites da terra indígena não são mais aqueles que foram no começo, quando foi demarcada. A gente está perdendo, de pouquinho em pouquinho, esses limites, cada vez mais se perde um pouquinho de terra. A gente vê que diminuiu a terra indígena”, conta Francisco ao se referir aos limites invadidos da TI Igarapé Ribeirão, demarcada em 1982 com 48 mil hectares.
Apesar de recente e ainda em curso, o avanço das plantações de soja sobre as terras indígenas no estado de Rondônia preocupa as comunidades Oro Wari, que embora nunca tenham convivido tão de perto com a presença da soja, conhecem e tem consciência das consequências e dos estragos produzidos pela monocultura predatória, sendo a invasão apenas uma delas.
“A gente não sabe se amanhã ou depois de amanhã [a soja] pode avançar mais. Eu tenho preocupação com isso porque está aumentando o desmatamento em nosso território” explica Carlos, que assim como Valdito Oro Eo, cacique da aldeia Lage Velho, também da TI Igarapé Lage, teme os impactos dessa aproximação.
“Eu nunca pensei que um dia a soja pudesse chegar aqui. Eu escutava falar de soja para lá, em Mato Grosso, de Cuiabá para lá”, conta Valdito, para quem a soja era uma realidade distante, restrita aos noticiários de TV e manchetes de jornais. “Mas de repente [a soja] aparece bem na porta da casa”, pondera Jessé Oro Waram, morador da aldeia Lage Novo.
Vem a soja, chega o veneno
Mas não é só a invasão e o desmatamento que preocupam as lideranças Oro Wari das TIs Igarapé Lage e Igarapé Ribeirão. Com a soja, vem o “veneno” os agrotóxicos comumente utilizados nesse tipo de cultura. E com ele, o risco da contaminação, hoje, uma das maiores preocupações do povo Oro Wari.
No trajeto às aldeias, fazendas com grandes pavilhões e aviões aportados em pistas de pouso despontam em meio ao mar verde do grão. No céu, os monomotores cruzam o horizonte a dispersar no ar o “veneno” que ameaça a vida do povo Oro Wari e a integridade dos rios e florestas que habitam.
Durante incursão por entre essas terras, realizada em dezembro de 2023 para produção desta reportagem, pode-se ver alguns desses aviões sobrevoar lavouras de soja que distam poucos quilômetros das aldeias. O rastro da fumaça tóxica deixado pelos aviões se alastra com os ventos e chuvas, que embora estivessem escassas na época em que lá estivemos – dada a seca que afligia a região amazônica – se fez abundante no ano anterior, em 2022.
“No ano passado [2022] choveu bastante e levou esses venenos para os igarapés que desaguam no rio Laje”, explica Carlos que já não mais confia nos alimentos e peixes retirados do principal rio da região, cujo percurso atravessa o território Igarapé Lage que abriga seu povo. Hoje, inclusive, os peixes não são mais encontrados na quantidade e frequência de costume.
Jessé, em uma de suas últimas pescarias, se assustou com tempo que levou para pescar um peixe. “Era final de semana, eu ia dar uma pescada e queria pegar pelo menos cinco traíras. Mas hoje para pescar está mais demorado. Você leva uma, duas horas para pegar pelo menos uma traíra. Antes não, você jogava [a isca] e pegava que nem piaba”, conta a liderança ao lembrar da fartura que, antes da chegada da soja, abundava no rio.
O aspecto do rio Komi-Memen, nome que tradicionalmente utilizam para se referir ao rio Lage, também tem mudado com a pulverização de agrotóxicos nas proximidades. “É muito veneno”, a ponto de deixar o rio igual “leite”, relata Francisco Oro Waran, liderança da aldeia Lage Velho e, hoje, vereador (PSB) pelo município de Guajará Mirim.
“Isso é uma contaminação que veio da soja. Os grandes fazendeiros passaram veneno e esse veneno caiu no rio Komi-Memen”, que guarda em suas águas, para além de um valor material, dado que são nelas que se banham e extraem seus alimentos, uma importância espiritual para o povo Oro Wari.
“Ali vivem os nossos ancestrais, os que já se foram. Meus pais, meus avôs me contaram que a água é uma casa para nós”, explica Francisco Oro Waran. Não à toa, se sentem invadidos com a soja tomando o leito, as margens e as profundezas do rio que lhe são morada. Foi movido por esse sentimento que Francisco Oro Waran propôs e aprovou, em 2023, em sua legislatura, a lei 2.579/2023, uma lei municipal que busca garantir, pela primeira vez no Brasil, os direitos legais de um rio.
A medida inédita reconhece ao rio Lage, que desemboca no rio Madeira e, por sua vez, no rio Amazonas, o direito a existir em seu “fluxo natural” e em “condições físico-químicas adequadas ao seu equilíbrio ecológico”. Em seu conteúdo admite ainda as recentes ameaças sofridas pelo rio ao considerar “as invasões de grileiros, desmatamento e avanço de monoculturas” na região.
Nessas circunstâncias, a iniciativa de Francisco, legitimada pela comunidade Oro Wari, se mostra uma reação ao contexto de invasões e contaminações produzidas pelo avanço do agronegócio, a seu ver, uma forma de lutar pela manutenção de sua casa. “O veneno já chegou, os peixes estão morrendo, nossas matas estão desaparecendo e os nossos alimentos nativos estão cada vez mais desmatados. Então quem vai lutar por nós? Somos nós mesmos. E hoje nós temos essa lei”, considera o parlamentar indígena.