26/02/2024

Amacro: o voucher para invasão

Somente em 2022, a “nova fronteira do desmatamento na Amazônia” foi responsável por 36% do desmatamento na Amazônia Legal

Dentro da TI Karipuna é possível ver a placa fincada pelos invasores com os dizeres “Por favor, não mexa na minha madeira”. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Por Maiara Dourado, da Assessoria de Comunicação do Cimi – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 462 DO JORNAL PORANTIM

A chegada da soja na região de Rondônia e o avanço da monocultura sobre as terras Oro Wari decorrem de um processo de regionalização econômica que busca ampliar a produção agropecuária na tríplice fronteira dos estados do Acre, Amazonas e Rondônia. A Amacro – sigla formada pelas iniciais dos três estados e nome pelo qual convencionou-se chamar a Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira (ZDS Abunã-Madeira) – foi criada em 2021, sob a guarda do governo de Jair Bolsonaro, com o intuito, como consta em suas publicações oficiais, de “conciliar sustentabilidade e desenvolvimento da Amazônia”.

Contudo, o projeto que estampa em seu nome o chamariz do “desenvolvimento sustentável”, esconde em sua estrutura o avesso do que a palavra assente. Isso porque suas ideias de sustentabilidade se realizam por meio de ações desenvolvimentistas baseadas no desmatamento das florestas, na liberação de terras públicas e áreas protegidas e na ampliação da infraestrutura para o desenvolvimento do agronegócio.

Considerada “a nova fronteira do desmatamento na Amazônia”, a Amacro foi responsável, segundo levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), só em 2022, por 36% do desmatamento na Amazônia Legal. Os dados, publicados em abril do ano passado, chamam a atenção ainda para os riscos que se impõem sobre unidades de conservação e terras indígenas, que apesar de responderem por apenas 6% de toda a área desmatada na Amazônia Legal, se tornam alvo crescente da nova fronteira agrícola que busca se expandir sobre a região amazônica.

A Amacro congrega em sua extensão 32 municípios dos estados do Acre, Amazonas e Rondônia e se sobrepõem a 93 unidades de conservação e a 49 terras indígenas. Um total de 24,4 milhões de hectares de terra que parecem atiçar a cobiça de invasores e grileiros que vêem na terra pública, um vazio a se apropriar e colonizar. Para o professor Afonso Chagas do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), que estuda a regionalização da Amacro desde sua criação, “a invasão é a grande investida da Amacro sobre territórios indígenas e unidades de conservação”, principalmente no estado de Rondônia.

“Há todo um desmonte no entorno das áreas indígenas que pode se dar tanto pela aprovação de leis, ou tentativas de aprovação de leis, como pela leniência do Estado em não fazer fiscalização e não regularizar e destinar corretamente essas áreas”, explica. De acordo com o Imazon, na Amazônia há 143 milhões de hectares de terra sem destinação fundiária, dos quais 43% (ou seja, 61 milhões de hectares) possuem prioridade para conservação.

O vestígio da invasão deixado por uma casa, hoje desativada, construída, sem embaraços, dentro da terra indígena. Foto: Maiara Dourado/Cimi

A invasão, nesses casos, funciona como “uma barreira de contenção para que novas áreas públicas que estão em processo de reconhecimento não venham a ser reconhecidas. É uma espécie de voucher, uma autorização não institucionalizada para que os intermediários [madeireiros, grileiros] possam invadir terras indígenas e se apropriar delas a partir das suas margens”, explica Chagas.

O relato do povo Oro Wari das TIs Igarapé Lage e Igarapé Ribeirão denota bem o início desse processo, uma vez que é pelo entorno e pelas margens de suas terras que a invasão do agronegócio vem, pouco a pouco, tomando impulso. A já conhecida vizinhança da pecuária e a formação de grandes áreas de pastagens, hoje substituída pela soja, próximo aos territórios Oro Wari revelam também um importante evento da investida da Amacro sobre suas terras.

Em um processo de consolidação dessas fronteiras agrícolas, a pecuária é a atividade que “mantém a fronteira aberta, porque a pecuária aqui [em Rondônia] exige muita terra desmatada, e terras públicas ainda não homologadas ou não destinadas, para forçar, de forma clandestina ou ilícita, os próprios órgãos [do Estado] a contornar essa situação. É uma forma de pressionar o governo federal a regularizar, ilegalmente, áreas apropriadas”, explica o professor da Unir.

Mas não é só clandestinamente que o agronegócio arranca sobre as terras indígenas. Desde 2021, a Assembleia Legislativa e o Governo estadual de Rondônia têm se empenhado, mais expressivamente, para que o caminho das leis abra espaço para criação de novas fronteiras agrícolas na região amazônica.

Para isso, tem se amparado em medidas legais – e não legais – para descaracterizar e desafetar áreas protegidas como a Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná, que em 2021, foi alvo de um projeto de lei que buscava diminuir radicalmente seus limites. O projeto, proposto pelo governador do estado, Marcos Rocha (União Brasil), recomendava uma redução de 78% de sua área, o que implicaria em uma diminuição de 197 mil hectares para 45 mil hectares.

A lei chegou a ser sancionada pelo governador de Rondônia, mas o Ministério Público Federal (MPF) barrou e o Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO) julgou por sua inconstitucionalidade. A decisão, contudo, não foi suficiente para desacelerar o processo de invasão na reserva, hoje, tomada, quase em sua totalidade, por gado e pasto. Segundo a InfoAmazonia, com base nos dados da Plataforma MapBiomas, 74% da reserva está ocupada pela atividade agropecuária, o que levou à consequente redução da área de floresta em 25% de sua área total.

Um lugar sem paz

Além da Resex Jaci-Paraná e dos territórios Oro Wari, uma outra área protegida se vê ameaçada pelo cenário de devastação consolidado pela Amacro. Localizada do outro lado da margem do rio Jaci Paraná, cujo o fluxo divide seu território com a área da Resex, encontra-se o Terra Indígena Karipuna, cujo território “hoje, está todo ameaçado, todo mexido” relata André Karipuna, cacique da TI Karipuna, que explica que “aquilo que não foi queimado, está queimado, aquilo que não foi derrubado, está derrubado”.

“Aquilo que não foi queimado, está queimado, aquilo que não foi derrubado, está derrubado”, diz André Karipuna, cacique da TI Karipuna. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Em 2022, a TI Karipuna, localizada no município de Jaci-Paraná, em Rondônia, foi considerada a TI mais desmatada dentre as 69 terras indígenas localizadas no entorno da rodovia BR-319, que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM).

Os dados de 2022 produzidos pelo relatório do Observatório da BR-319, demonstraram que o projeto de reconstrução da rodovia, retomado na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e que integra parte do pacote de destruição da Amacro, é um dos principais fatores do crescente desmatamento da floresta amazônica.

Para o professor Afonso Chagas, a destruição se deve a especulação fundiária que se cria no entorno dessas rodovias, onde há um importante número de terras indígenas e unidades de conservação sobre a mira da cobiça do invasor. “Hoje, as rodovias, as estradas são a sinalização da morte para os territórios indígenas. Ou seja, todas as desgraças chegam pelas estradas e não mais pelos rios”, considera.

No caso do povo Karipuna, há anos os infortúnios da invasão se acumulam no território. Desde 2017, a comunidade denuncia, mês a mês, as invasões sofridas. Mas, nem mesmo as insistentes denúncias tem conseguido frear o avanço das invasões sobre território Karipuna, hoje tomado por madeireiros e grileiros de terras.

A implementação de fiscalizações periódicas no território tem ajudado, mas não chega a constranger os invasores. A medida determinada judicialmente após ingresso de uma Ação Civil Pública (ACP), em 2018, pelo Ministério Público Federal (MPF) de Rondônia, obrigou, no ano passado, a União, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o estado de Rondônia a implantar um plano de ações continuadas para proteção territorial da TI Karipuna. A decisão ordenava fiscalizações com uma frequência mínima de dez dias e com um número não inferior a 15 pessoas.

Durante a visita da reportagem à TI, em dezembro do ano passado, um grupo de agentes da Funai e do Batalhão da Polícia Militar Ambiental realizava diligência na área. Na ocasião, prenderam dois homens que realizavam pesca ilegal, fazendo o uso de rede, o que durante a piracema, período de reprodução e migração dos peixes, é proibido. Não mais que cinco agentes faziam a operação, menos da metade do que foi determinado pela decisão derivada da ACP.

Katicá Karipuna há anos sofre com os infortúnios da invasão que se acumulam no território. Foto: Maiara Dourado/Cimi

O plano, nesse sentido, tem se mostrado insuficiente mediante a persistência das invasões e a insolência dos madeireiros, que não só invadem e desrespeitam os limites territoriais indígenas, como os afrontam agindo como dono das terras. Ao percorrer alguns quilômetros dentro da TI Karipuna a partir de sua entrada, é possível ver a placa fincada pelos invasores com os dizeres “Por favor, não mexa na minha madeira”, bem como o vestígio da invasão deixado por uma casa, hoje desativada, construída, sem embaraços, dentro da terra indígena.

A afronta dos invasores somadas às ações esporádicas e espaçadas da Funai e Ibama junto as forças policiais garantem a continuidade das ações criminosas. Para André Karipuna, cacique da TI, “a Funai está fazendo o que pode, porém, não é o suficiente, porque tem muito grileiro, tem muito madeireiro, e a terra é muito grande, e a equipe da Funai é pequena, a equipe de fiscalização é muito pequena. Tem que ter recurso, e eles estão sem recurso suficiente para fazer o trabalho”, esclarece.

Para os Karipuna, o problema das invasões só será resolvido com uma medida de fiscalização permanente por meio da criação de uma base de proteção territorial fixada na terra indígena, uma vez que esse é um problema que se estende desde antes de sua demarcação, homologada em 1998 com 153 mil hectares. Durante o processo de demarcação da TI Karipuna, 40 mil ha da área reivindicada pelo povo ficou de fora. “Segundo o governo, [o corte] para evitar a grilagem de terra, porque naquele tempo já tinha invasão, então cortaria a nossa terra para dar para os pequenos agricultores, para os fazendeiros, para minimizar [a grilagem]. Mas isso não aconteceu. Foi aí que começaram as invasões neste território, neste pedaço que hoje a gente está. Isso fortaleceu os grileiros”, relata André.

Durante os anos de governo Bolsonaro, os invasores se empoderaram ainda mais com a implementação da Amacro. Segundo dados do Prodes, mais de 60% da perda florestal da terra indígena Karipuna – isto é, 43,27 km² dos 70,93 km² de área total desmatada – ocorreram entre 2019 e 2022, período em que esteve vigente a gestão anti-índigena do ex-presidente.

Contudo, ainda que com dados de desmatamento inferiores ao período de governo bolsonarista – em 2023 o desmatamento em terra Karipuna caiu de 17,41 km² em 2022 para 5,34km² em 2023 – os problemas de proteção e fiscalização territorial seguem ainda curso, neste governo. Isso porque “o desmonte dos órgãos ambientais permanece, o desmonte dos órgãos de regularização fundiária permanece e há pouco ou baixo controle de fiscalização ambiental”, o que tem gerado um verdadeiro caos fundiário em Rondônia, atesta Chagas.

Nesse sentido, “infelizmente, nós não tivemos uma prática do Estado brasileiro no ano de 2023 que nos desse segurança suficiente para afirmar que esses processos de regionalizações da Amacro pudessem ser contidos. Pelo contrário, todos os projetos de infraestrutura pensados pela Amacro continuam em vigor”, afirma o professor.

O fato é que para o povo Karipuna, independente de governo, as invasões nunca cessaram. “Nesse tempo todo, a gente nunca teve paz. Paz, que eu digo, é estar sossegado, ter sua liberdade. Isso nós nunca tivemos”, constata André, que mesmo “cansado de mexer com tanto papel” segue a denunciar e a reivindicar a proteção de seu território, mas principalmente esperançar pelo tão almejado sossego de estar em casa.

Em janeiro deste ano, os indígenas localizaram a abertura de uma clareira nos arredores da estrada que dá acesso à cidade, impedindo a livre circulação dos Karipuna que querem entrar e sair de seu território. A invasão foi denunciada pelas lideranças da aldeia, que na busca por sossego em suas terras, tem realizado um trabalho de monitoramento próprio, por meio de drones, a fim de identificar focos de desmatamento no território. Foi a forma que os indígenas encontraram de “não deixar a porta aberta para os inimigos”.

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