44ª Assembleia do Cimi Regional Norte I: “os desafios não são poucos nem pequenos, mas a causa indígena nos dignifica”
Com a participação das missionárias, missionários, lideranças indígenas, religiosas, religiosos, bispos e parceiros, a 44ª Assembleia do Cimi Norte I conclui que o esperançar na resistência é o caminho a seguir
“Nós não vivemos sem causas. São as causas que apontam o nosso caminho, são as causas que nos animam, são as causas que nos fazem sonhar, são as causas que nos fazem servir, permanecer na causa indígena. A causa indígena é uma causa nobre, é uma causa que nos dignifica, porque os indígenas nos dignificam”.
Com essa mensagem, o cardeal dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), se dirigiu aos missionários e missionárias, durante a 44ª Assembleia do Cimi Regional Norte I, realizada nos dias 02 a 04 de fevereiro, no Centro de Formação Xare, em Manaus.
“Nós não vivemos sem causas. São as causas que apontam o nosso caminho”
A assembleia teve como tema “A luta por territórios livres: Avanços e retrocessos na defesa dos direitos dos povos indígenas”, e como lema: “A terra geme em dores de parto” (Rm 8,22). Temas que orientam a caminhada missionária, proporcionando reflexões sobre a realidade que os povos indígenas vivem, as formas e estratégias de ataques aos seus territórios e suas vidas e ajudando a definir as ações a serem realizadas nessa caminhada de defesa de seus direitos.
Os desafios não são poucos nem pequenos, especialmente na região amazônica pelas grandes dimensões geográficas e fortes investidas dos poderes econômico e político aos territórios indígenas. Sobre esses desafios, Dom Leonardo alerta: “para manter o ânimo e o desejo na causa indígena é importante manter o diálogo com os povos”.
“Para manter o ânimo e o desejo na causa indígena é importante manter o diálogo com os povos”
“Eu penso que nós, como Cimi, temos que nos organizar, manter um diálogo muito grande com os povos indígenas para enfrentar essas questões [de ataques] que viram mineração, desmatamento, pesca predatória, uma verdadeira invasão”, afirmou o cardeal, alertando para a situação que se agrava com o apoio de um “Congresso Nacional dos mais retrógrados” que o Brasil já teve. Um parlamento que não só não dialoga, como não considera os povos indígenas e para quem ” o indígena não tem valor, não tem dignidade”, denuncia.
Por outro lado, considera dom Leonardo, a igreja respeita e não desiste da causa indígena. “Nós sabemos de sua dignidade e não temos receio de apoiá-los”, afirma, lembrando Papa Francisco e as definições de uma igreja cada vez mais comprometida. “O Papa Francisco tem nos ajudado a abrir a compreensão, o horizonte de sermos uma Igreja cada vez mais atenta às questões que envolvem a pobreza, o meio ambiente e os indígenas”, enaltece.
“Eu penso que nós, como Cimi, temos que nos organizar, manter um diálogo muito grande com os povos indígenas para enfrentar essas questões”
Dom Zenildo Lima da Silva, bispo auxiliar da arquidiocese de Manaus, compartilhou a opinião de Dom Leonardo e disse que o assumir gradativo da igreja por essas questões é uma renovação dos seus caminhos, com aprendizados e atitudes adquiridos na caminhada. “Eu vejo que [a renovação] é uma tarefa que se impõe sobre toda a Igreja”, aponta.
Com relação à questão indígena, Dom Zenildo afirma que as atitudes da sociedade não revelam apenas interesses econômicos, mas uma incapacidade de conviver com a diversidade de povos.
“Eu vejo que [a renovação] é uma tarefa que se impõe sobre toda a Igreja”
“Além dos interesses econômicos, que são sempre caminhos de ameaça às populações, os interesses de território, [percebemos] hoje uma incapacidade de convivência com a diversidade e a rejeição às populações indígenas que vão além desses processos econômicos e de exploração”, explica, prenunciando que a renovação indica caminhos de (re)humanização.
“Nós temos uma linha de serviço que é um resgate de humanização, que, na falta de tudo, aparece como amizade social. Isso é uma tarefa que se coloca para as igrejas locais e um suporte que as guias locais podem dar para o semear de reconstruir”, anuncia.
“Nós temos uma linha de serviço que é um resgate de humanização, que, na falta de tudo, aparece como amizade social”
O reconstruir está espelhado no caminho da ecologia integral que, na verdade, assim é denominada pela sociedade não indígena para a relação que os indígenas estabelecem com a natureza, explica Dom Leonardo.
“Nós é que denominamos de ecologia integral o que eles [indígenas], simplesmente vivem. Eles simplesmente estão ali e o modo de se relacionarem [com o meio ambiente] é que nós chamamos de uma ecologia integral”, confronta.
“Nós é que denominamos de ecologia integral o que eles [indígenas], simplesmente vivem”
Como uma importante oportunidade de aprendizado com essa forma de compreender e viver a ecologia integral, Dom Leonardo comenta que a interculturalidade experimentada pela igreja junto com os povos indígenas é uma riqueza religiosa e de expressão de um modo de viver. E que a igreja se coloca como “uma casa” para os povos indígenas.
“A cultura expressa um modo de viver, seja na sua arte, artesanato, danças, cantos ou no modo da relação [com o ambiente]. Com isso, nós podemos aprender muito. Nós, como Igreja, devemos construir os espaços necessários onde eles possam se expressar dentro da própria cultura, também espiritualmente, também na fé, também na liturgia. Eles devem se sentir dentro da Igreja Católica, como se sentem em casa. E que saibam que a casa deles não lhes está tirando nada, mas está lhes oferecendo um aprofundamento da própria cultura, assim como Deus se fez nossa cultura em Jesus Cristo”, concluiu.
A voz dos indígenas
Na 44ª Assembleia do Cimi Regional Norte I participaram lideranças indígenas que trouxeram suas contribuições traçando um cenário de problemas, ataques, ameaças e violências vividas em seus territórios. A cada ano que passa, mais adversidades se apresentam em suas vidas.
Dário Yanomami, vice-diretor da Associação Yanomami Hutukara, considerou Assembleia do Cimi um momento em que diferentes povos podem se conhecer, saber das suas realidades e, assim, se amparar e se unir em luta conjunta.
A cada ano que passa, mais adversidades se apresentam em suas vidas
“A gente trouxe alguns problemas que são diferentes dos outros. Na Terra Yanomami tem garimpo. Nos outros tem grileiros, fazendeiros, pescadores de fora, invasores. Todos têm o problema do Estado que não cumpre seu papel de defender. Tem territórios que não estão demarcados e outros que são demarcados, mas são invadidos”, lembra a liderança reforçando que a “coletividade não é luta individual, é preciso unir as forças. O movimento indígena precisa fazer aliança de coletividade e enfrentar os problemas com o estado”.
Da Aldeia Boa Vista, Terra Indígena Caititu, em Lábrea, veio o cacique Sebastião Apurinã, que falou dos descasos que o Estado tem sobre seu povo, especialmente, na ausência de fiscalização para conter as invasões descontroladas em suas terras.
“A gente trouxe alguns problemas que são diferentes dos outros. Na Terra Yanomami tem garimpo. Nos outros tem grileiros, fazendeiros, pescadores de fora, invasores”
“Quando a gente procura o governo, ele vira as costas para a nossa real necessidade. Nossa terra já é demarcada, já é homologada, mas infelizmente é esquecida na parte de fiscalização que compete ao Estado. Não compete a nós, mas fazemos a vigilância da nossa terra. Ao Estado compete fazer a fiscalização”, lamentou, dizendo que suas vidas estão em risco pela omissão do poder público.
O tuxaua Felipe Gabriel Mura, da aldeia Soares, Terra Indígena Soares/Uricurituba, em Autazes, assumiu a liderança há poucos dias. “Na caminhada de luta do meu povo estou há três anos, mas como tuxaua, estou recém-nascido”, disse imprimindo na voz a força e a resistência da juventude em defesa do seu povo.
“Quando a gente procura o governo, ele vira as costas para a nossa real necessidade”
A comunidade de Gabriel vive, atualmente, um dos mais fortes ataques do poder econômico. A mineradora Potássio do Brasil vem implantando em território Mura, seu empreendimento de extração de silvita, principal minério para a produção de potássio, utilizado pelo agronegócio na agricultura de grãos em larga escala.
Desde que chegou na região, há alguns anos, a empresa lançou mão de várias estratégias para receber o licenciamento e se instalar, desconsiderando a existência do povo Mura no território e o protocolo de consulta prévia, livre e informada que os Mura construíram e que faz parte do processo de demarcação do território pela Funai.
A comunidade de Gabriel vive, atualmente, um dos mais fortes ataques do poder econômico
Em 2023, a estratégia da mineradora foi de cooptação de lideranças. “A gente vê lá que as lideranças se corromperam e é uma coisa que a gente tem que tomar cuidado dentro da comunidade, por estarem desejosos do dinheiro que estão dizendo que o empreendimento vai trazer. Está muito difícil essa divisão entre as lideranças”, lamenta o jovem cacique.
A angústia tomou conta dos Mura que não querem que a extração minerária aconteça em seu território. “Fico perguntando se realmente não tem mais jeito, se a gente vai ter que se mudar, se a gente vai realmente morrer, se a gente vai ter que procurar melhorias pros nossos filhos ou se a gente também tem que aderir a esse projeto”, questiona Gabriel, para logo em seguida apostar em soluções.
“Fico perguntando se realmente não tem mais jeito, se a gente vai ter que se mudar”
“Tem que ter conversa, tem que ter diálogo, porque sempre tem aquela conversa de fora e ficamos com dúvidas. Então, esse é o nosso maior impasse, a gente explicar e amenizar as pessoas que ainda assim tem jeito, que não vai ser de qualquer jeito que a empresa vai entrar”, explica com resistência.
Resistente e esperançosa como Gabriel é Marcivânia Paiva Sateré Mawé, presidente da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME), que considera que as mudanças acontecem pela organização e união de todos.
“Tem que ter conversa, tem que ter diálogo, porque sempre tem aquela conversa de fora e ficamos com dúvida”
“Eu acredito que a mudança começa pela organização, pelas organizações locais, pelo trabalho em rede nacional e pelo conhecimento que adquirimos nas assembleias, rodas de conversas, nas próprias vivências do nosso dia a dia. É um aprendizado que a gente tem refletido e chega à conclusão de que somente a nossa participação nos espaços de reflexão e decisão é que se muda a realidade. Conquistar a educação e a saúde que nós queremos, nossa economia, discutir o que os povos indígenas têm e vivenciam”, afirma convicta.
Já Milena Mura, da aldeia Moiray, da Terra Indígena Guapenu do povo Mura, em Autazes, apresentou durante a Assembleia a Organização das Mulheres Indígenas Mura (Omim), que reúne em torno de 200 associadas. As mulheres Mura, organizadas, estão conseguindo mostrar para as comunidades que, sem luta e organização, a Potássio do Brasil vão expropriá-las de seu território. Para isso, explica Milena, tentam enfraquecer a OMIM negando sua representativa.
“Eu acredito que a mudança começa pela organização, pelas organizações locais”
“Fizeram uma carta dizendo que a organização não representava as mulheres Mura daquelas aldeias”, conta Milena, que após a carta convocou a assembleia das mulheres para perguntar se sentiam representadas pela Omim. A resposta não demorou: “com o tempo fomos recebendo pedidos dessas mulheres para integrarem a associação e uma das motivações delas era porque, justamente, esclarecíamos durante os diálogos sobre as consequências da mineração na terra indígena”, relata.
Milena conta que ao serem questionadas sobre os motivos de querer ou não o empreendimento em seu território, as mulheres são claras e firmes: “o mais importante para as mulheres é o território, porque enquanto mulher, enquanto mãe, elas visam sempre o futuro dos filhos, das crianças, das gerações que vêm. Sem território não há vida”, relata, afirmando que as mulheres estão cientes dos problemas que a entrada de grande número de pessoas estranhas no território pode trazer.
“Fizeram uma carta dizendo que a organização não representava as mulheres Mura daquelas aldeias”
A Omim leva a reflexão e o pensamento das mulheres para as comunidades e para os demais grupos indígenas, como os jovens. O diálogo e a organização da OMIM trazem resultados positivos. “Fazemos essa chamativa para podermos conversar. E está dando muito certo, porque as mulheres estão se aproximando da organização, se transformando, e levando suas ideias e opiniões para todos”, conclui.
O judiciário como aliado
A Assembleia contou, também, com discussões jurídicas sobre temas importantes para os povos indígenas e a humanidade. Dentre eles, a função de escuta aos povos indígenas que o Ministério Público Federal (MPF) deve estabelecer, que contou com a participação do procurador do MPF, 3º Oficio, Eduardo Sanches, e os direitos da natureza, com a assessora jurídica do Cimi Regional Norte I, Chantele Teixeira.
O procurador Eduardo Sanches destacou a importância de ouvir o que os indígenas têm a dizer e reivindicar ao MPF. “Nesse processo de escuta, foi muito válido ouvir as lideranças indígenas que trouxeram um monte de problemas: a omissão do Estado, o descaso com as tradições dos povos, tudo isso foi importante para mim como procurador do Ministério Público”, explicou, considerando que o MPF adquire mais propriedade em seus processos ao ouvir de viva voz o que os indígenas têm a dizer sobre as ameaças e violências que sofrem.
“Nesse processo de escuta, foi muito válido ouvir as lideranças indígenas”
“A gente precisa sair do gabinete, temos que ouvir todas as realidades, para se distanciar dessas histórias como meras histórias contadas no papel, saber da realidade vivenciada no dia a dia pelos indígenas, pelas suas lideranças, para que seja transformada em ação do Ministério Público. E para que isso seja feito com cuidado, transformado em concretização no Estado brasileiro desses direitos pleiteados”, admitiu.
No debate sobre os Direitos da Natureza, Chantele Teixeira trouxe a concepção de que “a natureza é um sujeito de direitos, e não um objeto de exploração humana”. Assim, diz Chantele, os direitos da natureza têm “uma relação intrínseca com os direitos dos povos indígenas, na medida que a natureza e o espaço que esses povos se relacionam e se inter-relacionam.
“A natureza é um sujeito de direitos, e não um objeto de exploração humana”
A reprodução física cultural está intrinsecamente ligada ao seu território. Ao reconhecer os direitos territoriais indígenas, o Brasil reconhece uma cosmovisão diferente em relação aos recursos naturais, que não utilitarista, não como mercadoria, mas o meio ambiente como parte de um estilo de vida de um povo”, afirma.Os direitos da natureza incluem o direito à vida, à existência, ao respeito, à regeneração, à identidade e à integridade. Direitos que vêm para proteger a natureza em harmonia com os direitos humanos e das gerações futuras.
Escutar para saber
Durante a Assembleia aconteceram vários momentos de escutar, sentir, partilhar e se fortalecer para continuar a caminhada. Gilmara Fernandes, integrante da coordenação colegiada do Cimi Regional Norte I, disse que os diálogos do encontro estabeleceram linhas para “tirar as prioridades de ação para os dois anos – 2024 e 2025 – por onde o regional deve caminhar”.
A coordenadora reforçou que para traçar as prioridades, um dos principais objetivos da Assembleia foi escutar as lideranças presentes. “Escutar os desafios e avanços que se tem nos territórios e, assim, saber do contexto e da realidade contadas pelas próprias lideranças”, disse, destacando que as invasões nos territórios indígenas do Regional são extremamente fortes e, por isso, estar junto com eles é condição da missão.
Um dos principais objetivos da Assembleia foi escutar as lideranças presentes
A secretária adjunta do Cimi, Ivanilda Santos, lembra que o atual contexto político e socioambiental está mais desfavorável e desafiador do que nunca para os povos indígenas e para as missionárias e missionários do Cimi. Para a secretária, a Assembleia acontece “em um momento forte nesta região cujos povos e territórios vivenciam ameaças várias de invasões de garimpo, pescadores, madeireiros, compensação de carbono, aliciamento de organizações criminosas e avanço do agronegócio”, contextualiza.
O momento é “de partilha, de convivência, de autocuidado, de mística militante e de esperançar junto [com os indígenas] no propósito de apoio aos povos e suas organizações”, lembra a secretária adjunta, desafiando os participantes a “esperançar junto com os povos na resistência somando e acreditando no protagonismo pela manutenção e garantia de direitos que promove a garantia do Bem Viver na harmonia com a Casa Comum”, diz, reforçando que o caminhar deve seguir “ousando ser areia na engrenagem do sistema e esperançando o Bem Conviver dos povos”, conclui.