Defesa dos territórios contra projetos de destruição da Amacro é tema de encontro de lideranças indígenas em Rondônia
O evento reuniu representantes de mais 20 povos do estado de Rondônia, Amazonas e Mato Grosso para discutir os efeitos e as formas de enfrentamento a mais recente frente de expansão do agronegócio, a Amacro
“Não abrir a porta para os nossos inimigos”. Essa foi a mensagem deixada pelas mais de 60 lideranças indígenas do estado de Rondônia, Amazonas e Mato Grosso reunidas no Centro Arquidiocesano de Pastoral (CAP), em Porto Velho, Rondônia, durante o Encontro de Formação de Lideranças, realizados entre os dias 6 e 8 de dezembro.
A atividade, organizada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Rondônia, é um aprofundamento das discussões já iniciadas no Encontro sobre os Impactos da Fronteira Agrícola, de Desmatamento e Mineração na região do Acre, Amazonas e Rondônia, conhecida como Amacro.
A atividade reuniu mais de 60 indígenas do estado de Rondônia, Amazonas e Mato Grosso
O último encontro ocorreu em agosto, também em Porto Velho (RO), onde comunidades indígenas dos três estados foram alertadas sobre as estratégias de avanço do agronegócio e as armadilhas do mercado de carbono que se apresentam sob o disfarce do desenvolvimento sustentável.
Desta vez, mobilizados pelo tema “Defender os territórios dos projetos de destruição-Amacro”, as lideranças buscaram discutir alternativas para enfrentar os já notáveis efeitos predatórios da criação desta zona de desenvolvimento do agronegócio. Desde 2021, quando lançado o projeto da Amacro, os povos desta região vêm sentindo a pressão gerada pela criação da nova fronteira agrícola, que avança principalmente sobre os territórios indígenas dos povos do Acre, sul do Amazonas e norte de Rondônia.
Mobilizados pelo tema “Defender os territórios dos projetos de destruição-Amacro”, as lideranças buscaram discutir alternativas para enfrentar os já notáveis efeitos predatórios da Amacro
Mais de 20 povos participaram do Encontro, dentre eles os Sakyrabiat, Tupinambá, Oro Waran, Oro Mon, Oro Eo, Oro Nao, Apurinã, Tenharim, Kwazá, Aikanã, Kaxarari, Manaindê, Guarasugwe, Cassupá, Kujubin, Puruborá, Warau, Arara, Karitiana, Karipuna, Paumari e Chiquitano.
A juventude também se fez presente e participativa durante os três dias de encontro, o que na visão dos mais velhos é uma forma de manter o movimento indígena forte e motivado frente aos novos desafios colocados por empreendimentos colonizadores como a Amacro, articulados pelo Estado e setores do agronegócio.
Para Mauricélio Kaxarari, jovem liderança de seu povo, estar presente e junto aos caciques e anciões na luta é uma forma de “não deixar pelo caminho” o legado de seus antepassados e, assim, “não deixar tudo ir por água abaixo”, frisou.
Velhos métodos, mesmo objetivo
O encontro contou ainda com a participação de Anastácio Peralta, liderança Guarani Kaiowá, que veio de longe, da terra indígena Panambizinho, em Dourados, Mato Grosso do Sul, para falar da experiência de luta e resistência de seu povo ao agronegócio e à colonização. “Um dos primeiros povos a ser atacado pelos colonizadores”, lembra Anastácio.
Seu relato possibilitou aos participantes ter uma dimensão concreta sobre a forma colonizadora como o agronegócio ameaça se impor sobre a vida e o território dos povos indígenas da região. Para a liderança Guarani e Kaiowá, os métodos utilizados pelas frentes de colonização em curso hoje não são muito diferentes dos utilizados no passado que, apesar das diferenças históricas, seguem perseguindo os mesmos objetivos: a liberação das terras indígenas.
Para a liderança Guarani e Kaiowá, os métodos utilizados pelas frentes de colonização em curso hoje não são muito diferentes das que existiram no passado
“O colonizador fala muita coisa boa para gente, ele tem toda uma estratégia de tirar a gente da terra com boas palavras. Quando o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) chegou na nossa região, eles fizeram oito reservas e depois falou para gente se mudar, desocupar as reservas, que a gente ia ficar rico. Só que a nossa vida não melhorou. Eles só queriam desocupar a terra”, alertou Anastácio ao se referir a forma como o projeto de colonização da Marcha para o Oeste, implementado na década de 1940 por Getúlio Vargas, incidiu sobre as terras do povo Guarani e Kaiowá.
O invasor no quintal de casa
O avanço da soja, as invasões em terras indígenas por meio do garimpo, da madeira e da pesca ilegal, bem como o desmatamento e a cooptação de lideranças foram algumas das preocupações levantadas pelos participantes durante o Encontro.
“Muitos fazendeiros entraram dentro da demarcação e ninguém sabe, até porque não tem placa inteira, nem cerca. O pessoal [os fazendeiros] faz do jeito que dá na cabeça e vai entrando nas terras indígenas”, conta Inácio Cassupá sobre a forma como vem se dando a invasão na aldeia Beijarana, na Terra Indígena (TI) Karitiana, já demarcada.
“Muitos fazendeiros entraram dentro da demarcação e ninguém sabe”
“Eu me lembro que a demarcação era mais adiante, acho que 1 km a mais, mas foi tomado pelos campos dos fazendeiros”, relata a liderança que acompanhou o processo de demarcação do povo Karitiana, um dos mais afetados pelo avanço do agronegócio em Rondônia desde a criação do projeto Amacro, em 2021.
A Terra Indígena Karipuna, também em Rondônia, alvo de invasão e apropriação ilegal de madeira, foi a TI mais desmatada dentre as 69 terras indígenas localizadas no entorno da rodovia BR-319, que liga Porto Velho RO) a Manaus (AM). Os dados de 2022 produzidos pelo relatório do Observatório da BR-319, demonstram que o projeto de reconstrução da rodovia, retomado na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e que integra parte do pacote de destruição da Amacro, é um dos principais fatores do aumento do desmatamento da floresta amazônica.
A Terra Indígena Karipuna,alvo de invasão e apropriação ilegal de madeira, foi a TI mais desmatada
Desde 2015, o povo Karipuna vem denunciando as invasões de madeireiros em seu território. Mesmo assim, “meu território ainda está invadido. E esse clima quente piorou a situação porque aí que os caras [os fazendeiros] botaram fogo para queimar tudo, a derrubada continua” relata André Karipuna, cacique da TI Karipuna.
“Eu estou cansado de mexer com papel. Todas as vezes batendo foto, batendo ponto, entregando para os órgãos e aí fica aquele monte de papel. Vai em Brasília, volta de novo, faz barulho aqui, e nada de sair do papel”, desabafa André aos demais participantes do encontro.
“Meu território ainda está invadido. E esse clima quente piorou a situação porque aí que os caras [os fazendeiros] botaram fogo para queimar tudo”
Apesar do cansaço, André não esmorece e anima os demais a seguir na luta contra a destruição de seus territórios. “Tem que continuar cobrando porque enquanto isso eles [os invasores] estão avançando. O agronegócio está chegando aqui, já chegou e eles não estão pensando nos povos indígena, eles estão pensando no lucro, no dinheiro que eles vão ganhar”, alerta a liderança.
O cerceamento do agronegócio, do garimpo e do comércio ilegal de madeira tem causado prejuízos irreparáveis aos povos indígenas, não só pelo lastro de destruição deixados por seus empreendimentos, mas também pelo aliciamento de indígenas da comunidade ao arrendamento de suas terras e à retirada e venda de madeira de seus territórios.
“O agronegócio está chegando aqui, já chegou e eles não estão pensando nos povos indígena, eles estão pensando no lucro, no dinheiro”
Essa é uma realidade já conhecida por Hozana Puroborá, cacica da aldeia Aperoi, da Terra Indígena Manuel Correia, que convive, há alguns anos, com os efeitos colonizadores da chegada do agronegócio. “A gente pensa que isso acontecia com os nossos avós, com os nossos bisos, mas a colonização ainda acontece hoje com a gente. Os nossos próprios parentes aceitam as promessas dos fazendeiros. Eles dizem que você tem que alugar a terra para fazer pasto e com o dinheiro alugar uma casa na cidade e viver de boa lá com a tua família, mas a gente sabe que não vai acontecer melhoria nenhuma”, relata.
Amacro: um projeto de colonização
Não diferente de outros ciclos de colonização, o projeto Amacro se apresenta para os povos originários do estado do Acre, Amazonas e Rondônia como uma ameaça as florestas e terras indígenas amazônicas. Por trás do nome oficial, Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira, o projeto esconde, em seu bojo, a fúria capitalista do agronegócio, que pretende se apropriar e explorar as terras públicas localizadas na tríplice fronteira dos três estados, incluindo, dentre elas, as unidades de conservação e as terras indígenas.
Para José Luis Cassupá, coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Estado de Rondônia e Noroeste do Mato Grosso (Opiroma), a conciliação de sustentabilidade e desenvolvimento econômico proposta pelo projeto é apenas um disfarce para escamotear os impactos que serão gerados pelo projeto.
o projeto Amacro se apresenta para os povos originários do estado do Acre, Amazonas e Rondônia como uma ameaça as florestas e terras indígenas amazônicas
“A Amacro é um desenvolvimento sustentável para os colonizadores e para os grandes proprietários de grãos de soja e, principalmente, da agropecuária. E o que a gente se preocupa é com o desmatamento, a degradação do solo, os impactos ambientais e sócio-culturais dos povos que estão na região. Porque quem vai ser impactado são os territórios indígenas”, esclarece a liderança.
Mais de 50 terras indígenas devem ser impactadas pela exploração da Amacro. Dentre algumas mencionadas no encontro estão as Terras Indígenas Karitiana, Karipuna, Ribeirão, Laje, Uru Eu Wau Wau, Kaxarari e Tenharim.