Reintegração de posse ameaça despejar comunidade Santiago Kue, em Naviraí (MS)
Prazo estabelecido pelo Juiz Federal de Naviraí vence amanhã (9) e se efetivado, despejará cerca de 30 famílias; para assessoria jurídica do Cimi, decisão desrespeita o STF
A Justiça Federal de Naviraí determinou, no último domingo (5), a reintegração de posse do tekoha Santiago Kue, território tradicional do povo Guarani e Kaiowá, localizado no município de Naviraí, no Mato Grosso do Sul. O prazo para o cumprimento da reintegração de posse vence amanhã (9) e se executado, despejará cerca de 30 famílias. A comunidade foi notificada nesta segunda-feira (6).
A entrega da ordem judicial foi acompanhada por um número desproporcional e ostensivo de policiais, cuja presença intimidou mulheres e crianças da comunidade que, apesar da coação, receberam o oficial de justiça de forma ordeira e pacífica. “O oficial de justiça chegou juntamente com a Polícia Federal, a Força Nacional e teve lá a Polícia Militar. Os fazendeiros também estavam no dia [da entrega da ordem judicial]”, conta um membro da comunidade que, devido às ameaças, não será identificado nesta matéria.
O prazo para o cumprimento da reintegração de posse vence amanhã (9) e se executado, despejará cerca de 30 famílias
A decisão pela reintegração de posse se dá em meio à retomada de uma área ancestral realizada pela comunidade há menos de uma semana, no dia 2 de novembro. A comunidade relata que, após retomada da área, funcionários da fazenda sobreposta à terra indígena avançaram com tratores sobre as casas da comunidade.
“Eles começaram a derrubar árvores para o lado dos barracos da comunidade. Foi quando a comunidade tentou impedir, para não derrubar mais árvores. Só isso que aconteceu, não houve ameaça [dos indígenas] ao motorista do trator. Eles não ameaçaram ninguém”, afirma o membro da comunidade, que contesta a versão dos fazendeiros, reproduzida na decisão liminar do juiz federal de Naviraí.
A autorização do uso de forças policiais na reintegração de posse preocupa a comunidade. A truculência e a ilegalidade da Polícia MiIitar e da Força Nacional são velhas conhecidas das famílias de Santiago Kue e demais comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul.
“Eles começaram a derrubar árvores para o lado dos barracos da comunidade. Foi quando a comunidade tentou impedir, para não derrubar mais árvores”
Decisão sem escuta
Para Anderson Santos, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul, a liminar concedida para reintegração de posse afronta uma decisão superior do Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar de concluído o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) que derrubou a tese do marco temporal, ainda segue em vigor uma decisão do ministro relator, Edson Fachin, proferida no mesmo processo, que possui repercussão geral.
O ministro determinou “a suspensão de todos os processos de reintegração de posse até o trânsito em julgado desse recurso no STF”, explica o advogado.“Só essa decisão já é capaz de inviabilizar o cumprimento dessa ordem liminar. Um juiz de primeira instância não pode afrontar uma decisão da Suprema Corte”, considerou.
“Só essa decisão já é capaz de inviabilizar o cumprimento dessa ordem liminar”
A decisão proferida sem participação da comunidade também foi considerada pelo assessor como um aspecto que pode inviabilizar o cumprimento da reintegração de posse. “A liminar foi dada sem oitiva da parte contrária, tanto da comunidade, como da Funai, da União e do Ministério Público Federal (MPF). O Estatuto do Índio traz esse critério jurídico que raramente é observado em sentenças judiciais, mas é uma lei federal e deve ser respeitada”, explica.
Tradicionalidade
Apesar da recente ocupação, o tekoha Santiago Kue não se trata de uma “posse nova”, como assim se referiu ao território o juiz da 1ª Vara Federal de Naviraí. Entre retomadas e despejos, essa é pelo menos a quinta vez que a comunidade tenta reaver seu tekoha, lugar onde se constitui como coletividade, cultiva suas forças e guarda seus mortos.
“Ali é o lugar tradicional, os caciques tem o cemitério ali”, conta o membro da comunidade. Trata-se de um cemitério localizado na cabeceira do rio São Lucas, dentro do território de Santiago Kue, relatado, por diversas vezes, por anciões da comunidade.
“Ali é o lugar tradicional, os caciques tem o cemitério ali”
A comunidade busca há mais de vinte anos o reconhecimento da tradicionalidade de suas terras, cujo processo de demarcação encontra-se paralisado na fase de identificação e delimitação. Apesar de entregue à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai),em 2010, o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), até o momento, não foi publicado.
“Esse ano a Funai baixou uma nova portaria reconstituindo o Grupo de Trabalho [responsável por identificar e a delimitar a terra indígena] e nomeando uma nova coordenadora para o GT, com intuito de fazer complementações ao estudo e chegar a uma posição para a publicação do relatório”, explica o assessor.
A comunidade busca há mais de vinte anos o reconhecimento da tradicionalidade de suas terras
No relatório, o tekoha Santiago Kue é reconhecido como terra indígena. “Existem várias comunidades que estão inseridas nesse estudo e uma delas é a comunidade Santiago Kue”, informa Anderson.
Enquanto a regularização de suas terras não progride, a comunidade é constantemente expulsa de suas terras originárias e empurrada para as imediações de Naviraí. “Sem lugar, muitas famílias foram para a reserva de Caarapó, para Jarará, que é uma outra terra indígena e foram se espalhando por inúmeras lugares. Muitos indígenas viveram espalhados pela beira da rodovia”, relata Matias Benno, coordenador do Cimi Regional Mato Grosso do Sul.
“Muitos indígenas viveram espalhados pela beira da rodovia”
TI Dourados-Amambai Pegua II
O histórico de violência e de expropriação de terras da comunidade Santiago Kue é antigo e se assemelha ao da comunidade de Kurupi.Antes da retomada de seus territórios, seus integrantes viviam comprimidos por entre cercas de fazendas, em acampamentos improvisados às margens da BR-163.
Ambos os tekoha integram a mesma Terra Indígena (TI): a TI Dourados-Amambai Pegua II. São comunidades diferentes que reivindicam áreas distintas, localizadas em um mesmo território. A TI Dourados-Amambai Pegua II integra um dos processos de demarcação de terras Guarani e Kaiowá acordados por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), estabelecido entre a Funai e o Ministério Público Federal (MPF), em 2007.
O acordo determinou um plano de estudos para a demarcação de terras indígenas Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul que não avançou, o que agravou ainda mais a situação de conflitos e violações de direitos contra a população indígena do estado.
A indisposição do poder público em resolver a disputa territorial, faz com que “os indígenas passem a buscar esse lugar [seus tekoha] como uma de suas inúmeras voltas para casa que vão acontecer dentro desse mesmo macroterritório. Então todas essas famílias são pertencentes desses lugares, que estão espalhadas e tentando voltar para lá”, explica Benno.