08/11/2023

Nota de pesar: “Quero poder levar flores para a minha mãe em paz”

O Cimi Regional Mato Grosso do Sul manifesta pesar pelo falecimento de Damiana Cavanha, liderança histórica do Tekoha Apyka’i e uma das maiores guerreiras Kaiowá e Guarani

Damiana Cavanha. Foto: Ruy Sposati/Cimi

Damiana Cavanha. Foto: Ruy Sposati/Cimi

É com profundo pesar que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul se pronuncia sobre o falecimento de Damiana Cavanha, uma das maiores guerreiras dos povos indígenas Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Damiana nos deixou no dia 7 de novembro sem ter seu tekoha demarcado, após mais de duas décadas vivendo em barracos de lona preta e restos de tábua, morrendo um pouco a cada dia, entre a violência do agronegócio e do poder público. A causa oficial da morte, contudo, ainda não foi esclarecida.

Lutadora incansável pela demarcação de terras, Damiana é um exemplo para todas aquelas e aqueles que lutam por justiça e pelo fim do jugo do capital agrário no Brasil. Nascida em 1939, ela liderava, desde a década de 1990, o acampamento do Tekoha Apyka’i, composto por um grupo de famílias que ocupavam o território tradicional, tomado por um canavial, às margens da rodovia BR-163, a menos de 10 km do perímetro urbano de Dourados. Em 2012, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) instituiu um grupo de trabalho para iniciar o processo demarcatório, nunca levado adiante. Apesar disso, Damiana viveu acampada com sua família por todo esse tempo em seu Tekoha – ora nas margens da rodovia, ora em meio às plantações de cana.

Em seus 86 anos de vida, Damiana sobreviveu a muitos desgostos. Sobreviveu a ataques armados de jagunços e empresas de segurança privada, e a a despejos e reintegrações de posse, com ou sem mandado judicial. Sobreviveu a uma centena de policiais na porta do seu barraco, às seis da manhã de um dia frio de inverno, para despejá-la – ela, o marido, filhos e netos –, para garantir o plantio de cana-de-açúcar.

Sobreviveu a incêndios criminosos e a tratores que demoliram seus barraquinhos e pertences como panelas, redes, cobertores e roupas… Sobreviveu à diarreia, à dor de cabeça e a vômitos causados pela única água a que tinham acesso, contaminada por agrotóxicos pulverizados pelas máquinas nos canaviais que ocupavam seu território, e que envenenavam também o ar que respiravam e suas roças.

Damiana sobreviveu à dor de perder marido, filhos e netos atropelados na BR-163. No total, a estrada – um projeto da ditadura militar, criado sob o slogan “ocupar para não entregar” – ceifou a vida de oito parentes de Damiana. Em todos os casos de atropelamento, os motoristas fugiram sem prestar socorro. Deixaram os corpos sobre o asfalto quente: Damiana os recolhia e chorava sobre eles; depois os plantava no fundo de uma mata ciliar, pertinho do córrego envenenado, dentro de seu território originário. Para mitigar o problema das mortes, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) instalou em meio a sinalizações de velocidade a seguinte placa: “População indígena a 1km”. Oito mortos que não mereceram sequer uma lombada.

No entanto, a Usina São Fernando – que comprava a cana-de-açúcar que atingia Damiana para fabricar etanol – essa sim merecia muito mais! Entre 2008 e 2012, a usina recebeu empréstimos do BNDES de mais de 500 milhões de reais. Dinheiro público, entregue durante os governos Lula e Dilma, ao pecuarista José Carlos Bumlai, proprietário da usina que nunca pagou de volta um único centavo. Com quase 1,5 bilhão de reais em dívidas, Bumlai foi preso em 2015 por distribuição de propina no contexto da operação Lava Jato.

A usina faliu e foi leiloada, e atualmente está sob disputa judicial entre ESG (um consórcio de investidores de São José dos Campos/SP), Grupo AGF (indústria sucroalcooleira com sede em Recife/PE), e Millenium Holding (uma empresa recém-fundada da Vila Olímpia de São Paulo/SP, com capital social de 600 milhões de reais). A empresa que ganhar na Justiça deverá pagar apenas cerca de 350 milhões pela compra da massa falida da São Fernando.

A disputa não impediu, contudo, de instalarem no canavial uma base de monitoramento com seguranças para fiscalizar a área e impedir a circulação dos indígenas, barrando também o acesso ao cemitério.

Com uma clareza e obstinação mágicas e quase inexplicáveis, Damiana confrontou por anos o agronegócio. Sua vida de enfrentamento a múltiplas violências escancara o tratamento dado aos indígenas Kaiowá e Guarani nesta região do país, confinados entre monoculturas em uma das mais graves crises humanitárias já vistas na nossa história

Dona Damiana, num dos muitos despejos que enfrentou em seu tekoha Apyka'i. Foto: Ruy Sposati/Cimi

Dona Damiana, num dos muitos despejos que enfrentou em seu tekoha Apyka’i. Foto: Ruy Sposati/Cimi

Seja pela usina, por fazendeiros ou por pistoleiros, Damiana nunca se furtou em denunciar as violações de direitos que sofria. E, por isso, recebeu em sua casa visitas ilustres – não somente a de homens armados, mas, também, de pessoas favoráveis a sua luta: políticos do mundo todo – indianos, sul-africanos, estadunidenses; indígenas do Brasil e de outras partes da América; representantes do alto escalão da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Anistia Internacional, ONGs nacionais e internacionais; juízes, artistas, jornalistas, estudantes e pesquisadores acadêmicos. Todos conduzidos até lá em função da situação desesperadora de Damiana em sua resistência, estupefatos com a síntese extremada da condição indígena na região. A fotografaram, a ouviram, gravaram suas palavras – mas nada, absolutamente nada, sensibilizou os governantes a ponto de demarcarem sua terra.

Outros condenados da terra que, como ela, não tinham um chão para viver, bateram à sua porta no acampamento – para quem, solidária, Damiana sempre abriu os braços. A bondade, contudo, a colocou por vezes, ainda que contraditoriamente, em uma grave situação de vulnerabilidade à violência masculina.

Neste ano de 2023, poucos meses atrás, Damiana sobreviveu à perda de mais um netinho – este morto por desnutrição, com apenas um ano de vida. Enterrou-o, assim como aos outros, dentro do tekoha – isto é, em meio à plantação de cana-de-açúcar. Sobreviveu ao dilaceramento familiar, frente à pobreza e à degradação de tudo e de todos ao seu redor, incluindo também a causada pelo álcool, grave epidemia neste tempo de desesperança.

Com uma clareza e obstinação mágicas e quase inexplicáveis, Damiana confrontou por anos o agronegócio – estes senhores feudais que dominam o Brasil, produtor de matéria-prima que escraviza e descarta quem ouse se opor a este modelo econômico predatório. Sua vida de enfrentamento a múltiplas violências escancara o tratamento dado aos indígenas Kaiowá e Guarani nesta região do país, confinados entre monoculturas em uma das mais graves crises humanitárias já vistas na nossa história.

Damiana sobreviveu e resistiu a tudo isso, mas, aos 86 anos, sentindo dores e tendo desmaios longos há alguns dias, foi levada às pressas ao Hospital da Missão, na tarde do dia 6 de novembro. Segundo sua filha Sandra, já a caminho do atendimento, Damiana teve uma parada cardiorrespiratória, e foi internada. No dia seguinte, segundo laudos preliminares apresentados pela equipe médica à família, teria sido identificada uma sepse gravíssima, e Damiana nos deixou para sempre. A morte, contudo, está sendo investigada, já que haveria, ainda segundo a família, hematomas em seu corpo (não se sabe ainda se novos ou antigos). Ministério Público Federal (MPF) e Funai estão intermediando para garantir que exames sejam feitos no Instituto Médico Legal (IML), e a Polícia Civil também iniciou as investigações para apurar o falecimento.

Em 2 de novembro, Dia de Finados, Damiana enfrentou mais uma vez os jagunços e penetrou no canavial para, pela última vez, visitar o cemitério onde estão seus parentes, no Tekoha Apyka’i

Foto: Ruy Sposati/Cimi

Foto: Ruy Sposati/Cimi

Em 2 de novembro, Dia de Finados, Damiana enfrentou mais uma vez os jagunços e penetrou no canavial para, pela última vez, visitar o cemitério onde estão seus parentes, no Tekoha Apyka’i. O corpo de Damiana, no entanto, não será enterrado junto deles. “Eu não quero passar pelo mesmo que minha mãe passava, quando ia visitar os parentes enterrados”, nos explicou a filha Sandra. Muitas vezes, quando dona Damiana ia levar flores aos seus mortos, ela era ameaçada – fisicamente por jagunços e funcionários da fazenda, ou por processos judiciais. “Quero poder levar flores para a minha mãe em paz”, nos disse, e por isso irá enterrá-la em outro cemitério indígena.

A verdade é que nem os mortos nem os vivos terão paz enquanto reinarem o agronegócio, os senhores feudais e burgueses deste país, e as demarcações de territórios indígenas não acontecerem.

O Cimi manifesta sua solidariedade à família de Damiana e a todos os Kaiowá e Guarani que sofrem com sua perda inestimável. Que a luta de Damiana, seus ensinamentos e seu exemplo heroico nos iluminem e motivem a seguir em frente, em defesa da vida e da justiça.

8 de novembro de 2023

Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Mato Grosso do Sul

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