01/10/2023

Marçal Guarani: um paradigma de vida e morte indígena no Brasil

Marçal Tupã´i Guarani, te enterraram com os pés para o nascente; Morto, ainda apontas o caminho da vida, indelével faro, farol da Terra-sem-males, palavra penhorada aos índios sem terra que os tiros de Campestre não calaram

Por Paulo Suess – Assessor Teológico do Cimi – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 459 DO JORNAL PORANTIM

O contexto de colonização, os processos de desapropriação territorial, a destruição cultural e as retomadas de espaços mínimos para a sobrevivência dos índios Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, permitem situar a vida e o assassinato de Marçal Guarani, como um paradigma de vida e morte indígena no Brasil e na Ameríndia.

Marçal, no batismo Guarani, recebeu o nome Tupã’i, pequeno Tupã, divindade mitológica que, “ao se mover pelo céu, troveja e relampeja” (MELIÀ, 1989, p. 326). Ele nasceu e morreu no Mato Grosso do Sul. Há poucos meses, poderíamos ter celebrado o centenário de seu nascimento, mas, como morreu mártir político sem partido e profeta sem Igreja, ninguém falou dele. “Aqui em Dourados, onde está enterrado, não é tão conhecido, “mas em outras áreas indígenas, o dia da morte dele é feriado”, conta a filha Edna, (ROCHA et al.,2008).

Do povo Guarani-Ñandeva, do oeste do Brasil, nas fronteiras com Argentina, Bolívia e Paraguai (SILVA, 2015), Marçal nasceu na região de Ponta Porã (MS) – povoado que surgiu dentre os campos de erva-mate -, em 24 de dezembro de 1920, véspera da festa na qual os cristãos do mundo inteiro comemoram a encarnação de seu fundador, Jesus de Nazaré. Ambos viveram de teimosia, na contramão do sistema, pela denúncia, defendendo um reino de justiça e verdade. Ambos morreram martirizados, testemunhas desse reino com sua palavra e sua vida.

Marçal defendeu o território e a vida do povo Guarani, cujo nome levou para a eternidade: Marçal Guarani, como tantos outros indígenas assassinados, cujo sobrenome faz memória de seu povo: Simão Bororo (1976), Galdino Pataxó (1997) – Galdino Jesus dos Santos, Pataxó-hã-hã-hãe -, Chicão Xucuru (1998) e Zezico Guajajara (2020). O denominador comum de todos esses assassinatos foi a defesa do território e da vida de seu respectivo povo.

Para compreender o assassinato de Marçal, que é paradigmático para tantas vidas ceifadas no Brasil e em toda América Latina, precisamos situá-lo no contexto da ocupação dos territórios indígenas por conquistadores, colonizadores e promotores do agronegócio.

Os sobreviventes indígenas dessa ocupação, destituídos dos seus meios de produção material e espiritual, foram assentados em pequenas “ilhas” (reservas) territoriais no interior do latifúndio, onde perderam muitas das condições necessárias para seu modo de vida tradicional, preconizado em sua cultura. Nessas reservas, ficaram cercados por estradas, pelo plantio da erva-mate e da soja, pelo gado das fazendas e pela indústria canavieira, que os empregou como trabalhadores assalariados, mão de obra barata e geradora de mais-valia para seus patrões.

No decorrer do tempo, as famílias indígenas começaram a crescer e ficaram cada vez mais encurraladas nessas pequenas ilhas territoriais, as quais não permitiam sua sobrevivência física nem a realização dos seus rituais. Por vezes, os aviões das fazendas despejavam agrotóxicos sobre suas pequenas lavouras e envenenavam os produtos agrícolas de sua subsistência.

Para sobreviver, foram obrigados a romper seu confinamento, imposto pelo latifúndio, e a retomar espaços invadidos de seus territórios. Os novos donos de suas terras ancestrais os receberam com balas e iniciaram processos de judicialização demorados, que obrigaram os Guarani a esperar por longos anos em acampamentos na beira de estradas e a pedir esmolas.

Fora algumas particularidades, é esse o pano de fundo da vida e da morte de Marçal Guarani, que lembramos para que não se repita.

Desapropriação do território

No Brasil, a ocupação e o confisco do território Guarani em grande escala começaram depois da chamada “Guerra do Paraguai” (1864-1870), travada entre o Paraguai e os aliados da Tríplice Aliança: Brasil, Argentina e Uruguai.

Após a guerra, o governo brasileiro enviou à região uma Comissão de Limites para regulamentar a nova situação das fronteiras com o Paraguai. O comerciante sulista Thomaz Laranjeira acompanhou a Comissão e aproveitou suas boas relações políticas no âmbito da Corte Imperial para ampliar seus negócios.

A partir de 1877, Laranjeira começou a explorar em dimensões empresariais a erva-mate nativa, tendo seu centro comercial primeiro em Concepción, no Paraguai, depois no sul do Mato Grosso, em Porto Murtinho e, mais tarde, em Guaíra (Paraná).

Em 1882, Thomaz Laranjeira conseguiu um decreto imperial, que o autorizou através de arrendamento a explorar a erva-mate nativa por um período de 10 anos. Ao final desse período, em 1892, agora já na República, fundou a Companhia Matte Laranjeira. Em 1902, os direitos e bens da original Cia Laranjeira passaram para a empresa Laranjeira Mendes & Cia, com sede em Buenos Aires.

Em 1943, o presidente Getúlio Vargas, seguindo a Constituição de 1937, anulou os direitos de arrendamento da Cia Matte Laranjeira, considerada uma companhia estrangeira. Muitos dos seus empregados e migrantes gaúchos se transformaram, de colhedores da erva-mate, em fazendeiros, derrubaram a mata, implantaram fazendas de gado e se constituíram proprietários de terras, até então ocupadas por aldeias indígenas.

O governo Vargas, que favoreceu a transformação dos arrendamentos da Matte Laranjeira em propriedade de brasileiros (nordestinos e gaúchos) por meio do projeto de colonização conhecido como a “Marcha para o Oeste”, previu, a partir de 1943, a implantação de colônias agrícolas. Entre elas vingou a Colônia Agrícola Nacional de Dourados/MS, “que retira do domínio indígena uma área de 300 mil hectares de terras para o assentamento de agricultores” (BRAND, 2007, p. 7) distribuindo mil lotes de 30 hectares, que se sobrepuseram a territórios indígenas tradicionais (BRAND, 1993, p. 55).

Para os Guarani, a transformação do arrendamento de seu território em propriedade de fazendeiros foi fatal. Em decorrência desse regime de propriedade e da abertura de estradas, entre os anos de 1959 e 1970, as aldeias Guarani-Kaiowá e suas famílias extensas foram separadas e cada vez mais encurraladas, expulsas ou deslocadas por fazendas que expandiram sua propriedade, seus pastos e sua infraestrutura de locomoção.

Na lógica econômica dos novos proprietários da terra, os territórios dos Guarani-Kaiowá foram considerados “terras ociosas” e o seu estilo de vida, impedimento ao progresso. Por conseguinte, depois de 1970, os antigos habitantes da região foram compulsoriamente confinados em reservas exíguas que ameaçaram as condições físicas e espirituais de sua vida (ROCHA, et al., 2008).

Foto: Maria Helena Brancher – Arquivo Cimi

 As reservas

Depois da “terra livre” pré-colonial, os Guarani-Kaiowá experimentaram a convivência com a “terra arrendada” à Cia Matte Laranjeira, muitas vezes em condições de semiescravidão, endividados no interior dos ervais e sofrendo pela perda de sua identidade que, na cultura Guarani, significa perder a alma. (CHAMORRO, 1998, p. 48).

As reservas inviabilizaram a economia Guarani tradicional baseada na família extensa (tekoha guasu). O modelo da territorialidade Guarani é o território compartilhado por pequenas comunidades familiares que convivem em áreas nas quais mantêm relações econômicas, políticas e religiosas, além da aldeia propriamente dita.

Em 1915, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) demarcou a primeira terra “reservada” (daí o nome “reserva”) aos Kaiowá e Guarani. As pequenas glebas de terras cedidas pelo SPI configuravam ilhas no mar do latifúndio, confinamentos territoriais que, ao invés de “reservar” terras para os povos indígenas, objetivava liberá-las para a iniciativa privada, garantindo-lhe a mão de obra indígena.

Desde seu início, o que orientava o projeto estatal indigenista tinha como objetivo a redução e a desapropriação territorial, além da “civilização” sociocultural. O futuro étnico dos Guarani seria o brasileiro genérico, ex-índio com ancestrais indígenas (OLIVEIRA, 1985).

Os horizontes de civilização e a transformação dos indígenas em pequeno agricultor nacional exigiram o instituto legal da tutela. Brand e Almeida descrevem bem o alcance latino-americano dessa ideologia: “Essa ideia sobre os povos indígenas como povos marcados pela transitoriedade é um elemento comum às elites latino-americanas, para quem o destino dos povos indígenas era a sua incorporação total na nova sociedade” (BRAND; ALMEIDA, 2007, p. 3).

As reservas como “reduções territoriais”, além de causar conflitos internos, significavam desapropriação territorial, portanto, liberação do território Guarani-Kaiowá para a colonização, remoção violenta de aldeias com assassinatos de seus líderes, como foi o caso de Marçal Guarani, que denunciou essas remoções revestidas com a toga de “reserva”, “proteção” e “tutela”.

O engaiolamento dos Guarani-Kaiowá em reservas exíguas significou o fim das “famílias extensas”, uma modalidade de conviver com seu território ancestral. As reservas e as colônias agrícolas, no caso, a Colônia Agrícola Nacional de Dourados, são o início da violência propriamente dita, desencadeada não por causa de alguns hectares de terra, mas pela sobrevivência física e cultural dos antigos moradores dessas terras, agora ocupadas por agricultores hostis.

Serviço de Proteção aos Índios (SPI)

Em 1967, o SPI foi extinto em consequência das denúncias de uma Comissão administrativa de Inquérito (CI), parcialmente documentadas no chamado “Relatório Figueiredo” (RF). Fazem parte também desse documento as denúncias de uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o SPI, que já em 1963 tinha investigada a conduta corrupta e criminosa do órgão estatal. O Relatório denunciou também cadeias clandestinas, desaparecimentos e torturas de indígenas. Logo, depois do vazamento desses e outros crimes, o documento desapareceu e só 45 anos mais tarde foi, quase integralmente, reencontrado nos arquivos do Museu do Índio, no Rio de Janeiro.

Em resposta ao escândalo de corrupção, esbulho de terra e violações de direitos humanos, envolvendo políticos, empresas e funcionários do SPI, o governo militar criou a Fundação Nacional do Índio (Funai), hoje, Fundação Nacional dos Povos Indígenas. O órgão, mesmo com a demissão de grande número de ex-funcionários explicitamente criminosos, em sua ideologia institucional integracionista, além de sua militarização na época, não se distinguiu substancialmente do SPI, mesmo mais tarde com os novos dispositivos jurídicos da Constituição de 1988.

O líder militante: aliados e adversários

Na medida em que se estreitou o espaço religioso e político de Marçal, em seu próprio território no Mato Grosso do Sul, abriram-se espaços políticos para denunciar a situação calamitosa dos Guarani.

Pelo seu trabalho de tradutor e intérprete, Marçal havia se encontrado repetidas vezes com os antropólogos Darcy Ribeiro e Egon Schaden, e os acompanhou às aldeias nas suas pesquisas. Schaden, em seu trabalho sobre “Aspectos fundamentais da cultura guarani”, de 1954, cita Marçal 19 vezes como avalista e intérprete da cultura Guarani (SCHADEN, 1974).

Por meio desse trabalho de intérprete e de diálogos com os antropólogos, Marçal passou a compreender melhor a sua própria cultura e a situação do povo nas aldeias. Nas “Assembleias de Líderes Indígenas”, ele conseguiu contextualizar seu dom em defesa de seu povo, voltar para suas raízes e apreciar a sua cultura. Sobre o encontro com Darcy Ribeiro conta:

“Na década de 40, tive o primeiro encontro com o professor Darcy Ribeiro. Descobri que nós índios tínhamos uma riqueza muito preciosa que era nossa cultura, a nossa crença, a nossa vida de índio, a nossa organização. Desde então nasceu um amor muito profundo pelo meu povo índio. Eu devo esse abrir de olhos ao professor Darcy Ribeiro” (ROCHA et al., 2008).

Entre os dois, havia empatia e uma estima recíproca. Após mais de 30 anos, na Semana do Índio de abril de 1980, em Campo Grande, no “1o Seminário Sul-Mato-Grossense de Estudos Indigenistas”, Darcy Ribeiro saudou Marçal como seu “colega intelectual” e o evento como “um momento de lucidez do seu povo e do povo brasileiro”. Esse seminário, com a participação de 80 líderes indígenas e com suas articulações para a criação da futura “União das Nações Indígenas” (UNI), se tornaria importante para o movimento indígena. Marçal se apresentou como morador da aldeia Campestre, “uma aldeia perdida nos recantos remotos da fronteira do Paraguai”.

“Há dois anos fui mandado pela Funai para sentir o problema daqueles meus irmãos. […] E eu, como índio, vivo a vida deles, eu sinto o problema, a ferida, a chaga da injustiça que meus irmãos sentem. A nossa intenção é a que o povo, o povo indígena brasileiro, se organize. […] Quando o primeiro explorador apareceu nas águas da Baía da Guanabara, foi o fim; o fim da liberdade do índio. Desde então vivemos na correria, na expectativa do medo, na intimidação. […] Por isso, pensamos organizar aqui, ao sair deste salão, deixar aqui um marco, uma associação, uma federação indígena genuinamente e autenticamente indígena, dirigida por um índio” (TETILA,1994, p. 34).

O ano 1980 foi um ano decisivo para Marçal, o militante Guarani. A 14ª Assembleia de Líderes Indígenas, de junho daquele ano, aconteceu em Brasília (DF), com 54 líderes de 25 povos indígenas, rompendo o cerco da Funai que, ainda no regime da tutela do antigo Estatuto do Índio, não queria deixá-los sair de suas aldeias. Marçal esteve presente nessa assembleia e se apresentou assim:

“Meu nome de batismo pelo ritual Guarani é Tupã´i. Sou enfermeiro da Funai, sou empregado da Funai. Ganho da Funai. Aqui estou representando duas aldeias: Posto Indígena Dourados e Aldeia Campestre. [..] Atualmente estou trabalhando na fronteira com Paraguai, numa aldeia muito pequena composta de nove famílias apenas. Lá, nós não temos lugar ainda, nada definido, vivemos de teimosia. Nós temos que teimar, meus irmãos, teimar e bater e bater e lutar e lutar para poder sobreviver neste país tão imenso e tão grande que foi nosso e que foi todo roubado de nós”. (PORANTIM, 1980, p. 6).

O tema principal dessa assembleia retomou o debate do Seminário de Campo Grande: a necessidade de uma organização indígena nacional. Já três meses mais tarde, nos dias 6 e 7 de setembro de 1980, a Assembleia da União das Nações Indígenas (UNI) se reuniu em Campo Grande (MS), aprovou seu Estatuto e escolheu a sua diretoria provisória, na qual Domingos Veríssimo, da nação Terena, foi eleito presidente e Marçal de Souza, Guarani-Ñandeva, vice-presidente. Dois anos depois, Marçal representou a UNI numa reunião da ONU em Boston e advertiu a opinião pública, junto a líderes indígenas dos cinco continentes, sobre os perigos da mineração em áreas indígenas.

Foi a partir da década de 1980, que os Guarani e Kaiowá, apoiados na mística de sua cultura, deram início à retomada dos territórios desapropriados pelo processo de colonização. Nos últimos 20 anos do século XX recuperaram 11 terras, num total de 22 mil hectares. O agronegócio reagiu com violência. Soja, cana-de-açúcar e carne bovina tornaram-se campeãs na balança comercial do Mato Grosso do Sul.

Ñanderu mandou dizer

Viajando de ônibus para Dourados ao lado de uma indígena Guarani, alguém sentado do outro lado lhe perguntou: “Por que vocês insistem agora nessas retomadas de suas terras, num contexto estrategicamente tão desfavorável?”. Ela então respondeu: “Ñanderu mandou dizer: está na hora”, ou como o sábio Jorge, da terra indígena de Pirakuá explicou à equipe do Cimi: “Quando os Ñanderu falavam é hoje, nada conseguia impedir a volta à terra tradicional” (HECK, 2011).

E quem é Ñanderu? Pode ser o grande rezador, líder religioso, xamã, deus da luz. A cacica e líder político-religiosa Damiana Cavanha, da comunidade Apyka´i, na Grande Dourados, resume essa autoridade de Ñanderu: “A nossa força vem da nossa reza, do nosso canto, do maracá, do chiru”, uma espécie de cruz que representa Ñanderu, o corpo e a vida (PORANTIM, maio 2015).

A religião é um eixo forte nas orientações políticas dos Guarani. Na sua espiritualidade, o mundo transcendente e a realidade histórica são intimamente entrelaçados. “A cultura Guarani está construída sobre três colunas: a reza, o canto e a dança. O teto que protege e une esses pilares para configurar um abrigo, uma casa-território, um espaço de identidade, é a palavra” (SUESS, 2016, p. 2). Marçal era um artista, um mago e guerreiro dessa palavra.

Marçal foi escolhido para discursar no encontro com o Papa João Paulo II, em Manaus, na já mencionada 14ª Assembleia Indígena, de 1980. Segundo Edna, filha de Marçal, o encontro com o Papa “foi a oportunidade que Tupã-Ñanderu deu para denunciar a situação dos povos indígenas” e contar fragmentos da “verdadeira história” do Brasil:

“Somos uma nação subjugada pelos potentes, uma nação espoliada, uma nação que está morrendo aos poucos sem encontrar o caminho, porque aqueles que nos tomaram este chão não têm dado condições para a nossa sobrevivência. Nossas terras são invadidas, nossas terras são tomadas, os nossos territórios são diminuídos, não temos mais condições de sobrevivência. Trazemos à Sua Santidade a nossa miséria, a nossa tristeza pela morte dos nossos líderes assassinados friamente por aqueles que tomam o nosso chão, aquilo que para nós representa a nossa própria vida e a nossa sobrevivência nesse grande Brasil, chamado um país cristão […] Depositamos no Senhor, como representante da Igreja Católica, chefe da humanidade, que leve a nossa voz para que ainda a nossa esperança encontre repercussões no mundo internacional. Esta é a mensagem que deixo para o Senhor (BOLETIM do Cimi, 1980, p.11; BARBOSA, vídeo 3).

Marçal de Souza em encontro com o Papa João Paulo II. Imagem: Portal das Missões/Arquivo

Dom José Gomes e eu, respectivamente presidente e secretário do Cimi, estivemos na sacada da casa episcopal, face a face com Marçal e João Paulo II. Vibramos com esse discurso, enquanto as canetas do Serviço Nacional de Informação (SNI), do então presidente Figueiredo, tremeram. Depois dessa tempestade causada pela descrição da realidade indígena, viajamos juntos, Marçal e eu, de Manaus para Porto Velho. Uma viagem longa, silenciosa, noite adentro, com o sentimento de ter mais uma etapa de sua missão cumprida. “Conscientemente, entregou-se por inteiro talvez à mais espinhosa de todas as missões, qual seja, a de porta-voz da comunidade mais frágil, indefesa e injustiçada deste País, a comunidade indígena” (TETILA, 1994, p. 44).

Sentiu o que disse em algum momento profético, explicitamente: A partir de agora “sou uma pessoa marcado para morrer”. Tinha plena consciência, como disse dias antes: “Estou aqui, meus patrícios, não a passeio. Quem luta por uma causa não tem tempo de pensar em si, mas por seu povo”. Os dias que virão, estão contados. Nas paradas de ônibus, nas rodoviárias sonolentas dessa viagem para Porto Velho, passageiros reconheciam Marçal da televisão, por onde seu discurso ao Papa tinha sido transmitido. “Que índio corajoso!”, comentavam: “Será que vai reconquistar para os netos a terra que roubaram dos avós?”

Assinou sua palavra com seu sangue

Depois dos seus encontros com o Cimi, com os líderes indígenas nas assembleias, com João Paulo II e de muitos compromissos como palestrante e voz conhecida pelo Brasil afora, o enfermeiro Marçal sempre voltava para Campestre, onde viveu os últimos cinco anos de sua vida. Para quem, como Marçal, se sente responsável pelo sofrimento alheio, Campestre também foi para ele um lugar de denúncia e sofrimento.

Ainda no fim de 1980, Marçal começou a empenhar-se na defesa de 30 famílias Kaiowá, que no município vizinho, Bela Vista, conseguiram permanecer em um fragmento de seu tekoha original de Pirakuá, encravado na fazenda da família Monteiro. “Esta comunidade logrou permanecer na parte de mata, no fundo da fazenda que ocupou suas terras, até início da década de 1980, quando foram `descobertos´ por Marçal de Souza”

A fazenda que ocupou a terra Guarani tradicional fez pressão para a saída do grupo Kaiowá. O capataz da fazenda, Rômulo Gamarra, começou a desmatar a área e a tirar madeira. A situação da comunidade de Pirakuá era paradigmática pela situação de muitos outros grupos Guarani e repercutiu na mídia pelas denúncias do Cimi e do enfermeiro de Campestre. “Expulsar sem destino é matar”, sentenciava Marçal, na 3a Assembleia da UNI, em Campo Grande). Ele envia uma carta pedindo socorro à Funai: “Rômulo Gamarra continua com suas ameaças contra nós. Agora está nos ameaçando de morte abertamente. […] Visa a minha pessoa […]. Mas os índios estão firmes a fim de permanecer na área. Sábado passado estive visitando a área”.

A filha Edna recorda as perseguições sofridas pelo pai até o último ano de vida e fala do controle da Polícia Federal que não o deixava visitar a família de Dourados sem autorização. Em agosto de 1983, três meses antes de ser assassinado, a Polícia Civil o espancou violentamente. Quando fez a denúncia à Polícia Federal, a sua casa em Campestre foi revistada, documentos desapareceram, inclusive um diário e os originais de um livro que estava escrevendo (Em 30 de setembro de 1983, na Cinemateca Macunaíma da Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, Marçal dá a sua última palestra pública. Sentados ao seu lado, os outros dois palestrantes da noite, Dom Tomás Balduino, ex-presidente do Cimi, e o amigo de Marçal, o senador da República, Darcy Ribeiro.

Depois dos aplausos daquela noite, seguiu o caminho de volta para Campestre, 1400 quilômetros na BR-374, com uma curta visita à primeira família, no Posto Indígena de Dourados. Finalmente em casa, esperava Celina, com quem constituiu uma segunda família, “à moda de índio, sem cartório, morando juntos”. De nascimento, Celina era de Marangatu, Kaiowá como o povo de Pirakuá e Campestre. Era início de outubro, primavera.

Alguns dias antes de seu assassinato, Marçal confidenciou a Celina que tinha recusado uma oferta de 5 milhões de cruzeiros para convencer a comunidade da aldeia Pirakuá a abandonar a sua área. E a resposta de Marçal? Ele pediu à Funai que o transferisse para Pirakuá, onde sua presença poderia fortalecer a permanência do grupo.

Essa transferência não se realizou. Os assassinos, que foram ao seu encontro na aldeia Campestre foram mais rápidos. Lá encontraram Marçal um mês antes de completar 63 anos, no dia 25 de novembro de 1983. Naquela noite fatal, Marçal já estava deitado quando vieram dois homens pedindo um remédio para o pai doente. Não se podia ver seus rostos. Um se sentou na cadeira enquanto Marçal se levantou para calçar seus chinelos. Neste momento, um dos dois sacou um revólver e deu cinco tiros, à queima-roupa. Marçal ainda se arrastou fora da casa onde expirou sua vida. Protegidos pela noite, os assassinos desapareceram. A única testemunha do sinistro foi Celina.

No outro dia, de manhã, as autoridades locais estavam interessadas em um enterro rápido, sem avisar a família. Um dos filhos de Marçal, Antonio João, soube do assassinato e foi imediatamente para Campestre. Lá, num momento de ausência da polícia encarregada do enterro ele conseguiu resgatar o corpo do pai e o levou para Dourados, onde foi e está enterrado no Cemitério Santo Antônio de Pádua

Interesses econômicos e políticos impediram o julgamento dos envolvidos nesse assassinato. Um dos principais suspeitos, Rômulo Gamarra, foi preso pela Polícia Federal de Ponta Porã, em 2 de junho de 1984. Os exames de balística provaram que uma das balas que atingiram Marçal saiu do revólver do “Paraguaio”, apelido de Rômulo, mas já no dia 28 de agosto Rômulo foi solto através de uma ordem de habeas-corpus do Tribunal Federal de Recursos (PORANTIM, set 1984, p. 13).

Para garantir certa imparcialidade dos jurados e da condução do processo, setores pró-índio se empenharam na transferência do processo de Ponta Porã/MS para Campo Grande/MS ou para Dourados/MS, mas não conseguiram. Em 1993, os acusados do crime, o fazendeiro Líbero Monteiro de Lima e Rômulo Gamarra, foram a júri popular e absolvidos por falta de provas. Cinco anos mais tarde ocorreu um segundo julgamento com o mesmo resultado (cf. ROCHA/BONILHA, vídeo 1, parte 3/3). Em 2003, o crime prescreveu definitivamente.

Tombou um herói, na porta de sua casa de palha, na aldeia Campestre, município de Antônio João, perto da fronteira com Paraguai. Tombou um herói que lutou por um mundo em que não haveria mais necessidade de heróis. Lutou contra o lucro de poucos e pelo bem viver de todos, por justiça e igualdade, pela libertação de um território da humanidade, o qual antes da invasão colonial era de todos. Marçal trabalhava como enfermeiro da Funai. Para sanar as feridas de seu povo e da humanidade, deu a sua vida. Morreu mártir político, sem partido, e profeta, sem Igreja. Marçal era Guarani como Sepé Tiarajú (+ 1756), Marco Verón (+ 2003) e Nísio Gomes (+ 2011) – paradigmas de vida e morte indígena no Brasil.

Em 1985, depois do assassinato de Marçal, a comunidade de Pirakuá conseguiu retomar e homologar parte do seu território, hoje com pouco mais de 2 mil hectares às margens do rio Apa. “Foi a primeira terra reconquistada desde 1925, quando do processo de confinamento em pequenas áreas ou reservas, pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI)” (HECK, 27.06.2011).

Trajetória do herói nacional

Ao nascer, no último mês da gripe espanhola que avassalou por dois anos o mundo, Marçal já foi um sobrevivente. Aos 3 anos de idade, a sua família mudou-se para a comunidade Tey´kuê, na região de Caarapó.

Em 1927, a família de Marçal migrou para a Reserva Indígena de Dourados, criada pelo SPI, em 1917.

Em 1928, com 7 anos de idade, Marçal ficou órfão. Foi acolhido pela recém-criada “Missão Evangélica Caiuá” que, na própria Aldeia Jaguapiru, estava dando os primeiros passos para organizar uma escolinha, um orfanato, um ambulatório e uma casa para o culto.

Aos 12 anos, em 1932, Marçal mudou para Campo Grande, onde viveu com uma família de missionários da Igreja Presbiteriana, a qual possibilitou sua formação escolar no Colégio Oswaldo Cruz (ensino fundamental), concluída quando ele já morava e trabalhava por alguns meses na casa do capitão Alípio Benedito de Castilho, oficial do Exército.

Em 1940, Marçal volta à Reserva Indígena de Dourados, trabalhando na “Missão Caiuá” como professor de órfãos e intérprete de Guarani para missionários e estudiosos da cultura. Marçal se destacou cedo como um líder e vocacionado para o trabalho missionário. E foi, por muitos anos, missionário da Igreja Presbiteriana.

Em 1959, Marçal faz um curso de auxiliar de enfermagem pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Em Dourados, na convivência com o povo, se aperfeiçoa em suas cinco profissões: professor, missionário, tradutor de língua, intérprete e enfermeiro – conhecia a medicina Guarani, as ervas do mato e os remédios de sua farmácia. No mesmo ano, casou-se com Aristídia e tiveram nove filhos, dois adotados.

De 1963 a 1972, Marçal torna-se Capitão do Posto Indígena de Dourados, atravessando como funcionário público a gestão do “Serviço de Proteção aos Índios” (SPI). Embora funcionário do SPI, a lealdade à sua origem indígena foi sempre maior que a conivência com as administrações corruptas da agência do estado.

Desde o início dos anos 70 denunciava a violência contra o povo Guarani: a expropriação de terras, a exploração ilegal de madeira, a escravização de indígenas e o tráfico de meninas indígenas. A sua incorruptibilidade não facilitou a sua tarefa.

Em 1972, Marçal é afastado do cargo de Capitão e volta a ser contratado como atendente de enfermagem, acrescentando seu saber acerca da medicina tradicional aos ensinamentos do curso da OMS de 1959, mas seus inimigos o queriam longe do Posto Indígena de Dourados.

Tornou-se vítima de perseguições. A violência atingiu também a sua família, que teve que sair de sua casa.

Para se livrar de Marçal, a Funai lhe ofereceu escolher uma área indígena qualquer, menos a sua aldeia Jaguapiru, na Reserva Indígena de Dourados, onde morava a sua família. Ele então escolheu no município Caarapó, onde tinha vivido dos três aos oito anos de sua infância, a aldeia Tey´kuê, em Guarani, “aldeia antiga” ou “lugar que foi morada”. Esse lugar foi novamente a sua morada durante os três anos seguintes, de 1975 até 1978.

Após diversas ameaças e agressões, em 1983, Tupã foi assassinado a tiros no rancho de sua casa, na aldeia Campestre. Um pouco antes da sua morte, Marçal teria dito: “sou uma pessoa marcada para morrer, mas por uma causa justa a gente morre…”. Postumamente, Marçal de Souza foi condecorado como Herói Nacional do Brasil.

A missão

Marçal. Missionário que soube captar seus dons dentro dos limites assistencialistas e prescrições doutrinárias bem-intencionadas. Torna-se defensor de justiça, denunciando os crimes praticados contra a vida dos povos indígenas. Descobre a dimensão política de sua crença tradicional, enriquecida com elementos fundamentais da longa convivência com um ambiente cristão e livremente incorporados em sua visão de mundo e sentido da vida.

Tupã´i continuou missionário, mas agora de uma causa maior, não institucionalizada nem institucionalizável. Novamente se conectou com suas raízes indígenas indeléveis e se confrontou criticamente com os aprendizados e práticas do pastor da Igreja Presbiteriana que era.

A denúncia histórica da injustiça e desonestidade das pessoas, e da própria estrutura agrária do Brasil, não apagam, mas empalidece o anúncio de verdades cristalizadas; tornou o novo evangelho de Marçal, para sua Igreja: inaceitável, e para as instâncias governamentais: perigoso.

Entrou com órfão na “Missão Caiuá” e a deixou como não suficientemente relevante para sua causa, novamente órfão. A frase de Adorno poderia ser de Marçal: “A necessidade de dar voz ao sofrimento é condição de toda verdade”, porque “o que melhor suporta a passagem do tempo é a mentira”. Sua luta era também contra o tempo.

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ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2009.

BOLETIM do Cimi, n. 65, 1980, p. 11: Disponível em: <http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=HemeroIndio&pagfis=22513>. Acesso em: 01/10/2023.

BRAND, Antônio. O confinamento e seu impacto sobre os Pãi/Kaiowá. Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1993.

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