01/10/2023

A terra-mãe e a luta pelos direitos originários: uma jornada de esperança e resistência

Irmã Laura Vicuña destaca a importância da luta ‘teimosa’ pela defesa dos povos indígenas e dos biomas do país

Irmã Laura Vicuña em Porto Velho, Brasil, 2022. Foto: Gabriel Bicho

Por Hellen Loures, da Assessoria de Comunicação do Cimi – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 459 DO JORNAL PORANTIM

“Nos piores momentos, mais forte deve ser a esperança”. Foi parafraseando Dom Pedro Casaldáliga que Irmã Laura Vicuña, missionária do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Rondônia e representante dos povos indígenas na Conferência Eclesial da Amazônia – CEAMA, falou virtualmente aos participantes da XXV Assembleia Geral do Cimi, no dia 27 de setembro. Catequista franciscana de origem indígena Kariri, a religiosa apresentou ainda uma perspectiva importante sobre o trabalho pastoral e missionário da instituição junto aos povos indígenas.

Em uma das mesas do evento, intitulada “Direito Originário: as pedras no caminho, contradições e construção nessa nossa caminhada do Cimi”, Laura Vicunã defendeu a continuidade da esperança rebelde citada por Casaldáliga, pela defesa do direito de existir com a terra, na diversidade e com dignidade. “Continuemos a trilhar o caminho da rebeldia e da esperança apocalíptica. Em meio às contradições e catástrofes, algo novo está sendo construído. E, em tempos de negociação dos direitos originários, somente a esperança rebelde nos põe em atitude de resistência, de luta e de dizer não a toda e qualquer forma de violência e de violação”, frisou.

Na ocasião, a missionária enfatizou a interdependência entre a humanidade e a natureza, bem como a importância do direito originário na proteção dos povos indígenas e do planeta. Ela sublinhou também a necessidade de uma consciência de ecologia integral e a defesa dos direitos da natureza dentro do ordenamento jurídico, para a garantia de um futuro sustentável.

Laura Vicuña, uma voz experiente e dedicada, compartilhou também sua perspectiva singular do histórico que envolve a luta dos povos indígenas. A missionária ressaltou que seu testemunho não se limita aos marcos regulatórios ou às teorias antropológicas, mas sim à experiência que acumulou ao longo de quase um quarto de século de envolvimento direto com os povos originários. Vivência que abraça desde comunidades com territórios demarcados até aquelas que travam incansáveis batalhas pela defesa da vida e de suas terras ancestrais.

Neste contexto, as palavras de Laura podem ecoar como um guia autêntico, que apontam para a complexidade das questões relacionadas aos direitos originários e para os obstáculos no caminho da justiça e da preservação.

“Nós somos parte da terra e a terra é parte de nós”

Irmã Laura Vicuña destacou a profunda ligação entre os povos originários e seus territórios. Segundo ela, os povos originários ocupam essas terras há séculos e são capazes de coexistir harmoniosamente com diversos biomas e ainda os proteger. Essa convivência harmoniosa é resultado de sua profunda familiaridade com a “Casa-Mãe”, fonte de diversidade e um local que fornece todas as condições essenciais para a vida.

Laura Vicuña com o Papa Francisco em 1º de junho de 2023. Foto: Vatican Media

“Nós somos parte da terra e a terra é parte de nós. Os povos originários cuidam da terra como uma mãe, como um ser vivo. Por isso a gente fala que tudo que se fizer à terra será feito aos filhos da terra. A relação que existe é uma relação de reciprocidade, de respeito e de cuidado. Todos coexistimos de forma diversa, plural e interconectada. Essa sabedoria faz parte da ancestralidade dos povos originários e do seu modo de vida. Os povos indígenas, com o seu modo de viver, com as suas culturas, com as suas tradições e espiritualidades, já respeitavam e entendiam que a terra é a única morada que temos e que é dela que tiramos o nosso sustento. Por isso, a gente não abre mão da terra dos nossos ancestrais, porque ela é cheia de vida”, explicou.

Irmã Laura ressaltou ainda que “o direito originário se fundamenta no princípio da interdependência” e está intimamente ligado à identidade, à ancestralidade e ao território como espaço de vida. “Mas, infelizmente, na nossa sociedade há uma dicotomia muito grande entre ser humano e natureza. E parte dessa dicotomia é devido ao modelo tecnocrata, antropocêntrico e capitalista, onde se faz separação entre pessoa e natureza. A natureza é entendida ainda pela maioria como algo distante da qual nós não fazemos parte. Essa concepção faz com que a natureza se transforme em mercadoria. Daí o rio tem o preço, a terra tem preço, as árvores têm preço”, exemplificou.

“As pedras no caminho”

A missionária celebrou a recente vitória no Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu o direito originário e derrubou a tese do marco temporal. No entanto, ela enfatizou que a luta está longe de terminar, já que os povos originários são vistos como obstáculos para o modelo capitalista.

Irmã Laura apontou uma série de desafios e ameaças enfrentados pelos povos originários e pela natureza, entre elas, o agronegócio, uma ameaça que “arranca raízes”. Na ocasião, a missionária citou  os grandes projetos econômicos, como a exploração de recursos naturais e a construção de hidrelétricas, que prejudicam o solo e geram desigualdade entre os povos.

“Temos a necessidade de trabalhar por uma nova consciência de ecologia integral e defender os direitos da natureza e da terra também dentro de um ordenamento jurídico. Porque se nós não entendermos e não fazermos valer o direito originário, o direito à terra, ao território, estaremos destruindo toda a possibilidade de vida para as gerações presentes e para as gerações futuras”, frisou.

Semente da esperança

Irmã Laura conclui sua fala ressaltando a força dos povos originários, sementes teimosas que florescem em qualquer lugar. Ela enfatiza que, embora os “violentos possam prejudicar os corpos, eles não têm o poder de matar os sonhos, de calar as vozes ou de apagar a luz das comunidades indígenas. Tendo terra, a semente jogada nasce. Então, eu diria que os povos originários são essa semente. Que ela dá em qualquer lugar. Mesmo em tempo de muitas ameaças”, destaca.

As palavras da religiosa são um lembrete da importância de proteger os direitos dos povos indígenas e da natureza, bem como de promover uma relação mais saudável e equilibrada entre a humanidade e o meio ambiente. Irmã Laura desafia a humanidade a repensar seus valores em um mundo onde a exploração da natureza muitas vezes prevalece sobre a preservação e o respeito à terra-mãe.

“Nós estamos defendendo o direito originário como uma busca pela conservação da vida no planeta, mas os povos indígenas continuam a ser considerados como empecilhos para o modelo capitalista. Com nossas formas de vida, denunciamos os projetos de morte e o sistema excludente, que são chamados de superdesenvolvidos”, conclui.

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