01/09/2023

Taxa de suicídios entre indígenas no Mato Grosso do Sul é três vezes superior à média do País

O processo de suicídio ocorre gradualmente, aos poucos, matando-se a possibilidade de os povos indígenas viverem na sua integralidade, seja não demarcando os seus territórios, seja por meio das inúmeras ocorrências de abusos e violências ao qual estão submetidos

Liderança Guarani Kaiowá. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Por Marta Mamédio do Cimi Regional Leste*– MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 458 DO JORNAL PORANTIM

No Mato Grosso do Sul, ocorreram, em média, 24 casos de suicídio a cada 100 mil habitantes indígenas, de acordo com dados do Relatório de Violência contra Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), referentes a 2022. Esse índice é três vezes maior do que a taxa da sociedade brasileira em geral, que registrou, também em 2022, oito suicídios a cada 100 mil habitantes, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Quando nos deparamos com taxas alarmantes de suicídio em um determinado grupo social, é crucial realizar uma análise cuidadosa do contexto psicossocial, político, econômico, cultural e territorial em que esses povos se encontram.

Ao examinar a realidade social dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul, com base nos dados do Cimi, fica evidente que o estado lidera em ocorrências de violência contra essas populações, incluindo abuso de poder, ameaças de morte, homicídios, lesões corporais, racismo e discriminação étnico-cultural, tentativas de assassinato e violência sexual.

Outro fator social crucial a ser considerado na análise do agravamento da saúde mental desses povos indígenas é a não demarcação de seus territórios. A relação dos indígenas com a terra está intrinsecamente ligada ao significado da vida, à espiritualidade e à cultura. A negação do direito à terra indígena é, na verdade, uma negação do propósito de um povo. Isso apaga as razões de existir, o significado e a esperança muito antes da morte efetiva. Portanto, o processo de suicídio se desenrola lentamente, eliminando a possibilidade de que os povos indígenas vivam plenamente. O suicídio entre os indígenas faz parte de um grande projeto de etnocídio.

Índices alarmantes

Nos últimos quatro anos, de 2019 a 2022, três estados registraram o maior número de casos de suicídios entre as populações indígenas: Amazonas, com 208 ocorrências; Mato Grosso do Sul, com 131; e Roraima, com 57. Somando esses números, temos um total de 535 mortes por suicídio entre indígenas, o que representa 74% do total de suicídios nesse período.

Ao analisar esses dados de maneira epidemiológica e levar em conta a proporção de casos de suicídio em relação ao tamanho das populações indígenas desses três estados, fica evidente que o Mato Grosso do Sul apresenta uma prevalência mais significativa. Isso ocorre porque, de acordo com os dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Amazonas abriga uma população indígena de 490.900 pessoas, o Mato Grosso do Sul, 116.346, e Roraima, 97.320.

Portanto, a população indígena do Mato Grosso do Sul registrou 2,6 vezes mais casos de suicídio do que a população indígena do Amazonas e 1,5 vezes mais casos do que a população indígena de Roraima.

É fundamental ressaltar que, embora alarmantes, os dados sobre suicídios entre indígenas possivelmente estão subnotificados, devido à falta de acesso à notificação de dados, à falta de assistência por parte dos setores públicos e ao estigma associado ao suicídio na sociedade em geral.

Um Fenômeno Multifatorial

 O suicídio é um fenômeno complexo que não pode ser atribuído a uma única causa, pois vários fatores de natureza biológica, psicológica e social podem contribuir para esse ato, frequentemente precedido por transtornos mentais como a depressão, ansiedade patológica e outros. Quando se trata das populações indígenas, é crucial refletir também sobre as singulares dimensões cosmológicas que cada grupo possui em relação a essa temática.

No livro “O Suicídio” de Émile Durkheim, um dos primeiros teóricos a estudar esse assunto, o autor observa que, ao considerarmos um conjunto significativo de suicídios em um grupo específico durante um período de tempo, percebemos que a soma desses casos, embora individual, ainda mantém sua natureza eminentemente social. Nesse contexto, o suicídio deve ser compreendido como um fenômeno social, no qual a unidade de análise é a sociedade como um todo, e não o indivíduo.

É crucial reconhecer a complexidade do suicídio e seus múltiplos determinantes, especialmente quando se trata de populações indígenas, que enfrentam desafios específicos relacionados à preservação de suas culturas, territórios e identidades.

 Fatores em análise

O estado do Mato Grosso do Sul é notório tanto pelos conflitos de terra que enfrenta quanto pelas concentrações de terras em seu território. Segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), apenas 2,5% das terras são Territórios Indígenas, enquanto as áreas privadas representam a esmagadora maioria, abrangendo 92% do território estadual, majoritariamente dominadas pelo agronegócio. Além disso, o estado se destaca como um dos maiores vendedores de agrotóxicos no país, conforme o Relatório Nacional de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos de 2018.

Diversos estudos têm apontado para o aumento dos transtornos mentais e das taxas de suicídio em grupos que foram diretamente ou indiretamente expostos ao uso de agrotóxicos. Pesquisas conduzidas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e pela Fiocruz revelaram altos níveis de agrotóxicos nas proximidades de aldeias indígenas no estado. O povo Guarani Kaiowá, em especial, sofre com o que é conhecido como “chuvas de agrotóxicos,” uma arma química utilizada principalmente em meio às disputas de terras.

O suicídio entre as populações indígenas é uma questão que vai além das questões médicas. É um problema de saúde pública que envolve diversos fatores determinantes, como disputas territoriais, discriminação sistêmica, considerações econômicas, políticas, psicológicas e muitos outros aspectos.

Nesse contexto, torna-se imperativo que o Estado Brasileiro fortaleça as políticas públicas de saúde mental, considerando as especificidades das comunidades indígenas e assumindo uma responsabilidade social para tomar medidas eficazes na proteção contra violências aos povos originários. A demarcação dos territórios indígenas, a garantia de acesso a direitos, saúde, cultura e práticas espirituais são cruciais, pois o acesso à saúde mental está intrinsecamente ligado ao acesso aos direitos humanos. Somente através de um esforço conjunto, envolvendo todas as partes interessadas, podemos esperar reverter essa triste realidade e proteger a vida e a cultura dos povos indígenas.

—————-

*Psicóloga inscrita no CRP 03/21584 e Mestranda em Saúde da População Negra e Indígena, pela UFRB.

Share this: